C. S. Lewis: O humor na medida certa

Autor: Gabriele Greggersen

O segredo da grande aceitação mundial do best-seller de C.S.Lewis, Screwtape Letters (1), as famosas 31 cartas de um diabo a seu sobrinho, encontra-se tanto em seu estilo – ameno, fino e bem humorado, “britânico” -, como no conteúdo, que apresenta profundas verdades da antropologia filosófica. Nele não encontramos concessões a um “gosto moderno”, mais apreciador daquele outro tipo de humor que incita ao deboche ou à zombaria sarcástica, associada, por exemplo, a temas políticos.

Aliás, são precisamente estes humores (que fazem do criticismo e do escárnio seu único absoluto) os mais apreciados e incentivados pelo diabo Screwtape (o protagonista, “autor” das cartas) em seu trabalho de orientação (realizado com um tom tão pedagógico e paternal) de seu inexperiente sobrinho, Wormwood, encarregado da missão de desencaminhar um humano: o gentleman inglês, Mr. Spike.

Nesse sentido, dentre suas centenas de investidas (em que se aproveita de seu conhecimento das debilidades da natureza humana para seduzir e desviar), destacamos a seguinte – uma diabólica filosofia do humor – em que expressa seu contentamento pelas más amizades que seu paciente humano tem mantido com:

“pessoas absolutamente confiáveis: constantes escarnecedores, mundanos consumados que, sem cometer crimes espetaculares, caminham segura e decididamente para a casa de nosso Pai. Em sua carta, querido sobrinho, você comentava que eles vivem em grandes zombarias e gargalhadas. Espero que você não esteja pensando que o riso em si esteja sempre a nosso favor. Este é um ponto importante, que merece atenção. Classifico as causas do rir humano em: alegria, divertimento, piada e escárnio. Você encontrará a primeira entre amigos e enamorados, reunidos em vésperas de feriado. Sempre aparece entre adultos um ou outro pretexto para piada, mas a facilidade com que o mínimo toque de humor desata o riso, em tais ocasiões, demonstra que não é ele sua real causa. Qual seja essa causa real, não o sabemos. Algo de semelhante acontece com boa parte daquela detestável arte a que os humanos chamam·música e algo parecido ocorre também no Céu – uma aceleração sem sentido do ritmo da experiência celestial, totalmente opaca para nós. Risos dessa espécie são prejudiciais para nós e devem sempre ser desencorajados. Além disso, o próprio fenômeno, em si, é repugnante; um insulto direto ao realismo, dignidade e austeridade do Inferno…” (Letter XI).

Lewis – com insuperável sutileza – mostra o caráter problemático que há no humor que se alimenta de zombaria e escárnio e não da verdadeira e desinteressada alegria. Pois, para o diabo, o mais apreciado de todos os humores é precisamente “… o escárnio. Em primeiro lugar, é muito econômico. Só um ser humano inteligente consegue fazer uma boa piada com a virtude (ou até com qualquer outra coisa); mas podemos treinar qualquer um para falar como se a virtude fosse cômica. Entre zombeteiros, é como se a piada já tivesse ocorrido; na verdade, ninguém a faz, mas qualquer assunto sério é tratado como se eles já tivessem encontrado seu lado ridículo. Quando arraigado, o hábito do escárnio constrói em torno do homem a melhor couraça que conheço contra o Inimigo; com a vantagem de ser isento dos perigos inerentes às demais fontes de riso. Dista anos-luz da alegria; embota o intelecto em vez de o aguçar, e não gera qualquer afeição entre os que o praticam” (Letter XI).

O autor pouco lança mão de recursos estilísticos como hipérbole e metonímia, freqüentemente usados por um humor pesado, que caricaturiza a realidade. Ao contrário, o que encontramos nas Cartas são doses bastante sóbrias de realismo, expresso por outros recursos de ficção, meta-humorísticos (um humor que tematiza o próprio humor), que servem mais para representar as contigências da própria vida – de uma forma diferente e, por isso, engraçada – do que para estereotipá-las.

Já no Prefácio, Lewis explicita que o “humor envolve um senso de proporção e a capacidade de uma pessoa ver-se como que do exterior”. Não se trata, portanto, de algum humor ingênuo de quem se aliena das amarguras do mundo, mas, sim, de uma maneira de encará-las, desvendando o seu “outro lado”, a face oposta, simétrica. Não se trata de distorcer a realidade, vendo outra coisa em seu lugar, mas apenas de outra forma de ver.

