A Missão profética social da igreja

Autor: Arifranklin Sousa

REAVALIANDO O CONCEITO DE MISSÃO

1.. Um Novo Conceito de Missão ?

Muito se tem falado em nossos dias sobre o verdadeiro sentido da missão da Igreja. Especulações de diversos ramos evangelicais têm ao longo do tempo, forjado diversas teorias sobre esse tão importante assunto. Deste modo, não é pretensão de nossa parte a criação de mais um novo conceito de missão; mas, sobre tudo, o de encontrarmos na Teologia Bíblica toda a sua legítima e real significância.
O termo missão deriva da palavra latina missio (enviar), referindo-se à proclamação do evangelho a todos os homens em todas as partes do mundo. Uma vez que ela objetiva a conversão das nações em todos os tempos (Mateus 28. 19.20; Atos 1.8), o envio de missionários é de máxima importância. A interpretação atual da missão vê esta atividade da igreja como parte da missio Dei, o Deus triúno propondo-se a reconciliar o mundo consigo por meio de Cristo. Assim como o Pai envia seu Filho, assim Eles enviam a igreja sob a direção e a inspiração do Espírito Santo. A missão é um instrumento da ação divina na história para a consumação de seus propósitos para s criaturas humanas. Bosh afirma: “A missão tem sua origem no coração de Deus. Ele é uma fonte da qual mana amor. Esta é a mais profunda origem da missão. É impossível penetrar ainda mais fundo; há missão porque Deus ama as pessoas.”
Nosso ponto de partida é o fato de que missão está intrinsecamente subordinada ao Reino de Deus; sendo o seu objetivo único, a proclamação deste. Devemos entender que Missão não é a simples “proclamação” do plano redentor salvífico; mas também, a proclamação de todos os atributos que constituem este Reino. Desta feita, é totalmente inconseqüente e infundada a simples pregação do Evangelho tal como é feita em nossos dias: o Evangelho que salva a alma, mas que não salva o corpo (aspecto social), e tão pouco a mente (aspecto emocional). Isto seria ao nosso ver, reduzir o amplo conceito de missão à evangelização (em sua forma catequética ou puramente proselitista). Segundo Costas: “evangelizar é participar de uma ação transformadora, isto é, a boa-nova de salvação. Neste sentido, a evangelização não é um conceito, mas sim uma tarefa dinâmica, encarnada primeiro na vida e ação salvífica de Jesus Cristo. Portanto, ela não pode ser reduzida a uma fórmula verbal. Evangelizar é reproduzir pelo poder do Espírito Santo a salvação que foi revelada em Jesus Cristo.”
O conceito de Missão como puramente o envio de missionários a terras distantes (ainda não cristianizadas), perde seu sentido obsoleto; pois baseia-se tão somente em uma hermenêutica sensacionalista do ‘além mar’, que nada mais é que uma continuação da teologia de missões (catequética) da Igreja Romana desde seu período medieval. Tal conceito, difunde-se principalmente através das “agências” missionárias que têm seu nascimento na omissão da Igreja, a quem Cristo realmente comissionou para tal missão. Desta feita, os movimentos paraeclesiásticos (que crescem dia a dia assustadoramente), cumprem de fato, distorcida e imperfeitamente, aquilo que de direito pertence exclusivamente a Igreja de Cristo na terra.
Não obstante a isso, a Igreja que ora vive ainda intensamente este conceito errôneo das Missões, tem se despertado enfim para o cumprimento da Grande “Missão”; missão esta, integral e legitimamente Escriturística. Um conceito defendido e explorado a partir do glorioso Congresso Internacional de Evangelização Mundial em Lausanne, Suiça, de 16 a 25 de julho de 1974. Onde a Missão tomou o seu sentido mais amplo, como aquela que exerce atividade profética sobre a sociedade; pregando o evangelho de Cristo aplicando seu conteúdo em todos os seguimentos da sociedade, como na luta contra as misérias sociais, corrupção política, econômica, etc. Segundo Stephen Neill: “a era das missões chegou ao fim, começou a era da Missão”. Sendo assim, a Missão tem sua essência voltada para o alcance não apenas do homem pecador (indivíduo), mas, também, para o alcance da sociedade pecadora; onde estão “todos os eleitos” de Deus. Diante disso, entendemos e optamos por este conceito, defendido a partir de Lausanne, crendo ser este fruto de uma verdadeira e reformada teologia bíblica; com frutos que evidenciem o Reino de Deus, tal como acontecera na Genebra dos dias de Calvino; influenciada em todos os âmbitos sociais pelo ministério profético social da reforma, liderada por ele.

