Autor: Eduardo Hoornaert
Os insistentes noticiários sobre pedofilia cometida por padres católicos têm sido interpretados como expressões de anticlericalismo, abandono da religião ou até ateísmo. Pois a igreja católica é um baluarte do que há de mais valioso em nossas sociedades e, nesse sentido, toda a qualquer crítica a ela deve ser banida.
Quem assim pensa faz bem em situar os fatos que vivenciamos numa perspectiva mais ampla. Durante longos séculos, a igreja católica dominou a cultura ocidental e um dos instrumentos desse domínio foi o postulado de sua santidade intocável. Apenas cinqüenta anos atrás, o domínio do pensamento católico sobre as consciências ainda era tão poderosa que criticar um representante da igreja católica era quase o mesmo que criticar o próprio Deus. Como dizia o padre Cícero: ‘o padre é santo nem que o diabo não queira’. O postulado da santidade da igreja e de seus representantes era considerado um sustentáculo da fé.
Mas será que esse postulado tem raízes nos evangelhos? O leitor atento dos mesmos poderá verificar que neles não se encontra nenhum argumento a favor da santidade da igreja. Pelo contrário, no evangelho de Marcos, por exemplo, os discípulos de Jesus são apresentados como ‘maus exemplos’. Eles não conseguem compreender Jesus e, quanto mais este se aproxima da morte, tanto mais eles demonstram não entender nada. Enquanto Jesus caminha em direção a Jerusalém com plena consciência do perigo de vida que enfrenta, seus discípulos ficam discutindo entre si quem será o primeiro a ‘se sentar à direita do trono no reino de Deus’. E quando ele, no jardim de Getsémani, chega a suar sangue, de tanta agonia ao ver o ‘cálice’ se aproximar, eles ficam dormindo. Judas o trai com um beijo e Pedro foge quando uma empregada do sinédrio diz: ‘você também é galileu’. Essas narrativas são intencionais. O evangelista quer mostrar como é difícil comprometer-se com o estabelecimento do reino de Deus: mesmo os apóstolos mal conseguem corresponder ao desafio. No mesmo sentido, Jesus combate a pretensa santidade dos fariseus e a santidade não menos hipócrita dos sacerdotes no templo. A carta aos hebreus é um vigoroso requisitório contra a pretensão à santidade, uma tentação que ameaça qualquer instituição religiosa. O reino de Deus vem por meio de um empenho humilde e perseverante, não por exibições de santidade. É, pois, em vão que a teologia procura argumentos no novo testamento para justificar a santidade da igreja.
Então, donde provém o postulado da igreja santa? Ela é uma elaboração teológica do século IV e tem muito a ver com a aproximação da igreja com o sistema imperial romano e os métodos utilizados para impressionar as pessoas. Um século depois de proclamada a santidade da igreja (no concílio de Nicéia), a idéia recebe um importante reforço na obra ‘A cidade de Deus’, da autoria de Santo Agostinho. Diante de um império romano em decadência, corroído por corrupção e abusos, Agostinho apresenta a luminosa imagem de uma cidade de Deus incorrupta, repleta de santos. Essa imagem é tão poderosa e seduz tanto os clérigos que atravessa os séculos sem grandes contestações. Eis a ideologia do atual papa. Ao longo de seu trabalho como professor em teologia (como testemunha Leonardo Boff, que estudou na Alemanha na época), ele sempre defendeu a idéia de uma igreja que fosse santa em meio à devassidão do mundo e aos erros do século, uma cidadela de Deus, exatamente na linha de pensamento de Santo Agostinho. Como papa, ele demonstra que seu pensamento continua o mesmo, apesar das contradições (como demonstra uma carta recente de Hans Küng). O argumento mais forte contra o papa Bento XVI provém dos fatos. Contra fatos não há argumentos. A pedofilia praticada por padres vem demonstrar que a igreja não é tão santa como o papa gostaria que ela fosse. Os padres mostram-se humanos, por vezes ‘demasiadamente humanos’, e isso enerva o papa. Se ele fosse ler os trabalhos de Jon Sobrino, não ficaria tão nervoso. Sobrino muda o foco: o que importa não é a igreja, mas o reino de Deus. Jesus não veio pregar a igreja, mas anunciar o reino de Deus. A igreja é apenas um instrumento provisório. O que importa é o reino de Deus, ou seja, a sociedade humana. Mas o papa não lê Sobrino, como não lê Gustavo Gutiérrez, José Comblin, Leonardo Boff, Ivone Gebara e nossos(as) outros(as) mestres(as) da teologia latino-americana. Ele não lê os sermões de Dom Romero nem as cartas conciliares e pós-conciliares de Dom Helder Câmara. Toda essa literatura está focada no reino de Deus, não na instituição igreja. Mas o papa continua embevecido com um ideal de santidade eclesiástica que não se fundamenta no novo testamento nem se verifica na realidade vivida.
Considerada de maneira mais amplamente societária, a atual exposição dos pecados da igreja demonstra como nossas sociedades não suportam mais os métodos de intimidação, ocultamento e manipulação que ainda eram aceitos por nossos pais e avós, num passado não tão distante. Nossa percepção do que seja uma sociedade democrática, igualitária e justa vai se aperfeiçoando. Da mesma forma em que vemos, pela primeira vez, um governador preso, vemos também padres sendo julgados em tribunais civis. Nada mais louvável numa sociedade que pretende caminhar para a democracia e a liberdade. Todos os cidadãos estão sujeitos à lei, nenhuma instituição está acima da lei civil. E assim a igreja católica vai, lentamente, descendo do pedestal e se adaptando à normalidade da atual convivência humana.
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