A Missão da Igreja baseia-se na convicção de até onde vai o nosso compromisso com Deus

Autor: Ronaldo Lidório
– Nossa Missiologia cristã –

O desafio que temos pela frente na santa tentativa de conciliar nossa teologia com a vida da Igreja pode ser único em sua condição histórica e implicações no Reino de Deus. Necessitamos ser uma Igreja visionária que traduza a sua teologia perante uma realidade contemporânea, uma Igreja que busca ser cheia do Espírito, tremendamente inconformada com o mundo, que vive os valores do Reino e aceita o desafio de ultrapassar barreiras para fazer o nome de Jesus conhecido entre todas as nações. Uma Igreja visionária é uma Igreja que põe as mãos no arado e ara a terra.

Torna-se assim necessário ter-se uma visão real do mundo que existe ao nosso redor. Mais do que ninguém precisamos acompanhar de perto a situação política, étnica, econômica, social, lingüística, demográfica, geográfica e espiritual deste mundo a ser arado. Necessitamos compreender o caminho que o Islamismo vem trilhando na África, a miscigenação do Animismo na América do Sul e Oeste Africano, a infiltração do Budismo e Confucionismo nas culturas ocidentais, as modificações do Hinduísmo na Índia, as barreiras do Tribalismo e Nacionalismo no Sul e Centro Africano, o esquecimento das regiões geladas da Ásia, a diversidade lingüística nas ilhas do Pacifico, a decadência e morte do evangelho na Europa e as implicações do novo leste europeu; sem esquecermos dos desafios de perto: o crescimento da nossa igreja local, os pobres e necessitados na esquina, a responsabilidade da evangelização em nosso bairro e a necessidade de sermos uma bênção para nosso vizinho. A loucura do evangelho é a possibilidade de sermos, ao mesmo tempo, uma bênção para os de perto e para os de longe e somente será vista quando uma pessoa, uma família, uma igreja ou denominação se dispuser a transpor o abismo que separa o que crê o nosso coração daquilo que pratica a nossa vida.

A Comunidade do Reino

Ekklesia é um termo composto que pode ser dividido em “Ek” (para fora de) e “Klesia”, que vem de “Kaleo” (chamar)[i]. Etimologicamente pode, portanto ser entendida como “chamada para fora de” o que a principio nos dá uma idéia mais real desta comunidade dos santos. Obviamente o termo também está ligado a “agrupamento de indivíduos” e de certa forma a “instituição” porém em todo o N.T. adquire o conceito de “comunidade dos santos” e fora MT. 16:18 e 18:17 está ausente dos evangelhos aparecendo, porém 23 vezes em Atos e mais de 100 vezes em todo o Novo Testamento. Gostaria que déssemos atenção neste momento a alguns conceitos neotestamentários para esta comunidade dos filhos de Deus.

1. Igreja de Deus

Comumente encontramos no N.T. a expressão “Igreja de Deus” (“Ekklesia tou Theou”) o que evidencia que esta Igreja veio de Deus e pertence a Deus. É uma comunidade que possui Deus como fonte; é eterna, espiritual e universal. Não provém de elucidação humana ou de uma obsessão nutrida por um grupo de loucos há 20 séculos, antes foi articulada por Deus, formada por Deus, é pertencente a Deus e permanece ligada a Deus. Independente das deturpações da fé, das ramificações que se liberalizaram, dos que se perderam pelo caminho, a Igreja permanece, pois é posse de Deus.

Desta forma a “Ekklesia tou Theou” necessita caminhar de acordo com o palpitar do coração de Deus, a quem pertence, traduzindo para sua vida os desejos profundos deste coração. É baseados nesta verdade que necessitamos repensar nossa Eclesiologia – um grupo de santos chamados por Deus para a inusitada tarefa de transtornarem o mundo com o evangelho.

2. Igreja local

Também no N.T. encontramos o conceito de “igreja local”. Em 1o Co 1:12 vemos, por exemplo, a expressão “Igreja de Deus que está em Corinto”, onde “que está” (“te ouse”) indica a localidade da igreja. Mostra-nos que os santos de Corinto pertencem à Igreja, e não que a Igreja pertence à Corinto, deve ficar bem claro. Nos últimos 2.000 anos a Igreja adquiriu uma forte tendência de se “localizar” condicionando-se tão fortemente a uma cidade ou bairro a ponto de alguns chegarem a defender uma “demarcação” local impedindo trabalhos fora da sua “jurisdição”.

Num conceito neotestamentário “Igreja” é uma comunidade sem fronteiras e, portanto creio que há necessidade de sacramentalizarmos mais os “santos” e menos os “templos”. Missões não é um programa eclesiástico, é a respiração da Igreja. Lembro que entre a tribo Konkomba há uma expressão que diz: “respiração é vida – não é preciso pensar para respirar; não é preciso pensar para viver”.