b.. A Missão Como uma Atividade Profética

Ao compreendermos o sentido de Missão em toda a sua plenitude, poderemos observar que esta, toma sobre si a qualidade de Missão Profética. O que implica em dizer que a exemplo do ministério profético descrito nas Escrituras Sagradas, na qual o profeta era o indivíduo levantado por Deus para representá-lo como “porta-voz”, isto é, um agente dos desígnios de Yahweh; a Missão é em si uma ação profética, pois tem por objetivo anunciar os desígnios de Deus a este mundo tenebroso; corrompido em todos os seus seguimentos pela ação do pecado no homem e pela astúcia de Satanás. Os valores e princípios do Reino e a Mensagem da Cruz, são a mensagem a ser proclamada. Diante disso a Igreja destaca-se como a grande profetiza do Reino. A escolhida e vocacionada por Deus para tamanha e gloriosa obra, que nem aos anjos fora permitido realizar.
Segundo A. A. van Ruler; “… A missão deve ser vista como a proclamação do Reino de Deus como Reino de Cristo a cada novo povo e em cada época nova. Assim, o tempo passa a ser entendido historicamente deste esxaton: o Reino de Deus.”
Deste ponto vista, podemos concluir que a Missão compreende uma continuação do ministério profético de Israel; que antes não apenas tratava dos assuntos peculiares a este povo, mas também proclamava a salvação futura aos gentios, por meio de Cristo Jesus, o Messias prometido (cf. Is 41,49,56, etc.). Sendo assim, podemos afirmar categoricamente que o profetismo fora um meio singular (quanto a sua eficácia) pelo qual Deus tem falado ao homem ao longo do desdobramento do plano salvífico na história humana.
No contexto em que vivia, o profeta não apenas declarava o pecado e a maldade de sua geração como também era o proclamador da salvação ao seu povo, além de toda sorte de livramentos oferecidos por Deus ao mesmo. Desta feita, a missão (como profética) anuncia em cada povo, em cada momento da história, a soberania de Deus e seus decretos eternos e imutáveis. Não havendo, portanto, espaço para uma missiologia terapêutica, que massageia o ego humano com sua mensagem sedutora do sucesso contínuo, do inabalável, da vida sem doenças, dificuldades, etc. Além do mais, o ministério profético requer responsabilidade social daquele que anuncia os decretos de Deus. O profeta não é alguém alheio a realidade em que vive, ou puramente indiferente a ela. Ele deveria ser de todo (a medida do possível) notório em todos os seus feitos; sendo, portanto, exemplo de frutos de justiça.
O livro de Lamentações expressa a dor do profeta Jeremias pela ruína social de seu povo. A mensagem empregada por Jeremias era ao mesmo tempo que salvífica: social, política e cultural. E todos estes são valores e diretrizes que de maneira alguma, devem estar ausentes da missão entendida como um todo. A Igreja torna-se agora, não mais uma simples proclamadora indiferente a sua realidade; mas sim, uma agência de promoção do bem estar social como um todo. Contudo, devemos esclarecer que tudo isto nada tem haver com (por exemplo), a teologia da libertação, que na verdade nada mais é que uma “teologia” marxista; deixando de lado o evangelho de Cristo e o Reino como centralidade da história, para colocar nesse eixo o social e a política como um fim em si mesmo. Para estes, o cristão teria a sua fé apenas como motivação, seguindo o programa dos partidos (na política), igual aos não cristãos, porque “hoje o espírito que preside a presença dos cristãos na vida política partidária não é mais conduzido em função da Igreja, mas em função do povo e dos pobres”.
