A essência da igreja: Repensando a Eclesiologia à Luz do Novo Testamento

Autor: J. Scott Horrell
A lagarta processionária alimenta-se de flores e folhas de árvores. Passando pela floresta,
uma se move com as outras, formando filas compridas, cada uma com a cabeça colada
contra a extremidade de seu predecessor. Jean-Henri Fabre, um naturalista francês, ao
estudar um grupo dessas lagartas, induziu-as a circular em torno de um grande vaso.
Juntando a última lagarta com a primeira, ele formou um círculo completo que seguia num
cortejo sem princípio ou fim. O naturalista pressupunha que depois de algum tempo, as
lagartas perceberiam seu caminho circular, ficariam cansadas da marcha inútil e partiriam
em uma nova direção. Mas não foi o caso. Pela força do hábito, esse círculo vivo
continuou a se arrastar ao redor do vaso, vez após vez, dia após dia, mantendo a mesma
velocidade! Uma porção de comida foi colocada ao lado do vaso, em plena vista das
lagartas, mas fora do alcance do círculo. Mesmo assim, elas permaneceram em sua vereda
por sete dias e noites – o que se tornou uma marcha rumo à morte. As lagartas
processionárias estavam seguindo sua experiência passada, instinto, hábito, precedência,
costume, tradição, padrão normal. Mas elas estavam seguindo às cegas. Confundiam
atividade com progresso. As lagartas tinham boas intenções, mas iriam perecer.

Assim também anda, às vezes, a igreja.

Vários evangélicos brasileiros sentem uma tensão entre a maneira tradicional de ser igreja e
o que eles encontram na Bíblia. Suspeitam que as formas da igreja local muitas vezes não
combinam com o que a igreja deve ser e fazer. Um grupo de pastores concluiu
recentemente que a maioria das atividades das igrejas brasileiras giram em torno de quatro
conceitos centrais: o templo, o sábado cristão, o culto e o clero.(1) Na verdade, somos
mais veterotestamentários do que neotestamentários em nosso pensamento sobre a igreja.
No Novo Testamento, a Igreja é chamada o Corpo de Cristo. Esse conceito de igreja nos
liberta para experimentar novas formas da igreja local que parecem muito diferentes dos
padrões históricos e denominacionais. Isso não quer dizer que os padrões da igreja
evangélica de hoje estejam necessariamente errados, pois o Senhor deu bastante liberdade
quanto à forma e organização da igreja local. Mas uma coisa é clara: estamos longe do
retrato encontrado na igreja primitiva. Precisamos reexperimentar a liberdade eclesiástica
do Novo Testamento

O IMPORTANTE E O IMPORTANTE
Há duas verdades quase paradoxais.

. Por um lado, as formas e estruturas da igreja são coisas secundárias. Onde existe pregação
das verdades básicas da Bíblia, onde há fé e compromisso, onde pessoas buscam a
presença do Senhor e esperam Sua resposta em oração, onde pessoas obedecem à Palavra
e vencem o pecado, ali o Deus Vivo na Sua misericórdia está atuando. A estrutura, a
organização e o ritual, portanto, quase sempre ocupam o segundo lugar no Novo
Testamento

. Por outro lado, o estudo da igreja incluindo suas formas, ainda é muito importante. Certos
elementos da igreja local são absolutos prescritos no Novo Testamento: no mínimo, uma
liderança qualificada, o batismo e a ceia do Senhor. Esses são inegociáveis. Igualmente
importante, da perspectiva prática, é que a forma da igreja local é necessária para
concretizar os propósitos de Deus na vida de seus membros. Ela deve facilitar o
aperfeiçoamento de cada membro para que ele ande como Cristo nesse mundo.