O realismo de Lewis tangencia, em vários momentos, a “crítica histórico-social”, quando toca temas atuais e graves como a guerra, o nazismo, a democracia, o cientificismo e evolucionismo, a liberdade sexual e até a ecologia (principalmente no brinde proferido pelo diabo-mor, por ocasião do jantar anual do Colégio de Treinamento de Tentadores, capítulo final acrescido posteriormente por Lewis). Ao mesmo tempo que expressa um puro e simples prazer de divertir o leitor, o autor chama a atenção para atemporais valores humanos, profundamente essenciais: a humildade, o amor, a paixão, o prazer, o sofrimento, etc.

Desta forma, não só se posiciona diante das grandes polêmicas de seu (nosso) tempo, contribuindo efetivamente para elas, mas também pratica o que talvez seja o verdadeiro sentido e razão de ser do humor, como também da ficção e da arte: o de tratar de temas profundos de forma descontraída. Sem tais recursos, estes assuntos correriam o risco de serem, para muitos leitores, simplesmente ignorados.

Seu humor “de proporção” sabe reconciliar pólos aparentemente opostos: a alegria acompanha situações que representam antes tristeza e sofrimento (a este respeito o autor dedicou sua obra The Problem of Pain). Assim, admitindo-se que “o sofrimento faz parte essencial do que se chama Redenção” ou “graça”, é possível compreender esta menos explícita finalidade do humor lewisiano, que lhe permite colocar em jogo tais questões que escapam a qualquer tentativa de abordagem teórica direta (como se sabe, Lewis, como professor universitário publicou também vários trabalhos acadêmicos eruditos).

Assim, é em Screwtape Letters que encontramos a melhor expressão das teses clássicas cristãs relativas ao prazer. Screwtape adverte seu ingênuo sobrinho de que a luta contra o “Inimigo” requer a erradicação desse fenômeno humano altamente “perigoso”, o verdadeiro prazer:

“Como é que você não percebeu que um prazer de verdade era a última coisa que lhe devia apresentar? Não percebeu que prazeres do tipo que lhe foram proporcionados por aquele livro e por aquele passeio seriam os mais perigosos? Arrancam dele toda aquela espécie de crosta que você andou formando e lhe dão a sensibilidade de quem está de ‘volta para casa’ e se recuperando” (Letter XIII)”.

Logo em seguida são fornecidos os remédios contra os “males” do prazer:

“Você precisa empenhar-se em fazer o paciente abandonar as pessoas, pratos ou livros de que realmente ele gosta, em favor das pessoas ‘melhores’, do alimento ‘correto’ e dos livros ‘importantes’ (…) Que faça o que bem entender, mas sem agir. Não há devoção que nos atrapalhe, desde que a mantenhamos longe de sua vontade. Como disse um dos humanos: hábitos ativos fortificam-se, hábitos passivos debilitam-se. Quanto mais ele sentir sem agir, menos será capaz de agir e, a longo prazo, menos será capaz de sentir” (Carta XIII).

Assim, tudo o que for ligado ao verdadeiro bom humor, como o bom senso e o senso do ridículo é considerado arsenal de primeira linha do Inimigo.

“O Divertimento relaciona-se intimamente à Alegria – espécie de espuma emocional que surge do instinto lúdico. De pouco nos serve. Evidentemente, pode ser utilizado, às vezes, a fim de distrair o paciente de algo que o Inimigo desejaria que ele fizesse ou sentisse: mas por si mesmo, possui tendências positivamente indesejáveis, promove a caridade, a determinação, o contentamento e muitos outros males.

Já a piada, que costuma girar em torno da súbita percepção de uma incongruência, é um campo mais promissor. Não me refiro principalmente à piada indecente ou libidinosa que – embora muito adotada por tentadores de segunda categoria -, é freqüentemente desapontadora em seus resultados. Na verdade, os humanos, neste assunto, podem ser classificados, claramente, em dois tipos: para alguns, não existe ‘paixão mais séria que a luxúria’ e a piada indecente deixa de ser excitante, precisamente na medida em que é engraçada; para outros, o riso e a luxúria excitam-se mutuamente no mesmo momento e pelas mesmas razões. A primeira espécie faz piada de sexo porque ela oferece ocasião de incongruências; a segunda, cultiva incongruências para ter ocasião de falar sobre sexo. Se o paciente pertence ao primeiro tipo, piada obscena não lhe adiantará – jamais esquecerei as horas que perdi (horas de insuportável tédio para mim) com um dos meus primeiros pacientes nos bares, antes de ter aprendido esta regra. Descubra o grupo de seu paciente, mas impeça-o de o descobrir também (…)” (Letter XI).