Minimizando o papel da revelação e da transcendência, da dimensão espiritual ou mística da experiência religiosa, os teólogos da libertação, com um implícito universalismo, reduzem igualmente a distinção entre Igreja e mundo, o campo missionário e a agência missionária. “Com uma escatologia do tipo pós-milenista, um esvaziamento da identidade cristã, e o privilegiar de certos marcos teóricos e propostas seculares, essa corrente de pensamento mais se aproxima do campo das teorias políticas do que da Teologia como historicamente entendida.”
Na teologia reformada, a teologia profética da missão está baseada em pelo menos 8 (oito) alicerces escriturísticos, a saber: a Soberania de Deus, a Trindade, a Predestinação, a Depravação Humana, a Eleição Incondicional, a Expiação Limitada, a Graça Irresistível , a Perseverança dos Santos, e como alvo de tudo: A Glória de Deus. Todos estes pontos constituem os pilares da conceito calvinista (que é essencialmente bíblico e teocêntrico), que abrange “todo o desígnio de Deus”(At 20.27) Evangelizar (proclamar) é anunciar todo o desígnio de Deus; é “pregar aos gentios o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo”(Ef 3.8); é anunciar “o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade”(Ef 1.11).
A Soberania de Deus na salvação requer a evangelização… As missões são necessárias. A Igreja precisa realizar a sua tarefa evangelística, anunciando os propósitos de Deus; mas quando digo Igreja, penso no corpo de Cristo, que é uma operação do Espírito. A Igreja precisa ser missionária, anunciando que há um propósito de Deus para o mundo e que Jesus é o Senhor e Salvador.

c.. A Missão Profética como Agente de Transformação Social

Depois de compreendermos o sentido real e original da Missão, podemos entender que o fator que irá legitimar o verdadeiro Evangelho e por conseguinte sua verdadeira forma de proclamação, são os frutos produzidos por estes em cada povo, raça ou etnia da face da terra. Devemos entender que não fomos chamados para a alienação social; pelo contrário, fomos vocacionados para proferir todas as mudanças e transformações produzidas pelo evangelho no seio da terra. O cristão precisa estar presente no contexto da vida social, para ser o elemento influenciador, saneador e referencial. A Bíblia fala de homens santos que exerceram grande influência na história porque se envolveram nos assuntos seculares, como José do Egito, Daniel, Neemias e tantos outros. A igreja é a luz do mundo e não a sombra da história. A igreja deve ser a consciência do mundo e não uma inocente útil nas mãos dos poderosos deste século. Jesus é para nós o grande modelo. Ele veio do céu. Era do céu. Voltou para o céu. Vivia Segunda as leis do céu. Mas, jamais foi desinteressado pelo problemas da terra. Ele viveu intensamente o seu tempo, envolvido nos grandes dramas que afetavam as pessoas. Ele viveu no meio do povo. Ele tinha cheiro de gente. Ele percorria as cidades, cruzava as aldeias, entrava nas casas e tomava refeição com os pecadores escorraçados pelo legalismo fariseu. Ele conversava com prostitutas, abraçava as crianças, tocava os leprosos, curava os enfermos e libertava os oprimidos e pocessos de espíritos malignos. Seu ministério se deu na rua, na praia, no campo, nos lares. Ele não se fechou num religiosismo estreito nem abraçou uma espiritualidade alienadora. Pelo contrário, onde Jesus estava, o ambiente era impactado pela sua santa presença. As pessoas eram tocadas pelas suas santas palavras e abençoadas pela sua ação poderosa. É assim que também viveram os profetas de Deus. É assim que viveram os apóstolos de Cristo. É assim que a igreja deve viver.