Além disso, a aparência e a forma da igreja refletem, para o mundo, o tipo de Deus que
adoramos. Ele é um ditador espiritual sobre ovelhas passivas? Ele é desorganizado?
Superorganizado? Só gosta do antigo? Só gosta do novo? É intolerante? Supertolerante?
Ama o favelado e o pobre? Por meio das formas e do funcionamento da igreja local, a
nossa aparência leva infinidades de informações sobre a natureza do Deus que dizemos
servir. Infelizmente, muitas vezes são justamente essas coisas externas que mais ofuscam
as Boas Novas de Jesus Cristo.

O QUE É A IGREJA?

Definições
A palavra igreja é proveniente do grego, ecclesia literalmente, “os chamados para
fora” (ek kaleo). No uso clássico e na Septuaginta (a tradução grega do Antigo
Testamento), ecclesia significa “reunião”, “assembléia oficial”, “congregação”, grupo de
soldados, exilados, religiosos ou anjos. Em Atos 7:38, a palavra denota a “congregação”
dos israelitas com Moisés no deserto (cf. Nu 14:3, 4). Em Atos 19:32 e 40 (41), ecclesia
fala da assembléia tumultuada contra o apóstolo Paulo em Éfeso; Atos 19:39 refere-se à
assembléia oficial e jurídica que devia governar a cidade.
No entanto, das 115 ocorrências da palavra ecclesia no Novo Testamento, 111 referem-se
à igreja cristã. É interessante que, exceto por dois versículos (Mt 16:18 e 18:17), não se vê
o termo ecclesia nos evangelhos, embora aparentemente a palavra fosse usada o bastante
para os discípulos não a estranharem. É depois do pentecoste que vemos o florecimento do
uso e do conteúdo do conceito de igreja: em Atos, ecclesia é usada 23 vezes; nas cartas de
Paulo, 62 vezes; em Hebreus, duas vezes; em Tiago, uma; em 3 João, 3 vezes; e em
Apocalipse, 20 vezes (19 em Ap 1-3). Esta base, a meu ver, é uma chave para
entendermos melhor o signifi cado da palavra para os nossos dias.

Existem quatro usos de ecclesia relacionado à igreja cristã no Novo Testamento:

1. Reunião. De vez em quando, descreve um culto ou conjunto de cristãos: “quando vos
reunis na igreja” (1 Co 11:18; cf. 14:4, 19, 28, 34). Aqui, não se refere a um lugar ou
prédio, mas a um agrupamento de pessoas com o propósito de cultuar e ter comunhão,
juntos. Então, nesse sentido, quando a reunião termina, a ecclesia não existe mais.
Observamos que a Bíblia nunca usa a palavra igreja para um prédio ou templo – que talvez
seja o significado mais usado hoje, no dia-a-dia.

2. Igreja local. O uso mais numeroso de ecclesia é para uma congregação ou comunidade
local de cristãos (At 8:1; 11:22, 26; Rm 16:1; plural em 1 Co 11:16, 22; 1 Ts 2:14 etc.).
Em contraste com a idéia acima, aqui o foco está no povo e não na reunião. A maioria das
epístolas do Novo Testamento são enviadas para igrejas locais (1 Co 1:2; 2 Co 1:1; 1 Ts
1:1), como também as cartas às sete igrejas de Apocalipse 2-3.

3. Cristãos de uma região. Ocasionalmente, ecclesia envolve a totalidade de cristãos numa
área geográfica, por exemplo, “a igreja da Ásia” (1 Co 16:19) ou “a igreja… [que] tinha
paz por toda a Judéia, Galiléia e Samaria” (At 9:31). Este uso provavelmente abrange
todas as igrejas locais de uma região. Notamos, aqui, que a idéia de igreja como uma
denominação não existe no Novo Testamento. Isso quer dizer que se a Bíblia falasse da
“ecclesia de Recife”, envolveria todos os verdadeiros cristãos daquela cidade.