Numa ocasião bela e prazerosa como um noivado, recomenda-se que: “acima de tudo os jovens tolos” não desvendem as idéias enganosas que lhes estão sendo sussurradas aos ouvidos, pois, se caírem em si “estarão a caminho da descoberta de que só o ‘amor’ não basta, que precisam de caridade, que ainda não a conquistaram e que não há lei externa que lhe tome o lugar”. “Acima de tudo, é preciso “solapar o senso do ridículo (de humor)” dos homens (Letter XXVI).

E a grande ameaça que há no verdadeiro humor revela-se nas situações mais corriqueiras, especialmente nas que se mostram realmente ricas e saudáveis para o espírito humano.

Consciente disso, Screwtape recomenda: “Agarre-o no momento em que estiver realmente humilde e insinue-lhe o pensamento: ‘Quem diria! Sou humilde!’. Imediatamente surgirá o orgulho por sua profunda humildade. Se ele despertar para o perigo e procurar sufocar essa nova forma de orgulho, que se orgulhe dessa tentativa – e assim por diante, em tantos estágios quantos quiser. Mas não por muito tempo, para não lhe despertar o senso de humor e da proporção; nesse caso, ele rirá na sua cara e irá dormir” (Letter XIV).

Em outra passagem, louva os estados de depressão e vazio existencial, como os mais propícios para fazer seu paciente “perder a cabeça” e cair na “arapuca”:

“Deixe-o sem fazer nada por muito tempo. Mantenha-o acordado à noite, não na farra, mas olhando para um fogo morto, numa sala fria. As atividades saudáveis e extrovertidas que desejamos que evite podem ser inibidas – sem termos que lhe dar nada em troca -, para que afinal, possa dizer, como um dos meus pacientes, ao chegar cá em baixo: ‘Vejo agora que passei a vida sem fazer o que devia e nem tampouco o que gostava'” (Letter XII).

O leitor encontrará, ao longo de todo o livro, uma série de exemplos deste “humor proporcional” ou metafórico, que diz uma coisa para significar outra, inclusive na própria postura que o autor expressa a respeito de “Deus e o mundo”.

Logo no Prefácio, Lewis responde explicitamente à pergunta de vários leitores, se, afinal de contas, acredita ou não no Diabo e no Inferno, com um verdadeiro “tratado anti-maniqueísta”:

“Ora, se por ‘Diabo’ entende-se uma potência oposta a Deus, existente por si mesma desde toda a eternidade, a resposta é certamente ‘não’. Não existe ser incriado, exceto Deus. Deus não tem opostos. Nenhum ser poderia atingir a ‘perfeita maldade’, oposta à perfeita bondade divina, visto que, tiradas todas as espécies de coisas boas (inteligência, vontade, memória e a própria existência) nada restaria dele. O certo seria perguntar-me se creio nos diabos. Sim, creio. Ou antes, creio nos anjos e creio que alguns deles, abusando do livre-arbítrio, tornaram-se inimigos de Deus. (…) Satã, líder e ditador dos diabos, é o oposto não de Deus, mas de Miguel”.

E recomenda, quanto ao seu próprio livro, que não o encarem como algo extraordinário, mas como algo que foi facilmente escrito (porque a fonte inspiradora foi o seu próprio coração). Por outro lado, foi penoso e difícil (porque não é fácil torcer o pensamento para a atitude diabólica, que com o tempo provoca uma espécie de “cãibra espiritual”). Sugere que seus diabos não sejam encarados mais do que como “símbolos ou personificações de abstrações e o livro, uma alegoria.

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(*) Mestre e doutora em Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP.
Professora da Faculdade Teológica Sul Americana – www.ftsa.edu.br
(1) Screwtape letters, Londres, William Collins. Em edição brasileira Cartas do Coisa-Ruim, São Paulo, Loyola, 1982. Para surpresa do próprio autor, somente na Europa houve mais de 30 edições, com mais de 200.000 exemplares.

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