Não podemos cair no erro dos pietistas do século XVII, que supervalorizavam as coisas espirituais em detrimento das coisas terrenas. Tão pouco podemos cair numa praxes puramente proselitista, como o modelo da Missão Catequética. Que consistia tão somente na suposta evangelização das terras pagãs colonizadas pelo poderio das grandes nações católicas da idade medieval (como: Portugal e Espanha), que visava a conversão compulsiva dos nativos à “santa fé católica”.
Introduzindo pelo exercício da força e da escravidão a que eram submetidos, todos os preceitos e valores da nova religião, fruto da tirania e da ganância que marcaram época.
Como profetas do Reino, precisamos ter um coração sensível e compassivo, capaz de converter piedade religiosa em ação concreta e factível de ajuda ao necessitado. Precisamos ultrapassar a fronteira do sentimentalismo piegas que é capaz de chorar diante da dor alheia, mas é incapaz de mover uma palha para aliviar essa dor e ajudar a pessoa aflita. Essa é nossa missão : “sermos influenciadores sociais”. Dentro desse contexto, a igreja se destaca como a grande portadora das virtudes celestiais. Herdeira da vida, da justiça, da paz,do real prazer e da alegria, enfim, de tudo aquilo que provém única e exclusivamente de Deus.
Não basta à igreja fazer belos discursos sobre o amor de Deus, se ela não representa o braço da misericórdia divina na vida dos aflitos e necessitados. Precisamos entender que nós somos corpo de Cristo na terra. Jesus fala a um pecador moribundo através de nossa boca. Ele visita o enfermo quando vamos ao seu encontro no leito de dor. Ele alimenta o faminto quando abrimos a mão e a despensa da nossa casa par socorrê-lo.
Sendo assim, entendemos que o objetivo maior da missão é a transformação: espiritual e social. É a proclamação do evangelho que transforma o interior do homem, levando-o a exteriorizar os frutos de uma vida em Cristo. A transformação social incitada pela prática do evangelho integral, ocorre a partir do momento em que não desassociamos a prática do evangelho, isto é, a proclamação (evangelização), da responsabilidade social.
É honroso para o servo de Deus, e constitui um dever imposto a cada um de nós, tentar a infiltração dos nossos padrões evangélicos na consciência do povo e até nos sistemas econômicos, políticos e sociais. Isto se faz através do nosso testemunho falado ou escrito e até por meio de entidades ou grupos tecnicamente organizados, os quais poderão exercer grande influência entre as diversas classes profissionais.
Não faz mal repisar que jamais a Igreja pensou tanto na sua responsabilidade social. Estudos aprofundados na Palavra de Deus têm levado muitos cristãos a compreender melhor a sua responsabilidade perante as necessidades do mundo em que vivemos. Como resultado desses estudos, muitos são levados para mais perto do Senhor Jesus e têm sentido que, quanto mais se aproximam do seu Senhor, maior compreensão têm do mundo e das suas realidades.
Ao proclamar-mos o evangelho a um povo, damos início a um processo de revolução social. Isto é, transmitimos aquela sociedade todos os valores absolutos do reino: sua justiça, sua ética, sua moral, etc. ” Em seu sentido mais amplo, a missão é o que a igreja faz a serviço do reino de Deus”. Desta feita compreendemos que a missão (como ordenança divina) é a aplicação do evangelho integral ao homem integral.

1.. O FUNDAMENTO VÉTERO TESTAMENTÁRIO

Ao considera-mos o que a Bíblia tem a dizer sobre o evangelicalismo e a prática social, temos a tendência de olhar apenas para o Novo Testamento, para a Grande  Comissão, o livro de Atos dos Apóstolos e o testemunho da Igreja que se formava. Entretanto, há no Velho Testamento considerável ênfase sobre o povo da aliança, que estava diante das práticas malignas das nações pagãs que o cercavam, e diante do desejo de Deus de que ele fosse um povo missionário. Numerosas passagens do Velho Testamento lembram-nos que o povo de Deus não deveria ser um povo religioso exclusivista. Foi dito a Abraão que não somente seu clã seria abençoado, mas também seriam “benditas todas as famílias da terra”(Gn 22.18). Segundo J. D. Banvinck: À primeira vista, o Velho Testamento parece oferecer pouca base para a idéia de missão. … Entretanto, se investigarmos o Velho Testamento com mais abrangência, torna-se claro que o futuro das nações é um ponto de maior interesse. … Isto naturalmente não pode ser de outra forma, pois desde a primeira página da Bíblia até a última todo mundo é incluído, e seu plano divino de salvação é revelado como pertencente a todo o mundo.
