Autor: Bispo Paulo Ayres Mattos
Nos últimos dois anos me tenho dedicado ao estudo da teologia pentecostal. Estou convencido de que ao longo dos anos não temos no Brasil levado a sério a teologia pentecostal, especialmente entre nós pertencentes ao mundo evangélico tradicional.
Também conhecemos muito pouco a teologia do movimento de santidade que influenciou bastante o mundo evangélico brasileiro através dos ministérios avivalistas de George Ridout, Edwin Orr e Stanley Jones com suas cruzadas no Brasil entre os anos 30 e 70, que de uma certa forma abriram as chamadas igrejas históricas para o movimento de renovação espiritual dos anos 60 e o movimento carismático a partir dos anos 70.
Por um lado não há como negar a legitimidade da experiência pentecostal, quer nas igrejas pentecostais clássicas, quer nos movimentos de renovação e carismático; por outro lado, não há como negar a grande confusão teológica que existe especialmente nos arraiais carismáticos e neopentecostais.
No limiar do século XXI, no contexto posmoderno do nosso capitalismo tardio, creio que a tendência é a teologia neopentecostal impor sua hegemonia sobre o mundo evangélico brasileiro. A era do denominacionalismo acabou. Hoje as denominações brasileiras, evangélicas e pentecostais clássicas, não passam de estruturas burocráticas, de discutível poder institucional, muito longe do crente comum, para quem não faz qualquer sentido ser metodista, batista,
presbiteriano, assembleiano, wesleyano, ou lá o que for! Hoje a gente é somente evangélico, crente!
Neste caldo religioso posmoderno é que crescem as igrejas neopentecostais independentes onde não prevalece o poder das burocracias eclesiásticas mas sim o carisma religioso (e as vezes espiritual) de seus líderes! E nossos pastores metodistas têm que se ralar para ao mesmo tempo responderem às
demandas de nossa burocracia eclesiástica e ás demandas espirituais e religiosas das pessoas que buscam os nosso templos. Kyrie Eleison!
Na busca de melhor entender a experiência e a teologia pentecostais defendi uma dissertação de mestrado em teologia no Christian Theological Seminary de Indianapolis que teve como título “Uma Introdução à Teologia do Bispo Edir Macedo”. O meu orientador foi um historiador metodista chamado David Bundy, uma das vacas sagradas americanas no campo da história e teologia pentecostal, muito respeitado entre os pentecostais americanos, europeus e chilenos. Desde
janeiro deste ano estou matriculado no doutorado de teologia da Drew University, uma universidade metodista em Nova Jersey, desenvolvendo minhas pesquisas sobre o pentececostalismo na área de estudos wesleyanos e metodistas, tendo como orientador outra vaca sagrada do campo de estudos pentecostais, Donald Dayton, metodismo wesleyano (dos Estados Unidos; nada a ver com a Igreja
Wesleyana do Brasil).
No meu doutorado estou aprofundando os estudos sobre a história e teologia do movimento neopentecostal, especialmente no Brasil, com ênfase especial na teologia sacrificial do Bispo Macedo, que considero o maior gênio religioso brasileiro dos últimos vinte e cinco anos (e olha que discordo substancialmente da teologia sacrificial do Macedo!).
Um dos temas desenvolvidos em meus estudos é a relação entre o espiritualidade pentecostal, desde sua origem até nossos dias, com espiritualidade africana em sua vertente da África Ocidental. Me parece que este tema, que é um tabu nos meios evangélicos e pentecostais brasileiros, está sendo trabalhado de maneira séria e responsável aqui nos Estados Unidos pelas igrejas pentecostais
negras, das quais no Brasil temos pouco conhecimento e nenhum relacionamento.
Como você pode perceber, há pano pra manga a valer neste campo que procuro abrir. Por um lado, estou certo de que ao desenvolver estes estudos teológicos sobre a espiritualidade pentecostal busco alcançar dois objetivos: reconhecer com honestidade o inestimável valor e contribuição do movimento pentecostal para a espiritualidade e a teologia cristã em geral, e resgatar a enorme dívida
teológica que as chamadas igrejas evangélicas históricas brasileiras têm com o movimento pentecostal ao não reconhecerem sistematicamente a legitimidade e a validade do modo pentecostal
de fazer teologia. Com isto acabamos por nos prejudicar a nós mesmos, pois diante da crescente pentecostalização do mundo evangélico brasileiro, nossa teologia não é capaz de dar conta das questões teológicas que a experiência pentecostal coloca aos pentecostais e a nós. No final, quem sofre é o povo evangélico em geral, pentecostais e não-pentecostais!
