Autor: Darlyson Feitosa
E quem transviar um desses pequeninos, que crêem em mim, mas lhe valia que lhe pendurassem ao pescoço uma pedra de moinho e o jogassem no fundo do mar (Mt 18:6).
Há sempre um assunto polêmico de plantão. Se ele faltar, que seja imediatamente inventado, pois não podemos viver sem ele. O assunto agora é prostituição infantil. Na verdade, esse não é um assunto de agora, mas é agora que mais falamos nele. Talvez parte da ênfase seja oriunda do confuso relatório da ONU (ou, como ela diz, do Ministério do Bem-Estar Social?), que declara haver cerca de 500.000 crianças se prostituindo no Brasil. Ainda que tal número seja questionável, e ainda que o assunto tenha um cheiro de polêmica da hora, não podemos ignorá-lo e dizer simplesmente que isso passará.
Não resta dúvida que este assunto possui o seu epicentro nas questões sociais do nosso país. As soluções hão de vir de leis mais justas, de não aceitação da impunibilidade, enfim, as soluções são compreensivelmente buscadas na própria sociedade, que pode construir mecanismos eficazes no combate à prostituição, seja ela infantil ou não. Contudo, arrisco-me a uma análise, não sociológica, mas teológica sobre o assunto.
Por razões desconhecidas, comumente encontramos declarações sobre a prostituição infantil a partir de uma ação reflexiva, ou seja, as crianças são agentes e receptores do processo. Essa declaração é simplesmente exposta na expressão “crianças se prostituindo”. Conquanto de fato as crianças adotem uma participação ativa, ou seja, elas agem em prol e são instrumentos da prostituição, penso que a expressão é inadequada, pois ela se configura com muito mais clareza na voz passiva: “crianças são prostituídas”. Há um agente muito maior por trás da ação infantil, e esse agente é de igual forma prostituto, sem que sobre ele pese o estigma que o termo carrega. Sabemos de declarações de garotos e garotas de programa que é comum o atendimento a duas, três ou quatro pessoas por noite. Ora, para cada criança que está na “se prostituindo”, há um número quase que imensurável de clientes que patrocinam ativamente a prostituição. Pode-se até imaginar a existência de um poder quase que incontrolável a fazer pressão nas crianças que, geralmente carentes, não possuem mecanismos para rejeitar as propostas que lhes são feitas. O ponto que quero aqui enfatizar é este: a prostituição infantil é, em sua maior parte, oriunda do desejo sexual desenfreado dos prostitutos disfarçados, e muitas vezes nem tão disfarçados assim. Para cada menina que mostra o seu corpo, há muito mais adultos, bem vestidos, a patrocinar o comércio do sexo.
Encontramo-nos, então, diante de um problema com implicações teológicas, pois o cristianismo pauta a sua essência do significado do Reino de Deus em cima de uma suposta inocência e fé infantil. Disse Jesus que o Reino de Deus pertence às crianças (Mc 10:14). É Mateus quem nos informa sobre a presença de crença entre as crianças mencionadas por Jesus, o que implica num mínimo de lucidez por parte delas (Mt 18:6). O texto bíblico não parece se referir a crianças recém-nascidas. Poderiam muito bem ser meninas de 12 anos, que conforme a tendência dos dias atuais, passarão a ser consideradas como moças – leia-se: ser consideradas adultas para poderem ter relações sexuais com quem quiserem ou, na maioria das vezes, com quem elas realmente não querem, mas têm! Eis que esta base de entendimento sobre a natureza do Reino de Deus, isto é, a fé infantil, está sendo colocada em cheque em escala cada vez maior, pois as crianças estão sendo desviadas do curso da fé para o curso do sexo. Uma das principais bases de entendimento da natureza no Reino de Deus está sendo literalmente transviada.