Abraão e seus descendentes deviam ser missionários e canais das bênçãos de Deus para as outras nações. O povo de Israel devia observar os mandamento de Deus como povo da aliança, a fim de transmitir os valores espirituais às nações ao seu redor. É certamente mais do que coincidente que a trombeta obrante anunciasse o jubileu no ano da expiação (Lv 25.9). a reconciliação com Deus é a pré-condição para a reconciliação com os irmãos e irmãs. A verdadeira reconciliação com Deus leva inevitavelmente à transformação de todos os outros relacionamentos. Da aliança mosaica às promessas do evangelho, a Bíblia está continuamente apontando para o pobre, a viúva, o órfão, o estrangeiro, o necessitado e o oprimido. O Velho Testamento revela vários fatos significativos acerca da atitude de Deus para com o pobre. “Ele acode ao necessitado que clama, também ao aflito e ao desvalido. Ele tem piedade do fraco e do necessitado, e salva a alma dos indigentes” (Sl 9.12). “O Senhor não se esquece do clamor dos aflitos”. (Sl 72.12-13). “Foste a fortaleza do pobre, e a fortaleza do necessitado na sua angústia”(Is 25.4). Na ordem social do Velho testamento, o pobre recebia um benefício econômico. O povo devia emprestar liberalmente ao pobre, sem cobrar juros (Dt 15.7-11; Ex 22.25). Parte do trigo e da colheita da uva deveria ser deixada no campo, para ficar para o pobre (Lv 19.9,10; 23.22). De modo significante, parte do propósito do dízimo era promover a carência do pobre (Dt 14.29; 26.12,13). O Velho Testamento enfatiza que Deus requerer justiça para o pobre e julgará aqueles que o oprimirem. As palavra de Deus ao profeta Zacarias são representativas : “Executai juízo verdadeiro, mostrai bondade e misericórdia cada um a seu irmão; não oprimais a viúva, nem o órfão,nem o estrangeiro, nem o pobre”(Zc 7.9,20; Lv 19.15; Dt 16.18,20; 24.14,22); Pv 31.9; Am 2.6,7). Finalmente, o Velho testamento ensina que o povo de Deus tem sobre si uma responsabilidade ética para com pobre. A recordação de sua escravidão no Egito foi o motivo para que os israelitas demonstrassem misericórdia para com o oprimido (Dt 24.17-22). Todos estes ensinos sobre o pobre são parte da Palavra de Deus. Embora eles estejam ligados aos contextos históricos específicos, a mensagem ética brilha amplamente e forma o cenário dos ensinos e atitudes do próprio Jesus. No velho Testamento a atenção divina para com o pobre aparece consistentemente dentro do contexto da justiça de Deus e a obra de justiça no meio de seu povo. Assim, biblicamente, palavras como pobre, necessitado, oprimido, forasteiro têm tipicamente um conteúdo moral, relacionado com a exigência divina por justiça.
Além destes preceitos, a própria aliança de Deus com o povo refletia seu caráter missionário. Deus entra em um relacionamento especial com um povo específico. E este relacionamento de aliança é recíproco, embora o chamado para ele não seja. Enquanto só Deus escolhe, tanto Ele quanto seu povo se comprometem. O povo de Deus responde ao Dom gratuito com sua lealdade, sua devoção, seu amor e sua obediência; numa só palavra, com seu hesedh.