Por outro lado, há evidências crescentes de que surge uma nova geração de pentecostais extremamente ávidos por maior formação teológica acadêmica sem prejuízo da experiência pentecostal em si; muito pelo contrário, que, afirmando a validade e a legitimidade da experiência pentecostal, querem dar maior consistência e criticalidade à experiência e teologia pentecostais.
Quero pedir licença para fazer ainda alguns comentários periféricos sobre o tema de sua tese de doutorado “Avivamento e Compromisso Social no metodismo do século XVIII na Inglaterra.
Subsídios para o avivamento metodista brasileiro”. Como você já a terminou, tenho a ousadia de colocar um pouco de pimenta no seu vatapá. Acho que você deve conhecer a história que passo a contar, mas, só para relembrar, é nela que em minha opinião reside parte importante dos impasses do movimento pentecostal no Brasil e as respectivas repercussões sobre os avivamentos no meio
metodista brasileiro.
Wesley e o Clube Santo
Creio que você está certo quanto ao problema da dicotomia entre atos de piedade e atos de misericórdia (works of piety and works of mercy), que em Wesley estiveram sempre inseparavelmente juntas, como também em Finney, apesar das matizes calvinistas do mestre avivalista do Oberlin College. Porém, o surgimento do problema reside exatamente no que vai acontecer no interior do movimento de santidade após o grande avivamento de 1857, onde a leiga
metodista Phoebe Palmer jogou um grande papel com sua teologia do altar e santificação instantânea. Desde o final da guerra civil norte-americana uma corrente vai se projetar no interior do movimento de santidade onde acabam por se ressaltar posições doutrinárias não wesleyanas, que terminam por se cristalizar especialmente nas pregações de Moody e do movimento de Keswick nos
Estados Unidos (A.B. Simpson e A.J. Gordon).
O processo de ruptura dentro do movimento de santidade que vai se acentuar no último quadrante do século XIX, que acaba por produzir o avivamento da Rua Azusa, em Los Angeles, desaguou, segundo alguns estudiosos, numa corrente wesleyana e numa corrente reformada. Essas duas correntes não conseguem conviver juntas por muito tempo e já em 1910 começa a rachar o recem
movimento pentecostal. A figura central do conflito é William Durham, que em 1907 recebeu o batismo do Espírito Santo na missão da Rua Azusa sob a liderança de Seymour. Durham foi por certo tempo pastor da North Church, em Chicago, a Meca número dois do pentecostalismo americano, onde Franciscone, Berger e Vigren receberam o batismo do Espírito Santo, e depois em Los Angeles até sua prematura morte em 1912.
Após seu batismo com o Espírito Santo, Durham desenvolveu a teologia da Obra Completa do Calvário (The Finished Work of Calvary), que desqualifica totalmente a doutrina da santificação segundo Wesley, afirmando que nossa santificação está necessária e inseparavelmente já realizada na obra do Calvário. Em 1910 Durham publicamente proclama somente duas obras da graça (two
works of grace) – salvação (que inclui santificação) e batismo do Espírito Santo, diferentemente dos pentecostais de origem wesleyana que aceitavam três obras da graça (the three works of grace) – salvação, santificação e batismo do Espírito Santo. O racha vai envolver principalmente Durham, Seymour, Parham, e, por tabela, Bartleman, quatro dos mais importantes líderes do movimento
pentecostal em sua origem. Mesmo com a morte prematura de Durham, sua tese vai acabar por prevalecer nos círculos pentecostais que deram origem no Brasil à Assembléia de Deus e à Congregação Cristã do Brasil, corrente pentecostal que até o surgimento do neopentecostalismo se tornou hegemônica no Brasil (inclusive prevalecente na Igreja Quadrangular, na Igreja O Brasil para Cristo, e em outras menos votadas como a Wesleyana). Ora a rejeição pelo pentecostalismo clássico da tríplice obra da graça (usando uma alegoria tirada do mundo dos esportes – Paulo, o apóstólo, a usou em suas cartas!), vai chutar para fora de campo a doutrina da santificação wesleyana que se desdobra em atos de piedade e atos de misericórdia, e abre espaço para o legalismo e o moralismo reinantes no pentecostalismo brasileiro do qual o maior representante na atualidade é o missionário David Miranda.
