A graça de Deus na cultura

Autor: Ariovaldo Ramos

“Cultura é um jeito particular de ser gente” – Rubem Alves
 
Se o prof. Rubem Alves está certo, para falar da graça de Deus teríamos de responder a antiga pergunta do salmista:  que é o homem, que dele te lembres? (Sl 8:4)

Voltemos ao início.
Gn 1:26, 27 – Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; (…) Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou;
Esse texto marca uma mudança de ritmo e de forma na criação: até então Deus falava e tudo vinha à existência, na criação do homem temos, antecedendo-a, uma declaração de intenção e uma descrição.

Façamos o homem…
A teologia cristã entende que essa afirmação nos apresenta a Trindade, doutrina que afirma haver um só Deus em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, como declara G. W. Bromiley
Gosto de pensar nesse texto como uma declaração de intenção, é como se fosse o resultado de uma conferência entre as três Pessoas.
Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança;
Eis a descrição do projeto: o homem seria à imagem e semelhança de Deus, a Trindade.

O que significaria isto?
Segundo Derek Kidner, para alguns teólogos “imagem é a indelével constituição do homem como ser racional e como ser moralmente responsável, e a semelhança é aquela harmonia com a vontade de Deus, perdida com a queda”. Ele, porém, diz que não há, no original, a partícula aditiva “e”, de modo que os termos se reforçam (a palavra, então, seria imagem-semelhança). A imagem seria “expressão ou transcrição do Criador eterno e incorpóreo em termos de uma existência temporal, corpórea e própria de uma criatura – como se poderia tentar a transcrição, digamos, de um poema épico numa escultura, ou de uma sinfonia num soneto.” O que, segundo Kidner, perdemos dessa imagem-semelhança, na queda, foi o amor, que recuperaremos quando for retomada nossa plena comunhão com o Senhor.

Algo, entretanto, penso que precisa ser considerado: se ser moralmente responsável e racional é ser imagem de Deus, então os anjos também não o seriam?
Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram(2 Pe 2:4)
Como os anjos poderiam pecar se não fossem moralmente livres; uma vez que pecar (pelo menos no ato primeiro) exige capacidade de escolha?

…reservando-os para juízo (2 Pe 2:4)
Como qualquer ser pode ser julgado, se não for moralmente responsável?
Além do que, parece não haver dúvidas de que os anjos, também, são racionais, senão estariam impossibilitados de comunicar-se e de arrazoar conosco, como fizeram, por exemplo, com Ló (Gn 19:10-22).
Se ser imagem-semelhança é ser transcrição do eterno em termos de existência temporais, os anjos, também, estão incluídos, pois, são criaturas e estão no tempo, pois, tiveram começo, ainda que o tempo, talvez, não lhes faça diferença. E, em ambos os casos, os anjos fiéis não perderam nada de sua criação original.
Entretanto, somente do homem é dito que foi criado à imagem e semelhança de Deus.
Gosto de pensar que esta imagem-semelhança inclui, além do já citado, algo que só é comum a Deus e a nós: a unidade.

“A última palavra hebraica da Shema (Dt 6.4,5) é echad, um substantivo coletivo, em outras palavras, um substantivo que demonstra unidade, ao mesmo tempo que se trata de uma unidade que contém várias entidades. Poderíamos citar um bom número de exemplos.(…) Em Nm 13.23 os espias pararam em Escol, onde ‘cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas’. A palavra que aqui aparece com ‘um’, em ‘um cacho’, novamente é echad, no hebraico. Mas, como é evidente, esse único cacho de uvas consistia em muitas uvas.”
Stanley Rosenthal

E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus os criou; macho e fêmea os criou.Gn 1.27 (RC).
Seriam, realmente, duas criações?
Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente. (Gn 2:7)
Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne. E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher e lha trouxe. (Gn 2:21,22)

Macho e fêmea parecem ser uma criação só, pois, o barro e o sopro (que dá vida ao ser humano) só aparecem uma vez. O segundo ser não é uma segunda criação, é uma duplicação. Sendo que, no segundo ser, Deus fez desabrochar características que não fizera desabrochar no primeiro.
Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. (Gn 5:1,2)
Duas pessoas, um só nome. De fato, a mulher só ganhou o nome de Eva depois da queda:E deu o homem o nome de Eva a sua mulher, por ser a mãe de todos os seres humanos (Gn 3:20). E por que? Penso que só após a queda o macho teve autoridade para tal: e à mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará (Gn 3:16). Se Deus condenou a mulher a essa condição subserviente ao homem como consequência da queda, é de se supor que antes não era assim, isto é, a relação entre ambos não era de autoridade; era, quero crer, de unidade.
O homem à imagem e semelhança de Deus, sugiro, é um ser coletivo. Quando Deus chamava: Adão! Macho e fêmea se voltavam para falar com Ele.