Tal compromisso do povo de Deus serve um propósito missionário. Esse será “separado”, isto é, santo, do mundo, e para Deus, sim, para Deus usá-lo no mundo. Sua vida e conduta toda deve dar testemunho para as nações do caráter de Deus. Tanto o sistema de sacrifícios quanto a lei destacam o papel missionário do povo de deus. Os sacrifícios demonstram que só Deus deve ser cultuado e também revelam a distância do povo em relação a Deus. Seguindo a lei, o povo confirma sua resposta de compromisso com a aliança e reflete o caráter de deus no mundo. É significante que este caráter seja refletido por uma ética com grandes preocupações sociais, pelo estrangeiro, pela viúva e pelo órfão, e pelo pobres. Deus é um Deus justo e tal justiça deve se manifestar entre seu povo.
Não era só a ética pessoal e individual do povo que refletia o caráter de Deus para o mundo; mais ainda, era a sua ética social. Aliás, tal distinção tão nítida nem existia para o israelita, como se fosse possível um sem o outro. Para o hebreu existe apenas uma palavra para o nosso conceito tanto de “retidão”(pessoal) quanto de “justiça” (social), a palavra mishpât.
Deus chama um povo específico para manifestar seu caráter de compaixão e justiça no mundo e assim chamar o mundo a glorificá-lo.
A justiça e a ação social eram intrínsecos na vida do povo eleito de Deus. Pois como testemunho vivo, a sociedade israelita deveria irradiar a presença de Deus em seu meio, evidenciando em suas ações uma postura fruto de um governo Teocrático.
Porém, é diante do contínuo pecado do povo, o que acarretou no declínio social, ético e moral que surge o movimento profético. O surgimento do movimento profético, que tanto denunciava a injustiça do povo e do rei quanto zelava pela adoração unicamente a Iahweh, e também o conceito de reino, fruto do surgimento da monarquia, contribuem para a compreensão da tarefa missionária do povo de Deus.
Os profetas foram incansáveis em denunciar injustiças sociais dentro e fora de Israel. Estas denúncias eram contra aqueles que oprimiam os pobres e profanavam a casa de Deus pelas suas indulgências (Am 2.6-8), o favorecimento das classes ricas (Am 5.7,10-12), o comércio fraudulento que explorava o pobre (Am 8.4-6), e os impostos injustos (Am 4.1). Israel era especialmente julgado por estes crimes sociais por causa da sua relação especial (pela eleição) com o Deus de todas as nações (Am 3.1-2) e, consequentemente, porque tinha uma responsabilidade e obrigação (pela aliança) de reconhecer e refletir (pela Imago Dei) o Senhorio e caráter justo de Iahweh. Para Israel, as injustiças sociais, antes de serem crimes contra o seu próximo, era uma blasfêmia contra a santidade e retidão de Deus. Israel tinha sempre uma “Missão” : ‘de ser testemunha e ser instrumento de benção no meio das nações’. Waldron Scott chama esta missão de “missão de retificação” e cita Isaías 1.16-17: “Lavai-vos, purificai-vos, … atendei a justiça, repreendei ao opressor, defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas.” As nações veriam o povo de Deus como modelo, e precisavam de correção e julgamento divino. “As bênçãos resultantes da obediência à aliança também são acompanhadas por maldições resultantes da desobediência”.
Em concordância com o Velho Testamento, podemos observar que a Igreja Primitiva também foi exortada a tomar uma forte posição contra qualquer injustiça social, e que isto se evidencia acima de tudo pelo seu próprio estilo de vida e participação na sociedade maior e secular, não comprometendo de maneira alguma a sua moralidade pessoal ou social cristã, muito pelo contrário, seria como uma testemunha radica
l no meio das nações, do caráter justo e Senhorio de Cristo.
Quando a Igreja cristã contemporânea dicotomiza as áreas espirituais e sociais, relegando o seu testemunho social ou para o governo ou para o futuro, ela assim está cortando um nervo principal do seu testemunho e negando exigências fundamentais de sua aliança.