Por outro lado, os setores liberais de igrejas brasileiras com a metodista vão ser profundamente influenciados pelo movimento do Evangelho Social, que, ao lado do movimento de santidade, é o outro filho dos avivamentos americanos da primeira parte do século XIX desenvolvidos sob a inspiração do ensino wesleyano sobre santificação enquanto atos de piedade e misericórdia, inclusive Charles Finney. O problema é que após a guerra civil dos Estados Unidos os dois irmãos
acabam por se rejeitar mutuamente: atos de piedade são a prioridade quase que única do movimento de santidade, enquanto atos de misericórdia passam a ser a preocupação maior do movimento do Evangelho Social.
Para complicar o quadro temos de lembrar que o metodismo sulista norte-americano, ramo do qual procede o metodismo brasileiro, no Concílio Geral de 1894 excomungou o movimento de santidade, excomunhão que levou ao aparecimento das igrejas que posteriormente vão ser o berço do pentecostalismo wesleyano, especialmente entre os negros norte-americanos da parte sudeste dos
Estados Unidos. Estes pentecostais wesleyanos são praticamente desconhecidos no Brasil. Aliás, a maior igreja pentecostal americana é uma igreja negra da vertente pentecostal wesleyana, a Church of God in Christ, que tem mais de seis milhões de membros só aqui nos Estados Unidos. É bom lembrar que a Assembléia de Deus americana tem dois milhões e meio de membros, sendo que mais
de quinhentos mil são hispanos, o único setor que está crescendo dentro da Assembléia americana!
Espero também que seu trabalho, agora ou mais à frente, possa lançar maiores luzes sobre os detalhes históricos e teológicos da participação de metodistas na formação da Igreja do Avivamento Bíblico, da Igreja Quadrangular, da Igreja O Brasil para Cristo, participação esta que até hoje não foi tratada com seriedade, e as questões não esclarecidas que motivaram a formação da Wesleyana.
Tenho a intuição que Ridout, Orr e Jones têm muito a ver com a questão (é importante que os três mencionados avivalistas de maneira geral aceitavam o batismo do Espírito Santo mas rechaçavam as línguas como evidência externa do batismo; creio que entre os metodistas brasileiros Epaminondas Moura e Benedito Natal Quintanilha foram alguns de seus seguidores; Antonio Elias, entre os presbiterianos).
É nessa corrente de encontros e desencontros teológicos, não quanto a experiência pentecostal em si mas quanto à teologia da experiência pentecostal, é que nós metodistas brasileiros acabamos nos achando engolfados porque rachamos em cima de uma teologia que na sua origem já havia rachado
com a corrente wesleyana do pentecostalismo nascente. Na minha opinião, o resultado dessa partida já estava decidido antes do jogo começar. Como já assinalei acima, a situação se complicou mais ainda com o surgimento e crescimento espantoso do neopentecostalismo brasileiro onde há pouco
lugar para o ensino wesleyano sobre santificação entendida como atos de piedade e misericórdia, e agora não é mais o jogo mas o campeonato que é diferente!
Tudo isto me faz perguntar se vale à pena a gente continuar apelando para Wesley, ou não será que estamos diante de uma situação tão nova que exige de todos nós o mesmo rigor e compromisso espiritual, intelectual e pastoral que Wesley teve em seus dias e, assim como o grande gênio wesleyano, descobrirmos novos caminhos teológicos para respaldar a prática de uma espiritualidade que nos capacite a enfrentar com decisão e destemor a crise espiritual e teológica que vivemos em nossos dias?
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Obs: Este artigo pode ser reproduzido desde que seja citada a fonte: www.metodismo.cjb.net
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