Autor: Henrique Graciano Murachco
A cultura helênica exerceu uma influência fundamental no surgimento e na difusão da religião cristã — inclusive concebendo a noção de um Deus supremo, geralmente vista como exclusividade do monoteísmo hebraico
Zeus, princípio de tudo,
de todos condutor.
Zeus, eu te dedico
este princípio dos hinos.
Terpandro (século 7 antes de Cristo)
É comum a afirmação de que nós, os ocidentais, vivemos uma cultura cristã, ou, mais precisamente, uma cultura judaico-cristã, porque, efetivamente, o cristianismo sempre foi sentido como uma continuação do judaísmo. Esse não é o ponto de vista de todos os que praticam a religião judaica, mas é o ponto de vista de todos os que praticam a religião cristã, sob qualquer denominação ou fragmentação que seja. A partir do século 16, a Reforma luterana provocou inúmeros desdobramentos, havendo denominações que negam a divindade de Jesus e pregam o retorno simples e integral ao Antigo Testamento.
Contudo, nem Jesus nem seus seguidores imediatos pretendiam romper com o judaísmo, negar os livros sagrados, as profecias e as tradições judaicas. Jesus é a realização das profecias e os apóstolos pretendiam manter essa linha de pensamento.
Há um outro fato também que completa esse: a versão dos livros do Antigo Testamento que circula "em toda a terra habitada" é em grego, a chamada edição dos Septuaginta, que foi incorporada ao pensamento cristão, porque em nenhum momento os cristãos negam os livros da religião judaica. E quando começam a circular os textos dos seguidores de Jesus, como os três Evangelhos sinóticos, o Pastor de Hermas, a Didaquê, as epístolas dos apóstolos, sobretudo as de Paulo, a língua veicular é a língua grega, a língua comum do Mediterrâneo desde as conquistas de Alexandre.
Essa língua comum tem uma importância capital para a cultura judaico-cristã. A tradução dos Septuaginta foi um projeto político muito claro dos rabinos helenizados: eles sabiam muito bem que, se não traduzissem para a "língua comum" os livros que fundamentavam a religião do "povo eleito por Deus", em pouco tempo a religião judaica ficaria restrita à área geográfica da Terra de Canaã, a Palestina, porque os judeus da Diáspora, isto é, os que foram se instalar por toda a margem do Mediterrâneo, não falavam mais a língua dos antepassados e por isso não conservariam mais as tradições do povo judeu. Essa tradução, no entanto, não foi um ato propagandístico, porque os judeus nunca tiveram tendências conquistadoras ou expansionistas. O que eles queriam era apenas, depois de encontrar a Terra Prometida, manter sua identidade de povo de Deus, fechando-se na sua língua, seus costumes, sua religião.
Mas, com os seguidores de Jesus, o episódio de Pentecostes e a mensagem "ide e ensinai a todos os povos", muda radicalmente a trajetória desse judeu-cristianismo, não só introduzindo uma nova visão sobre a missão do povo de Deus, a do apostolado, mas também porque o veículo da transmissão desses ensinamentos é a língua grega, que imprime nesses ensinamentos o caráter de sua cultura milenar e serve como instrumento perfeito para a comunicação das novas idéias.
Por isso podemos afirmar que a civilização ocidental não é apenas judaico-cristã, mas sim uma civilização greco-judaico-cristã, à qual os latinos trouxeram apenas sua organização política e o direito romano. A língua grega, contudo, não é apenas a "língua técnica", como o inglês é hoje para a difusão da tecnologia, para a chamada media, num nível apenas superficial, mecânico. A língua grega, que foi o único instrumento da divulgação do cristianismo pelo menos até o final do século 2, mesmo em Roma (o primeiro padre da Igreja latino foi Tertuliano), é uma língua que, trabalhada pela retórica e pelos sofistas, sobretudo Górgias, tornou-se o instrumento perfeito para transmitir todas as possibilidades do pensamento do homem. É a língua de que se serve o professor de retórica, Paulo, de que se servem os apologistas (todos de formação filosófica e retórica sólida) e os filósofos-teólogos, Orígenes e Clemente de Alexandria, entre outros. Ela tem o vocabulário adequado, ela tem a morfo-sintaxe adequada para exprimir claramente os conceitos filosóficos, teológicos da nova doutrina, da nova visão do mundo, que, em quatro séculos, contaminou e dominou toda a bacia do Mediterrâneo.
A mente grega e as heresias
Mas, se essa dominação, do ponto de vista instrumental, foi facilitada pela perfeição da língua grega, sob o ponto de vista doutrinário foi problemática, por causa da mente grega. Todos nós sabemos que o que chamamos de Grécia foi um fenômeno ímpar na história da humanidade. Aos gregos devemos toda a ciência, a sabedoria e a arte ocidentais. Não quero negar com isso a antigüidade e a influência da ciência, sabedoria e arte dos babilônios, sumérios, egípcios, caldeus e outros povos antigos. Mas, se não fossem os gregos, essa ciência, essa sabedoria, essa arte teriam ficado como estavam: em poder das castas sacerdotais, em geral vinculadas ou dependentes às casas reais, isto é, às castas detentoras do poder, a quem não interessava a divulgação do saber.
Foi a mente especulativa dos gregos e o culto da palavra — isto é, o veículo dessa especulação, o logos — que a puseram ao alcance de todos e de cada um, através do raciocínio dialético, pelo método hipotético, em que "não se raciocina a partir do quadrado em si, mas a partir da idéia (visão) do quadrado, e se chega ao espaço não hipotético, à idéia (visão) absoluta do Bem e da Ciência". Essa operação da alma só pode ser realizada por indivíduos livres, não submissos ou vinculados a um poder centralizador, hierático, detentor da verdade. Esse homem livre só pode existir na pólis grega.