4. O Corpo de Cristo. O significado mais profundo e extraordinário da palavra ecclesia é a
Igreja universal, o Corpo de Cristo. A igreja, nesta definição, é o organismo espiritual
composto de todos os regenerados através da fé em Cristo. Jesus Cristo é a cabeça da
Igreja, que é “o seu corpo” (Ef 1:22-23; 4:15-16; Cl 1:18, 24; cf. 1 Co 12:12-27). Neste
sentido, a Igreja universal é a única verdadeira igreja, incorporando todos os verdadeiros
cristãos. Nesse nível, a Igreja é uma entidade espiritual e não possui forma. As igrejas
locais pertencem ao Corpo de Cristo na medida em que elas têm membros realmente
convertidos (algo que de fato somente Deus sabe). Deduzimos que nenhuma igreja local e
nenhuma denominação reflete perfeita ou adequadamente a plenitude da Igreja, Corpo de
Cristo.

Esses quatro significados de ecclesia no Novo Testamento já indicam que as duas
concepções de igreja mais comuns hoje – denominação e prédio – são alheias aos conceitos
neotestamentários. Por causa dos nossos preconceitos sobre o que é igreja, temos a
tendência de distorcer o que os autores bíblicos estavam querendo comunicar.

A IGREJA UNIVERSAL
A Natureza Descentralizadora da Igreja

No testamento hebraico, com o estabelecimento da monarquia de Israel, a adoração e o
serviço a Deus ficaram orientados em torno de Jerusalém. As nações foram convidadas a
reconhecer Israel como o mediador de Deus na terra. Para cultuar o verdadeiro Deus, os
gentios deviam chegar a Israel – e não apenas a Israel mas a Jerusalém (1 Cr 16:23-29; Sl
96). De maneira semelhante para o próprio judeu, o culto foi orientado à Cidade de Sião,
ao templo e ao Santo dos Santos. Havia uma hierarquia de levitas, sacerdotes e sumo- sacerdotes que se tornaram os mediadores entre Deus e o homem. Eles eram especialistas
e profissionais na Lei Mosaica acerca das cerimônias e dos sacrifícios. Havia dias especiais,
festas religiosas e o sábado, que marcavam, diante das nações, a aliança entre Israel e Deus
(Êx 31:13-17). Essa maneira de cultuar e servir a Deus era centralizadora. Centralizava-se
racialmente nos judeus. Centralizava-se geograficamente em Israel, Jerusalém, o Templo e
o Santo dos Santos. Centralizava-se temporalmente no sábado e em certas festas reli-
giosas. E centralizava-se na hierarquia religiosa mediadora, pois sem os sacerdotes era
ilícito oferecer sacrifícios.

Quando vemos a Igreja do Novo Testamento, descobrimos a extraordinária inversão desta
forma antiga do reino de Deus. Em vez de centralizar-se nos judeus, a Igreja se tornou
universal para todos os povos, sem discriminação ou favoritismo. Em vez de centralizar-se
geograficamente em Israel, Jerusalém e o templo, os cristãos foram mandados de Jerusalém para Judá e Samaria, até os confins da terra. No Corpo de Cristo, a geografia já
não é importante. Onde está um cristão, ou onde dois ou três deles se encontram, ali há o
templo de Deus.. Em vez de centralizar-se temporalmente no sábado e nas festas judaicas,
a fé cristã se tornou algo a ser praticado no dia-a-dia, liberando o cristão para escolher
quando adorar (Rm 14:5-6). Finalmente, em vez de centralizar-se numa hierarquia
sacerdotal, cada cristão é declarado sacerdote, com acesso direto ao Deus Pai através de
Jesus Cristo (1 Pe 2:5). O Novo Testamento destaca a necessidade de liderança exercida
por bispos, presbíteros, pastores e anciãos (todos essencialmente sinônimos, cf. At 20:17,
28; 1 Pe 5:1-4), e também de diáconos (1 Tm 3:8-11). Mas a liderança não é sacerdotal
como no Antigo Testamento. Ele não assume uma posição de rei ou sacerdote, nem
executivo ou chefão. Ao contrário, a liderança foi concedida ao Corpo de Cristo para
aperfeiçoar cada membro da igreja como sacerdote neste mundo (Ef 4:11-16).

