Autor: Rev. Moisés C. Bezerril
Sabemos que hoje convivemos em nossa igreja com duas linhas de interpretação das Sagradas Escrituras. Uma linha, considerada a mais antiga, e a que vem há séculos conduzindo a vida e o governo da igreja, consiste numa abordagem sistemática de interpretação sendo formulada pelos estudiosos que entendem que a Bíblia interpreta a si mesma. Uma outra linha de pensamento teológico diz respeito à interpretação das Escrituras à luz do contexto social atual. Para essa corrente de pensamento é o contexto vivencial atual que lançará luz sobre a compreensão do texto das Sagradas Escrituras. A essa linha de pensamento chamarei de hermenêutica antropológica, ou seja a Bíblia sendo interpretada à luz do fenômeno humano atual.
Um dos desafios para nós, se caso aderirmos à hermenêutica antropológica é conseguirmos conviver com os padrões de Westminster sem ferir a ética ministerial. Como dizer para a igreja que já não somos mais fiéis aos nossos votos do passado, quando na ordenação prometemos ensinar e zelar aquela doutrina? Como conduzir à igreja para um entendimento de que aquelas antigas verdades cridas já não possuem tanta credibilidade na modernidade? É possível desencaminharmos a igreja de suas confissões doutrinárias e ainda assim nos portarmos de maneira ética?
Estamos nós aderindo a este tipo de interpretação porque, de maneira exaustiva, chegamos a um entendimento teológico da beneficência deste método para a igreja de Cristo, ou porque estamos simplesmente, de maneira superficial e impensada, acompanhando o mais moderno desfile de moda teológica? Com que estamos preocupados afinal: em melhorar a igreja de Cristo por percebermos nela falhas, ou simplesmente porque nos causa repulsa os padrões de Westminster? Ou porque queremos alimentar o nosso ego e sermos diferentes de todos?
Na concepção da hermenêutica antropológica a ministração dos sacramentos por outras pessoas que não sejam “clerigos” e a ordenação feminina, por exemplo, são dois desafios modernos àquela antiga hermenêutica de Westminster. Isto não é razoável quando se constata que a ministração dos sacramentos por pessoas não ordenadas ao ministério pastoral é um tema que desde o século XVII tem tentado ganhar espaço nas igrejas reformadas, mas com insucesso. Wilhelmus à Brakel (1635-1711) e A A. Hodge (1823-1886) refutavam já naquela época os mesmos argumentos que são levantados hoje pelas novas correntes de hermenêutica bíblica. É necessário lembrar que desde a reforma, grupos dissidentes adotaram a doutrina da ministração da ceia por leigos, como até hoje existem os “irmãos de Plymouth” nos Estados Unidos. Na verdade, nem os argumentos do passado, nem os do presente são persuasivos para tal prática, tendo em vista que a igreja entende que o caminho mais ético para a ministração dos sacramentos é o modelo de Westminster.
Quanto à ordenação feminina ao ministério pastoral, o que a hermenêutica antropológica tem considerado como uma questão de vida ou morte para a eclesiologia reformada, tem se apresentado realmente como algo inédito na vida da igreja hodierna. Isto é explicado pelo simples fato de em toda a história da igreja cristã, o cristianismo jamais ter convivido com mulheres exercendo ofício pastoral. É evidente que este assunto é considerado hoje como um desafio para a igreja, não pelo fato de termos descoberto uma nova verdade bíblica sobre o assunto, nem tampouco por encontrarmos uma necessidade gritante na vida da Igreja, mas com certeza por estarmos sendo fortemente influenciados pelas correntes secularistas da nossa época.