Um outro fator, que é um componente essencial dessa mente livre e especulativa (e é livre porque especulativa), é a ausência de uma hierarquia religiosa. Não há um poder religioso da Grécia. Por isso não podemos falar de uma "religião grega ou religião da Grécia", mas sim da religiosidade dos gregos e na Grécia.
É interessante lembrar o que aconteceu por volta de 361 da nossa era. O imperador Juliano, observando como o cristianismo se organizava e se hierarquizava, fortalecendo suas decisões num poder central — em que as figuras do sumo sacerdote judaico e a do summus pontifex se fundiam —, pensou em fazer o mesmo com o paganismo, mas percebeu, não sem espanto, que isso era impossível de ser realizado porque entre os sacerdotes pagãos não há a idéia de um cânon central e muito menos de uma autoridade suprema. Cada santuário, cada local de culto, tem suas vinculações com essa ou aquela tradição, ligadas ao culto de uma divindade ou a um herói, mas de uma maneira autônoma e independente, o que nos leva a uma idéia de um panteísmo grego ou a um politeísmo.
Esse fato é produto do caráter independente da mente grega e exerce uma influência considerável no período da expansão e difusão do cristianismo. Ele é certamente a causa das inúmeras "heresias" que começam a surgir imediatamente. Não é obra do acaso o fato de que todas as "heresias" até o fim do século 4 surgiram em território grego e foram provocadas por intelectuais gregos, na parte oriental do Mediterrâneo. O cristianismo ocidental, latino, foi mais policiado, mais obediente, menos especulativo, menos "herético".
O Deus supremo
Apesar disso, verificamos constantemente nos autores clássicos — como Homero, Platão e Eurípedes, entre outros — uma referência convergente a um Deus supremo, para o qual se dirigem todos os outros e a partir do qual derivam tudo e todos. A idéia do Deus supremo, único, poderoso, senhor dos deuses e dos homens é constante em toda a tradição grega, a começar da mais clara e evidente, em Homero:
Vós conhecereis a seguir o quanto eu sou o mais forte de todos. Vamos, tentai, deuses, para que saibais todos. Suspendei uma corrente do céu até o chão e todos vós, deuses e deusas, agarrai-vos a ela. Mas não poderíeis puxar do céu à terra Zeus, o mais sábio de todos, nem mesmo que muito vos esforceis. Mas, no momento em que eu, disposto, quisesse puxar, eu puxaria junto com a própria terra e o mar e o amarraria em torno do pico do Olimpo, e elas todas ficariam pendentes. A tal ponto eu estou acima dos deuses e dos homens (Ilíada, VIII, 17-27).
Essa citação da Ilíada serve de modelo para inúmeras outras. Embora elas falem dos 12 deuses olímpicos, ou de todo o conjunto dos deuses, na verdade vemos sempre a figura centralizadora e elevada de Zeus. Vejamos o verso 533 do canto I da Ilíada:
E Zeus (dirigiu-se) para seus aposentos. E os deuses ao mesmo tempo se levantaram dos assentos diante de seu pai. E nenhum ousou esperar o que chegava. Ao contrário, todos eles se levantaram diante dele.
Essa cena, em particular, é significativa. Mas em todas as outras passagens sobressai a figura de Zeus, acima e distante de todos os outros. Diante dele nenhum ousa permanecer sentado.
Muito significativos também são os inúmeros epítetos atribuídos a Zeus — "cuja vista se estende ao longe, de longínqua visão", "mestre dos conselhos, autor dos conselhos", "reunidor de nuvens", "extremamente poderoso, hiperpoderoso", "muito glorioso", "que faz estrondos nas alturas". Há uma constante neles: as qualidades e atributos no superlativo. Muito acima de todos os outros deuses. Isso nos permite pensar que há, já em Homero, essa idéia do deus supremo, que governa tudo e todos, pai dos deuses e dos homens.
Assim, a oposição "paganismo-cristianismo" e "politeísmo-monoteísmo", se foi muito usada — mesmo abusivamente nos discursos apologéticos na propagação do cristianismo —, não deve mais ser usada agora, pelo menos com a mesma intensidade e radicalismo. Na verdade, a idéia de um Deus supremo, não um Deus único, exclusivo, mas o mais poderoso e mais alto, é mais antiga e mais comum do que se pensa.
Henrique Graciano Murachco é professor de Língua Grega do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Pode-se negar que todos os membros da igreja patrística eram gregos e anti-judaicos? Pode-se negar a inexistência de contemporâneos deles engajados na causa cristã que fossem judeus? Pode-se negar que foram os gregos que estiveram na liderança do cristianismo durante séculos? Pode-se negar que toda documentação cristã foi escrita em grego por este motivo? Pode-se negar que são os gregos e somente eles os narradores da história do cristianismo? Pode-se negar que o silêncio da história inclui também documentos judeus relacionados à formação do cristianismo? Pode-se negar que o Ocidente foi induzido a procurar respostas juntos aos judeus porque assim nada seria encontrado? Não, nada disso pode ser negado. No entanto, quando não é descaradamente negado, é desconhecido propositalmente porque esta não é a versão oficial, e tais fatos organizados incomodam demais àqueles que zelam pela farsa. http://www.scribd.com/doc/53745320/A-triste-comedia-academica