Pergunta-se, pois: possui a Igreja cristã mecanismos para resgatar o valor dessa sua base de compreensão do Reino, a de que só entraremos no Reino de Deus se a nossa fé for como a fé infantil, esteriotipada numa criança que Jesus colocou em seu colo? A resposta deve ser positiva. Conforme a introdução desse assunto, não há nada de desmerecedor nas soluções sociais, políticas ou econômicas para o problema da prostituição infantil. Que elas sejam incessantemente buscadas. Mas é tarefa da Igreja também apresentar soluções teológicas para a maldade que existe na sociedade, no ser humano. Quando a teologia exposta pela Igreja cristã se afasta da doutrina bíblica, a Igreja apresenta a sua pregação retórica de amor e igualdade, mas ela chega como o címbalo que retine: falta amor. Ademais, a Igreja tem visto ao longo das décadas e dos séculos a sua teologia vir a reboque da história, das transformações sociais, e há muito se perdeu a perspectiva profética, aquela que antevê a realidade espiritual e apresenta as suas soluções espirituais. Estamos sempre enfrentando problemas, muitas vezes sem respostas para eles, outras vezes tentando uma modernidade teológica, mas não sem constrangimentos, como o caso de muitos teólogos sugerirem uma releitura da Bíblia.
A prostituição infantil deve lembrar à Igreja sobre a realidade pecaminosa da humanidade e que o problema do mal ainda é presente em nossos dias. Estaria Deus “permitindo” que crianças – as benditas crianças, objeto de seu profundo amor – estejam sendo prostituídas em larga escala no Brasil e no mundo? A questão teológica mais fácil é aceitar um dualismo: o Diabo existe e está fazendo sexo à vontade! Contudo, essa aparente facilidade acaba complicando mais as coisas, pois é como se Deus estivesse sendo derrotado nessas 500.000 crianças, mesmo sendo esse um número exagerado. Também a questão seria mais facilmente vista se admitíssemos que Deus estaria punindo – tanto os que prostituem como os que são prostituídos. Mas isso representaria muita punição para pouco efeito, e uma configuração de um tribunal injusto: o mais fraco é o mais punido. De modo que esta também é uma possibilidade difícil de aceitarmos. Não poderia Deus simplesmente fazer cessar tanta maldade, como freqüentemente as orações e rezas pedem? Isso seria a antecipação escatológica: o fim dos tempos, com a separação explícita dos homens maus e bons, teria que acontecer agora. Mas diz a Bíblia que a lágrima só cessará no céu, na presença de Deus.
Pois bem, a resposta teológica que a Igreja cristã pode dar não é nenhuma novidade, mas é incrivelmente esquecida: o homem é responsável pelos seus atos e é essa responsabilidade que lhe será requerida em sua apresentação diante de Deus. A Igreja precisa urgentemente de uma teologia que deixe transparecer o contraste entre a pureza do Cristo e a maldade humana. Não podemos ficar dando glórias a Deus em nossa redoma sem a percepção de que das crianças é o Reino de Deus – e elas estão sendo prostituídas. Parece ser cada vez claro a nossa falha no discipulado, cujo padrão se encontra expresso na palavra de Deus, que nos manda ensinar aos homens todas as coisas que Jesus mesmo ensinou aos seus discípulos – como por exemplo, de que não devemos impedir o acesso das crianças ao Senhor, porque delas é o Reino de Deus. Se os homens não têm sido ensinados pela Igreja, acabamos por contribuir para que a maldade prolifere.
É teologicamente correto esperarmos um poder interventor de Deus, mas é também correto que a nossa teologia nos inclua como instrumentos do poder interventor de Deus para as transformações das aberrações sociais. E nessa instrumentalidade, a nossa teologia deve ser de tal modo correta, a ponto de equilibrarmos os dois lados da questão: essa pessoa que prostitui crianças, que merece ser afogada no mar, com uma pedra lhe prendendo o corpo para que ninguém o ache, merece ser resgatada do poder da carne para o poder do Espírito.
(1) Artigo escrito originalmente em 1996. O problema continua!
visite ainda www.sermao.com.br
Faça um comentário