3. Igreja humana

Também dentro do conceito de “Igreja” nos deparamos no N.T. com um perfil bastante humano. Em 1 Ts 1:1 por exemplo vemos “igreja de Tessalônica” (“ekklesia Thesalonikeon”) dando-nos a idéia daqueles que são Igreja também sendo Tessalônicos, cidadãos de Tessalônica.

Mostra-nos o fato de que por serem “Igreja” não significa que deixam de ser cidadãos, patriotas, carpinteiros, lavradores, comerciantes, desportistas, pais, mães ou filhos. “Igreja” no N.T. não é apresentada como uma comunidade alienante, mas como uma comunidade que abrange o homem em seu contexto humano fazendo-nos entender que esta Igreja não foi separada do mundo e sim purificada dentro dele.

No livro de Atos a humanidade passo a passo era chocada com a fé daqueles que “transtornavam o mundo”, onde o viver é Cristo, o objetivo era ganhar almas, a alegria era a adoração, o que os unia era a verdadeira comunhão, o amor era traduzido em ações, os fortes guiavam os fracos, as dificuldades eram enfrentadas com oração, a paz enchia os corações e todos, mesmo sem muita estrutura humana, possuíam como finalidade de vida apenas testemunhar do seu Mestre. Era uma Igreja visionária formada por gente como a gente.

Para a Glória de Deus

Entretanto quando olhamos para esta Ekklesia do Senhor Jesus no contexto embrionário do Novo Testamento a pergunta que fica é: qual o real motivo que faz de Missões a Missão da Igreja? Nesta expectativa olhamos para Paulo o qual, como missiólogo, expôs aos Romanos a nossa maior motivação missionária.

Questionando-nos acerca da grande força motivadora para a obra missionária, perguntaríamos: Qual a nossa real motivação para levar este evangelho do reino até aos confins da terra?

Algumas respostas bíblicas poderiam ser pontuadas aqui. A Grande Comissão sem dúvida é o marco kerigmático que impulsiona a Igreja à, em obediência, espalhar este evangelho até aos confins da terra. Entretanto não é a principal motivação bíblica. Apressar a vinda do dia de Deus – a Parousia – volta de Jesus, com certeza já motivou cristãos desde o primeiro século em várias partes do mundo. Mas também não poderia ser apontada como a principal motivação bíblica para a ação missionária da Igreja. A Paixão pelas Almas, comoção por aqueles que estão perdidos sem o evangelho foi a grande tônica dos apelos missionários do século XVIII e apesar de possuir uma forte ênfase bíblica no caráter da Igreja também não aponta para a nossa motivação principal. Vários outros motivos missionários poderiam ser apontados para enviarmos missionários tanto aos de perto quanto aos povos além fronteiras, para fora dos limites geográficos da nossa cultura e país. Entretanto a força motora para esta ação da Igreja encontra-se em Romanos 16:25-27[ii] quando o apóstolo, encerrando esta carta de grande profundidade missiológica, diz:

“Ora, àquele[iii] que é poderoso para
vos confirmar segundo o meu evangelho “
(fala de Deus)

“conforme a revelação do mistério[iv]”
(o mistério é o Messias prometido a todos os povos)

“e foi dado a conhecer por meio das Escrituras Proféticas”
(este é o meio de Revelação)

“segundo o mandamento[v] do Deus eterno”
(este é o meio de Eleição)

“para a obediência por fé[vi]”
(este é o meio de Salvação)

“entre todas as nações[vii]”
(Isto é Missões)

Mas qual o motivo para todo este plano divino que visa a redenção de todos os povos? Qual o principal motivo para Missões?

Ele responde no verso 27, após sintetizar as partes do plano universal de Deus para redimir todos os povos:

“Ao Deus único e sábio seja dada glória[viii]…”

É a glória de Deus! Este é o maior e mais importante motivo para entregarmos nossos filhos á obra mundial; para financiarmos a ação missionária transcultural; para intercedermos, empreendermos esforços, lutarmos com todo o nosso ser para que as nações ouçam de Jesus: A glória de Deus.

Somente olhando para a glória de Deus é que entenderemos os mártires, as lutas, os sacrifícios, as vitórias e os chamados missionários. Deus tem levantado um povo na terra para erguer-se em Seu Nome, proclamar no mundo o Messias prometido a todas as etnias, revelar-lhes as Escrituras proféticas, falar-lhes do Seu mandamento eterno e levar-lhes à obediência por fé, e isto em todas as nações, motivados por um desejo profundo, chocante e inenarrável de Glorificar o Seu Nome!

A glória de Deus é a chama que acenderá o ardor missionário no coração da Igreja do nosso século.