Como podemos ver, através de toda a revelação veterotestamentária, se torna claro que o personagem principal é o próprio Deus. “No princípio criou Deus…” É Deus quem cria, quem julga, quem age, quem escolhe, e quem revela. Sua soberania se revela de forma patente nos acontecimentos Escriturísticos. Ele é ativo não só na criação, mas também nos julgamentos, na libertação do seu povo do Egito, nas exortações dos seus profetas e na promessa de restauração vindoura. Ele é o único e verdadeiro Deus e deseja que sua glória seja conhecida nos céus e nas extremidades da terra (Sl 19; Is 11.9).
Portanto, antes de Ter uma conotação humana que fala da tarefa da igreja, “missão” é uma categoria que pertence a Deus. A missão, antes de ser Igreja, é missio Dei. Esta perspectiva nos guarda contra toda atitude de auto-suficiência e independência na tarefa missionária. Se a missão é de Deus, então é dele que a Igreja deve depender na sua participação na tarefa. Isto implica numa profunda atitude de humildade e de oração para a capacitação missionária, uma dependência confiante em Deus, em vez de que a independência característica da queda, do dilúvio, da torre de Babel e do próprio cativeiro.
Por outro lado, se a missão é de Deus, temos a segurança de que é Deus que está comandando a expansão de seu reino, nos seus termos, e isto no dá plena convicção de que Ele realizará os seus propósitos.

2. O FUNDAMENTO NEOTESTAMENTÁRIO

NO Velho Testamento já percebemos, por numerosas maneiras, que Iahweh é o Deus soberano sobre toda a sua criação. A universalidade e unicidade de Deus formam a base fundamental para a universalidade da missão. A vontade do único Deus sobre o universo é salvar a sua criação.
Esta imagem está no centro do Novo Testamento também. Um Deus soberano e misericordioso é o autor último das parábolas de Jesus. É este Deus salvador que alcança além das leis judaicas. Sua aproximação do homem exige a atitude de conversão. O Seu reino tem um escopo universal até cósmico. Os marginalizados, mulheres, Samaritano, e gentios recebem a misericórdia de Deus.
Deus tem um plano salvífico que alcança tanto judeus quanto gentio, e ele vai cumpri-lo. E esta confiança do cumprimento do seu plano na igreja, é motivação para perseverar até o fim.
A igreja contudo, não fica passiva em relação a soberania de Deus. Reconhecer que a missão é essencial de Deus, missio Dei, não significa que a participação da Igreja na Evangelização mundial tem pouca significância. Muito pelo contrário, a missio Dei exige as missiones eclesiae. São praticamente dois lados da mesma moeda. Michael Green resume esta idéia dizendo: “a evangelização é supremamente a obra de Deus na vida dos homens, na qual ele alista a cooperação humana”.
O Deus da Bíblia é o Deus que age na história. Não é principalmente apresentado como um conceito ou idéia, uma doutrina que podemos elaborar. Ele é, acima de tudo, pessoal e age nos eventos e experiências concretas de nossas vidas. Deus não se restringe a uma dimensão mística da nossa vida. Atua através do êxito, do dilúvio e do cativeiro no Velho Testamento, todos eventos históricos até “seculares”. Ele atua através da vida humana do seu filho Jesus, através da sua morte e ressurreição, eventos bem visíveis que fazem parte da nossa história. É na nossa história humana que Deus se revela e o faz com movimento para frente. Percebemos, através da história, a sua conclusão. Assim, a perspectiva cristã da história é essencialmente escatológica. A humanidade está indo em direção do cumprimento, julgamento e salvação, e este movimento estão na sua fase final com a ressurreição de Cristo. Hoje é o dia da salvação. Este princípio é uma correlação do anterior. O Deus que age, atua na nossa história e no nosso mundo. O próprio mundo criado é revelatório de Deus e participa no seu plano universal de salvação. Não somente os seres humanos e sua história são sagrados, mas a terra e o cosmos que habitam pertencem a Deus.
O Novo Testamento abraça a perspectiva de que a missão é essencialmente boa e que tem características (como o homem) do seu Criador, mesmo caído (Rm 1.19-20). E ela, como a humanidade, ainda aguarda sua restauração final (Rm. 8.19-23 ).
