Bem-aventurados os fracos

Autor: Ricardo Gondim

29/03/2005

Passo por uma fase em que meus valores vêm mudando muito. Ultimamente sinto atração pelos fracos, pelos caídos e pelos desafortunados na vida. Tenho vontade de gritar: chega de campeões, chega de relatórios bombásticos, chega de testemunhos de vitória. Cada vez mais venho aprendendo a partilhar da felicidade dos que não faziam parte de meu universo. À medida que envelheço, percebo nuanças que meus olhos juvenis não enxergavam.

São bem-aventurados os que não têm pedigree. Afortunados os que vêm de famílias pobres e por isso podem cantar, como Luis Gonzaga: “Ai, Ai, que bom/ que bom que é/ Uma estrada e a lua branca/ No sertão de Canindé/ Automóvel lá nem sabe se é homem ou se é mulher/ Quem é rico anda em burrico/ Quem é pobre anda a pé/ Mas o pobre vê nas estradas/ O orvalho beijando as flores/ Vê de perto o galo campina/ Que quando canta muda de cor/ Vai molhando os pés no riacho/ Que água fresca, nosso Senhor!/ Vai olhando coisa a granel/ Coisa que, pra mode vê/ O cristão tem que andar a pé”. Esses serão amigos de gente como Jefté, filho de uma prostituta; de Davi, excluído por seu pai e irmãos; de Nelson Mandela, que viveu sem calçar sapatos até quase a vida adulta. Eles são felizes porque não nasceram de pais frustrados com o seu quinhão na vida. Assim, sem rédeas manipuladoras, puderam optar por vocações, dar vazão a talentos e seguir por sendas que não se prestavam a satisfazer o ego ou as expectativas dos que precisam se projetar em crianças indefesas.

Bem-aventurados os que não são belos. Felizes os que não se conformam aos parâmetros estéticos da sua geração. Essas pessoas precisam vencer os preconceitos mais sutis, que valorizam a beleza da pele e esquecem os valores do caráter. Elas são afortunadas porque precisam de uma têmpera diferente para vencer. Quando se candidatam a um emprego, sabem que não impressionarão pela cor dos olhos nem pelos seios volumosos. Essas pessoas trabalharão com mais afinco, valorizarão o suor que brota pela persistência, pois não vivem iludidas pelo reflexo que matou Narciso. Elas serão amigas de Lia, cuja beleza não se comparava à de Raquel, e entenderão o provérbio bíblico: “A beleza é enganosa, e a formosura é passageira” (Pv 3.10).

Bem-aventurados os deficientes físicos, os meninos com síndrome de Down e as meninas com paralisia cerebral. Suas vidas valem muito para os seus pais; seus sorrisos são valiosos e suas existências, uma constante lembrança de que os padrões da normalidade são mais largos do que essa geração hedonista admite. Eles nos lembram de que nossa existência não é um passeio despretensioso e que não podemos viver na ilusão do eterno prazer. A felicidade dos deficientes que disputam as para-olimpíadas, de Hellen Keller, que, cega e surda, graduou-se em universidade, e Ray Charles, que nos encantou com sua voz maravilhosa, tem um peso diferente do riso soberbo dos ricos e dos poderosos.

Bem-aventurados os que já pecaram, os que já deram vexames, os que já se desviaram da vontade de Deus, mas voltaram arrependidos tal qual o filho pródigo. Esses não têm o coração altivo, não se sentem merecedores de coisa alguma. Vivem dependentes da misericórdia; jamais teriam coragem de reclamar seus direitos. Os perversos mais malignos são pessoas que nunca transgrediram, que jamais erraram; portanto, não sabem como é a dor da maldade, não conhecem a culpa do mal praticado. Mas aqueles que já amargaram o fracasso são felizes, porque celebram a graça; não esquecem que se não fosse o favor de Deus, há muito já teriam perecido. Eles caminham ao lado de Abraão, que mentiu, de Moisés que matou, de Davi, que adulterou, de Pedro, que negou, e com eles repetem: “Suas misericórdias duram para sempre”. Só eles podem dizer, como a virgem Maria: “Minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, pois atentou para a humildade da sua serva” (Lc 1.46-48).

Bem-aventurados os que nunca experimentaram grandes vitórias e vivem sem grandes arroubos. São eles que não nos deixam esquecer que a maior parte de nossa existência acontece no contexto da rotina. Eles são felizes porque souberam viver sem a fadiga dos ativistas cheios de adrenalina. Vivem despretensiosamente ao redor de pessoas amadas e não se sentem obrigados a carregar o mundo inteiro em seus ombros. Não deitam a cabeça no travesseiro para acordar no dia seguinte com olheiras. Eles são felizes porque souberam caminhar pela existência sem desejos grandiloqüentes, sem ambições ou invejas. Eles serão parceiros de João Batista, José, Bartolomeu, Joana, e tantos outros discípulos de Jesus, cujas vidas aconteceram no anonimato.

Bem-aventurados os que não precisam viver uma vida sempre coerente. Eles sabem que estamos sempre em fluxo, que mudamos e precisamos abrir mão de verdades a que no passado já nos apegamos com muita firmeza. Eles não são dogmáticos, intolerantes nem legalistas. Essas pessoas são felizes porque nos lembram que o amor nos tornará incoerentes e imprevisíveis e que o nazismo montou-se sobre uma pretensa lucidez filosófica.

Bem-aventurados os que não sentem a cobrança de uma divindade infinitamente exigente. Eles podem ser eles, mesmos quando se percebem diante de Deus; não se amedrontam por serem imperfeitos ou por carregarem complexos e traumas interiores. Não temem a rejeição de Deus e por isso não precisam encenar uma espiritualidade plástica e afetada. Eles também ouvirão a voz que afirmou Jesus no dia do seu batismo: “Este é o meu filho amado em quem o meu coração está satisfeito”. Felizes os que nos ensinam que viver em intimidade com Deus significa saber que ele está satisfeito conosco e que não precisamos nos provar, pois seu amor não depende de nossa perfeição.

Bem-aventurados os que não se comparam aos poderosos nem invejam os triunfantes. Eles captam o significado do Poema em Linha Reta, de Fernando Pessoa, e sabem que é falsa a pretensão daquele que alardeia ter sido campeão em tudo. Reconhecem que o poeta está correto quando afirma: “Estou farto de semideuses”. E, em parceria com Pessoa, também clamam: “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana”. E, como ele, também gritam: “Arre, estou farto de semideuses. Onde é que há gente no mundo?” Esses serão amigos de Paulo, que mesmo no fim de sua vida, afirmou: “Eis uma verdade digna de toda aceitação; Cristo veio salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal”.

Assim, os meus novos heróis são pessoas que sempre estiveram ao meu redor e que nunca percebi. Agora vejo que nunca dera conta de que eles são descritos no Sermão da Montanha. Admito que essas constatações chegaram muito tarde em minha vida; contudo, espero que você aprenda a reconhecer os verdadeiros heróis antes do que fui capaz. Se conseguir lhe ajudar nessa tarefa, eu também me sentirei bem-aventurado.

Soli Deo Gloria.

O Pr. Ricardo Gondim é pastor da Assembléia de Deus Betesda em São Paulo
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www.ricardogondim.com.br

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