Se o Senhor erguer o seu coração neste momento para um envolvimento integral em Sua obra, santifique a sua vida, revista-se da armadura dEle para confrontar os poderes do maligno e então glorifique a Deus.

O conteúdo do Evangelho

Lembremo-nos do que centraliza a missiologia neotestamentária. O ponto central da Missiologia do N.T. é o Evangelismo e evangelismo é o ato de proclamar o Evangelho[ix], ação esta realizada pelo Evangelista. Vamos, portanto analisar e entender melhor este Evangelho, já que ele é o conteúdo do Evangelismo.

Voltemos há cerca de 2.000 anos no tempo, especificamente na região da Palestina, nos lugares onde Cristo passaria. Imaginem um homem forte, vestido de peles de camelo, sandália gasta, barbas sujas, cabelos longos, carregando em sua bolsa apenas um pouco de mel. Seu nome era João Batista e ele prega ao povo. Seus sermões eram duros; ele falava sobre o “fogo consumidor”, o “machado posto à raiz das árvores” e da “palha queimada em fogo inextinguível”, e durante seus apelos ele usava termos fortes como “raça de víboras”.

De repente aparece perante o povo um outro homem, vestido simplesmente, rodeado por um grupo de homens também simples e com uma voz suave. Era Jesus. Ele, ao contrário de João, vem falando sobre “boas novas” (evangelho) e “boas novas do reino”. Sua mensagem é estranha; ele vem falando sobre uma forma diferente de viver, uma forma “evangélica”. Uma vida onde o marido não domina sua esposa, ama-a; onde o perseguido não odeia aquele que o persegue, antes ora por ele; onde o líder cristão não exerce domínio sobre o seu rebanho, mas serve-o; onde a comunidade dos santos não organiza revoluções contra as más autoridades, porém intercede por elas; onde o menor é o maior, onde morrer é um ganho; onde só se torna forte os que reconhecem a fraqueza; onde se anda duas milhas com quem te obriga a andar uma; vira-se a outra face a quem te fere; onde não há apego a este mundo pois todos são peregrinos; onde a terra natal é desconhecida, a garantia é uma promessa e só se alcança a vida quem primeiro morre. Isto é EVANGELHO, um recipiente de valores a um povo, os “do caminho”.

E dentro destas pregações Jesus enfatizava muito o “reino” e até quando falava sobre Evangelho, falava sobre o “evangelho do reino”. Há uma ligação entre as duas coisas que veremos depois. Porém o mais importante agora é entendermos que o Evangelho nos primeiros séculos era um “recipiente dos valores de Deus os quais reivindicavam um modo transformado de vida”. Era prático.

Homens ricos paravam de roubar para devolverem o dinheiro até quatro vezes mais aos que foram por eles ludibriados; mulheres adúlteras largavam suas vidas de promiscuidade e transformavam-se instantaneamente em testemunhas; pescadores largavam suas redes para seguirem um carpinteiro de Nazaré; muitos vendiam tudo o que tinham para distribuírem entre os que nada possuíam; milhares morriam crucificados ou queimados por se recusarem a negar o seu Senhor, o qual nunca haviam visto face a face. Isto é vida prática!!!

Infelizmente, após os séculos, ser “evangélico” passou a significar apenas um estado denominacional. Gostaria, portanto que entendêssemos que o Evangelho, desta forma, não era apenas “boas novas”, “boas notícias”, mas “boas novas que reivindicavam um modo de vida transformado, segundo os valores de Deus”.

Há duas coisas que necessitamos entender aqui sobre o Evangelho antes de chegarmos no ponto principal.

a) Sua procedência: No N.T. confrontamo-nos repetidas vezes com a apresentação do Evangelho como “evangelho de Deus”, apontando para a procedência do evangelho, ou seja, ele não é uma invenção humana, e sim uma revelação divina.

b) Seu conceito: Em 1 Co 9:18, quando Paulo expressa que “evangelizando proponha… o evangelho” entendemos a princípio que o conteúdo do evangelismo é o evangelho. Mais adiante, no capítulo 15 da mesma carta, Paulo fala à Igreja sobre o “evangelho que vos anunciei” (v.1) e no verso 3 ele começa a narrar sobre este evangelho dizendo:

“… Que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia…”

ou seja, Jesus Cristo é o próprio evangelho! Desta forma, começamos a entender que o conteúdo do evangelismo é o evangelho e o conteúdo do evangelho é Jesus Cristo.