A perspectiva bíblica de missão vai além (embora não ultrapasse) da idéia de salvar “almas” na dimensão “espiritual”. A salvação é integral, pois procura a restauração do todo: corpo, espírito, mundo, cosmos e tempo.
Tanto Israel quanto a Igreja tiveram experiências dramáticas, transformadoras com Deus. A experiência de conversão de Paulo sobre a salvação, a história, a lei e o Israel. A sua profunda experiência de Cristo transformou Paulo e a comunidade cristã numa companhia de testemunhas. A experiência íntima que Jesus teve de Deus se evidenciava através de toda a sua missão. Jesus era o enviado do Pai, fazendo apenas a vontade do Pai.
A experiência religiosa do Novo Testamento era ligado ao papel do Espírito Santo, capacitador da Igreja para missão. Era a igreja despertada e cheia do Espírito que evangelizava e se envolvia em missão. Não é acidente algum que a própria história da Igreja até hoje testifica a relação do avivamento espiritual com a expansão missionária da Igreja.
O Novo Testamento destaca o movimento centrífugo da igreja, na sua ação missionária, bem como o Velho Testamento enfatiza o movimento centrípeto. Isto não é contradição, mas apenas ressalta a distinção entre os dois testamentos como Tendo a distinção entre antecipação e cumprimento. Mesmo assim, isto não significa que o Velho Testamento não revele seus momentos de evangelização centrífuga, nem que o Novo Testamento não possua uma dimensão de preocupação centrípeta. Os dois elementos estão presentes nos dois testamentos, embora difira a ênfase.
O Novo Testamento anuncia a chegada de um nova era de salvação, que alcança dimensões mais cósmicas. Por isto, o papel da Igreja é, antes de tudo, ser orientada não para si mesma, mas para o mundo, para anunciar o reino de Deus. E, mesmo quando há uma ênfase nas preocupações internas da igreja, isto também tem um propósito missionário, que pela perseverança da Igreja (dos Santos) comprova a presença do Espírito Santo, característica principal da era vindoura da salvação.
É impossível dar sentido a qualquer texto do Novo Testamento sem referência a Jesus. A igreja era unânime cristocêntrica em sua mensagem. O conteúdo de sua proclamação era, nada mais nada menos, que a pessoa de Cristo. Empregavam todos os meios culturais e intelectuais para comunicar a significância da vida, morte e ressurreição de Cristo. A sua mensagem era a mensagem da Cruz, a mensagem de Cristo crucificado. Era isso que eles lembravam liturgicamente através da celebração da Santa Ceia, pois na cruz Deus havia providenciado a salvação do mundo.
A transmissão da missão no Novo Testamento se dava basicamente de três formas: a Proclamação verbal, usada pela grande maioria dos pregadores do N.T. (como Paulo e o próprio Jesus); o desafio Profético, que embora tenha sido mais usado no Velho Testamento , o Novo Testamento também o emprega, conforme os Evangelhos principalmente Lucas, quando descrevem o ministério profético de Jesus (desafiando a atitude exclusivista de Israel e denunciando falsas atitudes e falsos valores); e o Testemunho de Vida, que proclamava de forma prática o bom comportamento, pureza moral e envolvimento da Igreja na sociedade, o que serve de modelo para a ação missionária da Igreja no mundo. O testemunho de vida muitas vezes implicava em sofrimento. E este sofrimento era parte integrante da missão. Paulo sentiu que seu aprisionamento e outros sofrimentos “contribuíram para o progresso do evangelho” (Fl. 1.12).
A influência da Igreja no Novo Testamento fora tal que em Atos 17. 6 os judeus ao lançaram mão de Jasom e de alguns irmãos (por não terem encontrado Paulo), levando-os ao magistrado (com falsas acusações) disseram: “Estes que têm transtornado o mundo chegaram até aqui”.

Presbítero da Igreja Presbiteriana da Bela Vista-SP

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