Portanto, ao contrário do Antigo Testamento, a Igreja cristã é um organismo centralizado
somente em Jesus Cristo e caracterizado cada vez mais no Novo Testamento por sua
descentralização terrestre. O povo, o templo, o dia e, de uma certa forma, o próprio clero
são periféricos aos propósitos centrais da igreja – que logo vamos explorar. Os métodos
centralizadores das nossas igrejas locais de hoje muitas vezes contradizem a direção
descentralizadora do Novo Testamento.

A IGREJA LOCAL
Ao destacar a Igreja universal como o quadro maior, através da qual interpretamos a igreja
local, não pretendo diminuir a importância da igreja local. Ela é a forma finita para realizar
os propósitos do Corpo de Cristo no mundo.

Definição Prática
A igreja local é um grupo de pessoas que confessam sua fé em Cristo, foram batizadas e se
organizaram para fazer a vontade de Deus.

1. É um grupo que confessa fé em Jesus Cristo. Se não professar fé em Cristo como o
Senhor, a pessoa é excluída. Está implícito na parábola do trigo e o joio (Mt 13:24-30),
porém, que a igreja local pode incluir os não-convertidos (apesar das suas confissões). Provavelmente a maioria das igrejas locais, quaisquer que sejam as precauções, inclui os
convertidos e os não-convertidos.

2. Exige o batismo. O padrão do Novo Testamento não admite nenhum membro na igreja
local que não seja batizado.
3. Implica membros. O rol de membros de hoje parece mais uma formalidade pragmática
do que uma realidade bíblica. Mas o fato é que nas próprias igrejas neotestamentárias havia
organização suficiente para determinar vários níveis de liderança, para enviar cartas de
recomendação em favor de membros em trânsito e para disciplinar e expulsar participantes
desviados.
4. Envolve organização. Qualquer igreja, das mais anti-institucionais às mais hierárquicas,
têm organização. Pode ser boa ou ruim. Mas é impossível funcionar como comunidade
sem organização.

Entretanto, existem dois extremos. Num lado, há igrejas que zombam da organização e só
querem “depender do Espírito Santo”; estas raramente sobrevivem mais do que alguns
anos. No outro, algumas igrejas e denominações ficam tão regimentadas, tão corporativas,
que não deixam viver a comunidade cristã. Embora a organização seja necessária, deve ser
flexível, pondo-se à disposição do Cabeça, Jesus Cristo, e da atuação do Espírito.

Em minha opinião, há uma clara evolução de organização eclesiástica a partir do
pentecoste até o Apocalipse. Os detalhes podem ser debatidos. O ponto é o seguinte. Não
há uma estrutura eclesiástica no Novo Testamento, mas uma pluralidade de modelos. Isso
é instrutivo. É possível que uma estrutura ou outra esteja mais próxima do quadro geral do
Novo Testamento. Mas há uma flexibilidade de forma e organização vista em toda a igreja
primitiva. Isso nos liberta para criar e experimentar diversas formas e modelos de igrejas.
Concluímos que o absoluto não é a forma ou a estrutura. A forma da igreja existe para
servir a propósitos maiores.

5. A igreja local existe para fazer a vontade de Deus. Quais são os propósitos de Deus
para a igreja local quanto ao seu funcionamento no dia-a-dia? O coração da nossa
eclesiologia prática depende da resposta a esta pergunta. As formas, a estrutura, os
métodos que usamos devem se desenvolver a partir daqui. Isso merece um estudo mais
profundo.