“Em Gn 2.24, Deus (…) instruiu marido e mulher a tornarem-se ‘os dois uma só carne’, indicando que aquelas duas pessoas unir-se iam, formando perfeita e harmônica unidade. Em tal caso, novamente a palavra hebraica é echad.”
Stanley Rosenthal

Se Deus é uma família, que criatura poderia expressar sua imagem-semelhança senão se constituísse, também, numa família?
Se Deus é uma unidade-comunhão como uma criatura que não se constituísse noutra unidade-comunhão poderia ser chamado de sua imagem-semelhança?
Me parece que o projeto divino passava estritamente pela unidade: criou um casal apenas, logo, uma só família; criou-os tendo a si como modelo: o que caracteriza a trindade é o amor, vínculo da perfeição, isto é, que une perfeitamente; logo, criou-os para, a exemplo da trindade, amarem-se com esse amor que unifica. Criou-os para viverem em unidade. Criou-os como unidade. Se não tivéssemos caído, seríamos bilhões, talvez, entretanto, à semelhança da trindade, nos amaríamos tanto que, apesar de muitos, seríamos um só homem: o homem à imagem e semelhança de Deus.

Não seria por aí o caminho de perceber a atuação da graça de Deus na cultura?
Gosto de pensar que a graça de Deus se manifesta nos elementos gregários de uma dada cultura.
Se é fato que o homem que Deus criou é comunitário, então, em todo o elemento cultural que leve o ser humano à consciência do outro; ao senso de pertencimento; à celebração comunitária; à solidariedade; à justiça deverá, em alguma medida, ser fruto da graça de Deus – a graça que mantêm todas as coisas.
E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, na direção do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado(Gn 2:8).

Não é curioso que após ter comunicado à sua criatura a relação de domínio que teria sobre o planeta, Deus o coloque num jardim?
Parece-me que, ao fazer isto, Deus propõe um modelo. O domínio dar-se-ía não pela subjugação mas pela interação.
Uma vez que jardim manifesta harmonia e superação, pois a beleza é resultado de interação tal, que a beleza do todo é maior que a soma da beleza das unidades.
Dessa forma deveria ver-se como um maestro, cuja responsabilidade seria administrar de tal maneira seu “habitat”, que o mesmo se tornasse qual jardim, onde impera a cooperação e a harmonia, o que faz com que cada unidade se supere pela associação com o todo.
Seria, portanto, em algum nível, ato da graça, quando, numa dada cultura, se privilegia a interação homem/natureza.

Sinais de Deus
“E, na verdade, cuidei que vós outros, Senhores, com todos os teólogos, não somente assegurais que a existência de Deus pode ser provada pela razão natural, mas também se infere da Santa Escritura que o seu conhecimento é muito mais claro o que se tem de muitas coisas criadas e que, com efeito, esse conhecimento é tão fácil que os que não o possuem são culpados. Como é patente nestas palavras da Sabedoria, capítulo 13, onde é dito que ‘a ignorância deles não é perdoável: pois se seu espírito penetrou tão a fundo no conhecimento das coisas do mundo, como é possível que não tenham encontrado mais facilmente o Soberano Senhor dessas coisas?’ E aos Romanos, capítulo primeiro, é dito que são indesculpáveis. E ainda no mesmo lugar, por estas palavras: ‘o que é conhecido de Deus é manifesto neles’, parece que somos advertidos de que tudo quanto se pode saber de Deus pode ser demonstrado por razões, as quais não é necessário buscar alhures que em nós mesmos, e as quais nosso espírito é capaz de nos fornecer.”
René Descartes

Descartes afirmava, julgando interpretar as escrituras, que Deus se deu a conhecer na natureza, bastando uma inspeção do espírito para captá-lo. Assim ele justificou suas “meditações”.
Em que pese a ousadia de Descartes, seria de se esperar que um Deus gracioso deixasse marcas de sua presença.
Richardson conta mais 25 histórias fascinantes, que mostram que a semente do evangelho foi deixada por Deus em cada cultura do mundo. Ele chama este tipo de revelação geral de Deus, ‘O Fator Melquisedeque’, usando o nome do sacerdote a quem Abraão prestou homenagem no livro de Gênesis.
Os Editores
“Richardson argumenta que Deus deixou um testemunho profundo, que pode e deve ser aproveitado como ponto de contato pelo missionário.”
Richard J. Sturz

Creio que é esperado de um Deus que quer apresentar-se, que sua graça se manifeste em cada cultura, criando pontos de contato desta com o evangelho.
Tal ação da graça, creio, opera sensibilidade ao belo, à ternura, ao amor, à vida, assim como algum nível de revelação.
No que tais ponderações deveriam afetar a interação da igreja com as diversas culturas?
1.Na abordagem à cultura. Entendo que, sob tais prismas, a aproximação à cultura tem de partir de uma perspectiva positiva: a ação da graça na mesma. Numa busca, portanto, de pontos de contato.
2.Na contextualização. Nesses parâmetros, contextualização deixa de ser o uso sincrético de seus símbolos espirituais, para tornar-se o reforço do que há de divino na cultura em questão.
3.Ao invés do juízo, entra em ação a compreensão da cultura em sua complexidade.
4.Na co-beligerância. Uma vez compreendida a ação da graça no despertar da consciência de justiça, solidariedade, etc; a igreja deveria dispor-se a envolver-se em toda a causa pró emancipação do homem, tornando-se parceira dos que, pela graça divina, estão sendo despertados para mitigar o sofrimento humano.
5.Na responsabilidade ecológica. A Igreja deveria estar à frente da luta ecológica, no sentido de mitigar o sofrimento imposto à natureza. Seguindo o modelo do jardim.

Texto retirado do site http://www.editorasepal.com.br/sepal/jornal/ari/sociecon.htm
 

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