Autor: Misael Nascimento
O cristianismo da Reforma estabeleceu um novo paradigma da relação da igreja, e por conseguinte, do cristão com o mundo. A visão medieval do universo era eclesiocêntrica — a igreja abarcava todas as coisas. O mundo era tido como inerentemente mau e tudo precisava ser cristianizado a fim de obter real valor. Por conseguinte, servir como sacerdote religioso ou dedicar-se à igreja como celibatário era tido como mais valioso do que abraçar outra profissão ou constituir família. Não apenas os poderes políticos mas ainda a ciência, as artes e qualquer outra manifestação cultural — tudo devia dobrar-se diante do potestas eclesiae, o poder da igreja.
Os reformadores não foram ingênuos em sua concepção do mundo: a queda afetou a harmonia cósmica, o mundo decaído “jaz no maligno” e o cristão deve empreender uma luta ferrenha contra o mundo, a carne e o diabo. Apesar disso, o mundo é criação de Deus que o sustenta e preserva através de um favor imerecido dispensado a todas as criaturas, inclusive pessoas não regeneradas (graça comum). O mundo não precisa estar debaixo da jurisdição da igreja para encontrar seu sentido; como criação do Senhor, ele possui valor em si mesmo. A retirada de algumas formas de arte da liturgia de culto, por exemplo, não representava a negação da arte em si mesma, mas a liberação desta para encontrar seu lugar em sua legítima esfera, sem necessidade de cristianização. Tudo o que existe , ou seja, a totalidade da cultura, deve ser analisado a partir das Escrituras, mas isso não significa que a cultura deva ser colocada debaixo do cabresto da igreja.
Qual o resultado desta visão reformada? A sexualidade e, por conseguinte, a família, deixaram de ser consideradas males necessários e passaram a ser vistas como bênçãos. Quanto à vocação, o homem percebeu que poderia glorificar a Deus não apenas como sacerdote, mas como sapateiro, professor, policial ou qualquer outra profissão exercida com diligência e honestidade. Nas artes, ocorreu um movimento duplo. Os artistas puderam produzir trabalhos sob novo enfoque. Na pintura, por exemplo, não era mais necessário que todos os quadros retratassem a sagrada família, a via sacra ou temas bíblicos. Passou-se a pintar o ser humano, cenas do cotidiano familiar e a criação. Os cristãos, por sua vez, puderam, com comedimento e sem abrir mão do testemunho e santidade bíblica, ter contato com as artes fora do ambiente eclesiástico. A ciência não precisou mais prestar contas à igreja. O homem inteligente, capacitado pela graça comum, foi liberado para explorar o universo criado por Deus. Enfim, o cristão reformado, firmemente orientado pela Bíblia, era não um homem “religioso”, mas um homem inteiro, vinculado a Deus, movido por fé e conectado à cultura.
Na atualidade, uma parcela do evangelicalismo retorna à mentalidade medieval. Tudo o que não é produzido por evangélicos é pecaminoso; a arte, para ser valorizada, deve ser inserida no culto, após receber uma roupagem cristã. A sexualidade é colorida em tons sombrios e não se consegue realizar uma leitura adequada da ciência como espaço de exploração do mundo criado por Deus.
Temos algo a aprender com a Reforma. Nossos pais reformadores forneceram-nos uma estimulante proposta de integração entre o cristianismo e a cultura.
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