As Funções Dinâmicas da Igreja Neotestamentária
Nas Escrituras, vemos ações vitais e comunitárias de uma igreja respondendo à Cabeça do
Corpo. Passando de Atos até o fim do Novo Testamento, discernimos quatro categorias de
atividades da igreja local: adoração, aprendizagem, comunhão e evangelização.(2) São
estas funções dinâmicas que mais aparecem como os constantes e absolutos da igreja local.
1. Adoração. O louvor é a ocupação e chamada eterna da igreja. É seu propósito absoluto.
Desde o início, a igreja foi marcada pelo louvor. Os convertidos “perseveravam… nas
orações” (At 2:42); “havia temor” (2:43); “partiam pão de casa em casa” (2:46),
“louvando a Deus” (2:47). Havia várias formas de louvor e oração (At 13:3; Ef 5:18-20;
6:18), o povo sendo o templo vivo da presença divina.
Como a noiva de Cristo, a igreja primitiva era marcada por seu amor criativo perante
Deus. Ser criativo quer dizer ser inovador e, ao mesmo tempo, autêntico no que somos
como igreja. Podemos criar novas formas de adoração que expressem as profundezas do
que nós somos como corpo local. No Rio Grande do Sul, as igrejas da Aliança Bíblica
praticam uma forma da ceia do Senhor muito marcante nos retiros. No meio do círculo de
membros assentados, colocam-se uma mesa comprida com vários conjuntos de cálice e
pão, cada um acompanhado de duas cadeiras. O período começa com cânticos e orações
espontâneas. Logo, livremente, um indivíduo levanta e escolhe outro, levando-o à mesa
para orarem juntos. Não é incomum acontecer confissão mútua de pecado – de atritos,
ofensas, desacordos. Os dois juntos, quietos, no meio do círculo (a maioria ainda
cantando), agora com alguns outros pares também à mesa, servem uns aos outros os
elementos da ceia. Eles oram juntos e voltam ao círculo. Esses momentos levam a igreja
local à presença do Senhor. São tempos de purificação corporal e de fraternidade profunda
através desta forma de santa ceia.
2. Aprendizagem. “E perseveravam na doutrina dos apóstolos” (At 2:42). Diante do
negativismo dos evangélicos brasileiros em relação à teologia, é surpreendente ver como o
Novo Testamento fala de ensino, doutrina e exemplo. Jesus é chamado de mestre (hb.
raboni; gr. didaskalos) 42 vezes. As palavras relacionadas com ensino (didaquê) repetem-
se mais de 175 vezes no Novo Testamento – quase sempre no sentido positivo. Só em 1 e
2 Timóteo vemos mais de 50 referências ao ensino, instrução, doutrina e exemplo, visando
vidas mais consagradas e firmes no Senhor. A aprendizagem é o que orienta e motiva as
outras três funções.

3. Comunhão. “E perseveravam… na comunhão” (At 2:42), “todos os que creram estavam
juntos e tinham tudo em comum” (2:44), e “tomavam as suas refeições com alegria e
singeleza de coração” (2:46). A palavra koinonia (“comunhão”) descrevia o
relacionamento conjugal no antigo mundo grego. Várias vezes no Novo Testamento, ela se
refere à nossa comunhão com Deus (1 Jo 1:3-7). Mas, geralmente, koinonia fala do nosso
relacionamento com outros cristãos (cf. 1 Jo 3:23; 47:7, 20).
A igreja local, através de oração e planejamento, precisa desenvolver novas formas para
encorajar a comunhão genuína. Um corpo local planejou um retiro para estudar o que
significa “servir uns aos outros”. Foi incluído um tempo para lavar os pés uns dos outros.
Não houve nada de especial. Uma mangueira, grama, o sol, e um círculo de talvez 35
pessoas. Poucos esquecerão o que o Senhor fez no meio deles. Uma moça levou outra
pelo braço, chorando, pedindo perdão por ter ciúmes, as duas se abraçaram e lavaram os
pés uma da outra. Com lágrimas, um pai acompanhou seu filho de seis anos e lavou os pés
dele, prometendo ser melhor pai no Senhor. Quase todos lavavam os pés uns dos outros.
No entanto, um motociclista, jaqueta de couro, ficou meio afastado do círculo. Finalmente
alguém o levou ao meio do círculo com uma afirmação de amor e compromisso. O homem
chorou como criança. Nunca fora aceito e amado como naquele momento. Hoje, depois de
se formar no seminário, esse irmão é missionário brasileiro na Rússia.