É coerente afirmar que devemos buscar a ordenação de mulheres por causa da escassez de homens nas igrejas? Como explicaríamos então que este argumento não procede quando aplicado a todas as denominações evangélicas? Parece que essa escassez do sexo masculino não é um problema da igreja, mas de algumas igrejas. O argumento não será válido se apenas for efetivo em alguns casos isolados. O problema de ausência de homens nas igrejas deve resolver-se com a intensificação da evangelização do sexo masculino e não com a ordenação de mulheres. Não seria isso uma medida muito cômoda para se resolver um problema de igrejas que não crescem? A não ser que a igreja esteja inserida em cidades onde não existam mais homens.
Seria coerente argumentar-se, que pelo fato das mulheres, já há tanto tempo, estarem fazendo parte dos serviços sagrados no templo, deveriam ser consagradas e ordenadas aos seus ofícios, os quais elas já desempenham a tanto tempo? Se este argumento fosse de fato viável, deveríamos perguntar por que então a igreja apostólica não ordenou tantas mulheres que tiveram papeis tão importantes nas igrejas daquela ápoca. O que quero dizer é que ao longo da história da igreja as mulheres sempre trabalharam e desempenharam funções vitais à vida igreja, sem contudo serem desafiadas a reivindicarem nome, título ou glórias para si mesmas. Deveríamos entender, por este argumento, que pelo fato de qualquer pessoa ensinar ou liderar na igreja tal função lhe daria direito de ser ordenado pastor.
Quando essa questão é levantada hoje em dia, ela tem sido muito mais alimentada pelas reivindicações feitas pelos movimentos dos direitos da mulher do que mesmo pela necessidade da própria igreja, necessidade essa que até agora não tem sido demonstrada como um desafio gritante do século vinte. Isto foi claramente anunciado pela mídia neste mês de Março, quando muitos jornais, revistas e programas de rádio e televisão mostraram que a mulher conquistou seus direitos iguais aos homens até mesmo na área religiosa, havendo agora muitas bispas e pastoras no seio da igreja. Ao meu ver, o tema é desafio enquanto quer fazer a igreja acompanhar a filosofia moderna, mas não enquanto se apresenta como necessidade vital da igreja. Parece-me que é a questão do nivelamento dos direitos do sexo feminino que está muito mais em jogo nesta proposta hermenêutica do que o interesse pela Igreja de Cristo.
Alega-se que a igreja tem errado em não ordená-las, enquanto permite que ensinem, quando deveria ser fiel ao texto bíblico não permitindo nenhuma forma de liderança por parte das mulheres na igreja. A maior desafio a esta hermenêutica é perguntar se de fato estaríamos nós interessados em apontar uma falha na eclesiologia reformada na tentativa de corrigi-la e incentiva-la a não errar mais ou se de fato nosso interesse é encontrar uma brecha nessa eclesiologia para abrirmos uma brecha ainda maior. A verdade é que os que levantam essa questão não estão tão interessados em dizer que a igreja errou e que deva voltar ao princípio de “Sola Scriptura”, mas querem com isso, justificando o erro como o curso nomal da igreja ao longo da história, incentivá-la a continuar no erro e ainda ir mais além. Ora, se eles consideram que a eclesiologia reformada está muito distante de “sola scriptura” por causa deste erro, por que então não reconduzem-na para Sola Scriptura? Mas o que acontece é exatamente o contrário: aproveitam-se de um chamado “erro teológico da eclesiologia reformada”(permitir que as mulheres exerçam cargos), e em cima deste erro buscam fundamento para outro erro(ordenação feminina). Em poucas palavras, o que eles sugerem é: “já erramos até agora; é impossível consertar o erro a esta altura da atual conjuntura; então vamos “canonizá-lo” como um princípio válido para dirigir a vida da igreja.” Além do mais, não é coerente à hermenêutica antropológica fazer qualquer proposta no caminho do princípio de “sola scriptura”, ou até mesmo querer apontar críticas em cima de falhas em observar tal princípio, pois o caminho para o qual ela aponta é exatamente o oposto de “sola scriptura”.