Creio que agora podemos expor o ponto principal deste tema: A Promessa, onde entenderemos a perspectiva transcultural deste evangelho. Veja bem: Promessa no N.T. é o termo grego “epangelia” o qual possui um sentido literal de “prometer com antecedência” ou “criar expectativa pela mensagem”. O que tem isto a ver com Missões? Alguns podem perguntar. Vamos ver o texto de Paulo aos Romanos 1:1-3. Este texto fala sobre três coisas enfáticas:

a) Paulo foi “separado para o evangelho de Deus” (refere-se ao seu ministério)

b) Este evangelho foi “por Deus outrora prometido por intermédio dos profetas” (mostra que havia uma promessa sobre o evangelho)

c) Este evangelho prometido diz respeito ao “Seu filho” (Jesus Cristo é o conteúdo deste evangelho)

Paulo, portanto inicia Romanos falando da Promessa e seu cumprimento: Jesus Cristo. Se esta Promessa é “Expectativa do Evangelho”, e o conteúdo do Evangelho é Jesus Cristo, Promessa, portanto é a “Expectativa por Jesus”.

A parte principal porém deste estudo é descobrirmos biblicamente a Extensão desta Promessa no A.T. Se a Promessa da vinda do Salvador no A.T. tiver sido dirigida apenas a Israel, somente este povo estaria impregnado por esta “expectativa do evangelho”; somente eles viveriam sob a Promessa. Se, porém, a Promessa de um Salvador tiver sido dirigida a todos os povos, podemos concluir que todos os povos da terra, em todas as épocas viveram e vivem numa expectativa, a expectativa das boas novas: Jesus Cristo.

Tomando Isaías 42:5,6 como um dos textos mais claros que falam sobre a Promessa central do A.T., a vinda do “Servo do Senhor”, veremos o “destino” de tal Promessa.

Logo no verso 1 deste texto, Deus apresenta o servo, o “escolhido” que possui o seu “Espírito” e enfatiza que “ele promulgará o direito aos gentios”, expressando a quem é dirigida a Promessa, não só a Israel, mas também aos “gentios”.

Nos versos 2 e 3 Ele continua expondo sobre o Seu Servo e no verso 4 Ele enfatiza que:

“As terras do mar aguardarão a sua doutrina” o que deixa claro que Ele não se refere somente aos gentios que estão perto do seu povo Israel, mas também os que estão em terras longínquas no mar.

No verso 6 Deus expõe que fará do seu servo o “mediador da aliança com o povo” (referindo-se a Israel) e “luz para os gentios”, referindo-se aos povos de longe.

No verso 10, em resultado da Promessa Ele diz:

“Cantai ao Senhor um cântico novo,
e o seu louvor até às extremidades da terra…
vós terras do mar e seus moradores”

Creio ser explícito neste texto como em tantos outros que a Promessa messiânica é plenamente transcultural; a “Epangelia” estende-se até “às extremidades da terra” onde haja terras do mar e povos de longe; e creio também que isto implica no fato de que todos os povos da terra em todas as épocas vivem em expectativa quanto a uma mensagem que possa saciar a sua sede do evangelho.

Há uma amável Igreja no noroeste da África, localizada em um arquipélago de ilhas (Cabo Verde) que em seus templos possui um emblema pintado ao alto, para que todos possam ver. Neste emblema está escrito : SANTIDADE AO SENHOR. Talvez por causa desta preocupação eles têm trabalhado tanto e feito tanto para a glória de Deus. Algo que precisamos entender agora é que não se consegue proclamar realmente o evangelho sem primeiro ser realmente evangélico, no conceito de Deus. Começaremos a fazer Missões à medida que formos santos perante o Senhor!

[i] Greek ATR, Vol II

[ii] A chamada Doxologia ao fim da carta aos Romanos indica sumário posterior onde Paulo resume a sua missiologia

[iii] “Àquele” aponta para Deus como o recebedor de toda a glória provinda da ação salvífica de Cristo nos próximos versículos

[iv] “Misterion” no NT sempre aponta para a pessoa do Messias, prometido no passado e representando a resposta de Deus à incapacidade humana de auto salvação.

[v] Ou “desejo” do Deus eterno

[vi] Pois Paulo estava consciente do princípio de que será salvo todo aquele que crê

[vii] “Ethnesin” – nações – refere-se aos povos etnicamente distintos

[viii] A “Doxa tou Theou” – Glória de Deus – foi tema de infindáveis escritos na idade média quando nos mosteiros tentava-se estudar a distinção entre Deus e Sua glória. No mosteiro de Abelardo na França foi registrado no ano de 1615 que “A glória de Deus é inseparável da pessoa de Deus pois é Deus quem emana sua glória. Quando a Igreja dá glória a Deus, nada acrescenta a Deus, apenas reconhece que Deus é Deus, cheio de glória”

[ix] O “Euaggelion” – Boas Novas aponta para uma mensagem cujo conteúdo final é a própria pessoa de Jesus Cristo

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