Afirmar que a igreja poderá ser norteada por princípios sociais e antropológicos, a partir das necessidades e desafios de cada época da história, é o mesmo que dizer que, com o passar do tempo, as verdades bíblicas darão lugar a outras verdades trazidas pela história do fenômeno humano. Com isso abre-se um precedente muito perigoso: o social atual interpretando o revelacional antigo. Não é novidade que este seja um dos princípios hermenêuticos da Teologia da Libertação e de muitas outras correntes teológicas liberais. Mas a grande dificuldade com esta hermenêutica antropológica é o fato de tais hermeneutas não terem mais um aferidor de suas próprias interpretações sociais. Se é a história que determinará o curso da vida da igreja, somente a realidade histórica vivencial é que fará o aferimento. Mas com isso surge um outro grande problema: cada sociedade vive uma realidade diferente. Não se pode afirmar que todas as sociedades têm a mesma compreensão da realidade. Isto significa que, seguindo o curso natural da história para interpretar a Bíblia, cada sociedade terá uma interpretação, e cada intrepretação para uma determinada época, pois a história fará com que essas intrepretações se tornem ultrapassadas em algum ponto de sua progressão.
Além de cada sociedade com uma hermenêutica social, e a cada geração uma nova hermenêutica, ainda nos resta levantar outro problema: quem será capaz de delimitar até onde este procedimento hermenêutico pode ir? Ninguém! Pois é a história quem determinará isso. Ninguém será capaz de apontar um só texto das Escrituras para garantir que não será superado. Quem pode garantir que empregando tal hermenêutica não venhamos a matar, roubar e adulterar em nome de Deus? Mas é exatamente ao que chegaremos. Se a história determina o curso e ela mesmo cria situações em que a Bíblia é impraticável, logo praticaremos aquilo que o social nos diz que é conveniente e necessário. Em suma, esse tipo de hermenêutica conduzirá a igreja para um subjetivismo tão descontrolado que não haverá mais nenhum paradigma estável da verdade, pois cada um desses paradigmas terá vida curta, a qual será determinada pelo contexto social trazido pela história. À cada desafio novo a igreja terá que repensar seus antigos paradigmas e formular outros que atendam a necessidade social do momento. Então, onde chegaremos afinal?
Se quisermos abraçar realmente, de maneira ética e espiritualmente, uma hermenêutica antropológica das Escrituras, não deveríamos estar em nenhuma forma de liderança ou mesmo sendo membros de qualquer igreja confessional, pois não estaríamos sendo sinceros nem conosco mesmos (por causa do batismo ou da ordenação), nem com Deus( por causa da nossa profissão e confissão), nem tampouco com Seu povo (por causa da pregação e do ensino).
Enfim, a hermenêutica antropológica não consiste em nenhum desafio para a igreja do século XX, tendo em vista que questões como essas sempre caminharam ao lado a da igreja desde há muito tempo em sua história. Além do mais, ela não se apresenta com argumentos persuasivos e satisfatórios para uma grande parte de eruditos reformados comprometidos com “sola scriptura”.
Certamente que encontraremos uma grande virtude da hermenêutica antropológica, pois ela nos faz enxergar falhas, e até insiste em nos desafiar a pensarmos melhor, mas seu grande mal é fracassar em levar-nos de volta para as Escrituras.
BIBLIOGRAFIA
1.CLARCK, Gordon H., THREE TYPES OF RELIGIOUS PHOLOSOFY, Trinity Foundation
2.BAZARRA, Carlos, O QUE É A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO, Edições Paulinas
3.HORDERN, William, TEOLOGIA PROTESTANTE AO ALCANCE DE TODOS, Juerp
4.HODGE, A. A., THE CONFESSION OF FAITH, The Banner of Truth
5.à BRAKEL, Wilhelmus, THE CHRISTIAN’S REASONABLE SERVICE, Soli Deo Glória
Rev. Moisés C. Bezerril
professor de Novo Testamento do Seminário Presbiteriano do Norte
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