4. Evangelização. Atos 1:8 é o mandato de Jesus para disseminar o evangelho por todo
mundo. Em Atos 2, Pedro já pre- gou o evangelho na praça em Jerusalém e logo três mil
pessoas foram batizadas. Daí lemos “… e contando com a simpatia de todo o povo.
Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (At 2:47).
Atos recorda a unção da igreja primitiva ao espalhar as boas novas via pregação,
testemunho, viagens missionárias e martírio. Além disso, vemos outras formas de
evangelização no NT: boas obras (Tt 3:1, 2, 8, 14), prática do bem e a mútua cooperação
(Hb 13:16), visita aos órfãos e viúvas (Tg 1:27), procedimento exemplar no meio dos
incrédulos (1 Pe 2:12) e prontidão para responder a todo aquele que nos pedir a razão da
nossa esperança (1 Pe 3:15). Em Atos 2, vemos o testemunho corporal, uma
evangelização pelo próprio modo de ser da primeira igreja local. Um grupo de cristãos que
está experimentando adoração, aprendizagem e comunhão exerce uma atração magnética
nas pessoas que estão procurando a verdade.

RUMOS PARA UMA IGREJA NEOTESTAMENTÁRIA
A Igreja universal é o absoluto conceitual que determina os propósitos da igreja local,
então, as seguintes diretrizes podem orientar melhor as formas e atividades da igreja local.

1. A essência da igreja local. Quanto à vivência prática, o propósito da igreja local é de
encarnar o Corpo de Cristo na terra, fazendo a vontade de Deus, não centralizada nas
formas de estrutura, templo, domingo, culto, pastor, mas nas funções dinâmicas de
adoração, aprendizagem, comunhão e evangelização.

2. Formas sem função. Umal igreja está desqualificada como verdadeira igreja cristã
quando não está desenvolvendo as atividades que caracterizam a igreja local do Novo
Testamento. Assim como o corpo físico sem vida não é mais uma pessoa humana, a forma
eclesiástica sem as funções vitais também não é mais a igreja neotestamentária.

3. Desequilíbrio funcional. Muitas igrejas e denominações exageram uma função em
detrimento das outras. Certas igrejas só evangelizam, mas não têm nenhuma aprendizagem
ou comunhão significativa. Outras igrejas só adoram através de liturgias formais, mas
pouco experimentam da realidade da evangelização ou da comunhão. Outras priorizam a
comunidade, mas são fracas nas áreas de aprendizagem e testemunho. E ainda outras
enfatizam o conhecimento e a doutrina, mas carecem da alegria no louvor, comunhão e
evangelização. Conquanto cada igreja reflita uma certa personalidade e identidade
saudável, é urgente buscar um equilíbrio bíblico no corpo local. Comecemos com uma
auto-avaliação honesta das nossas atividades diante das funções neotestamentárias acima
. E então, diante de Deus, planejemos como criar condições para fortalecer as funções mais
fracas.

4. Função sobre forma. A igreja local pode e deve adaptar suas formas ao povo e às novas
gerações. A adaptação externa é necessária para preservar as funções da igreja local e para
comunicar melhor o conteúdo do evangelho em nossos contextos variados.

5. Funcionalidade e denominações. Embora não sejam essenciais ao funcionamento da
igreja local, as estruturas denominacionais têm seu lugar na coordenação e supervisão das
igrejas locais. Certamente há coisas valorosas em cada tradição – tanto na área prática
quanto na teológica. Mas devemos reconhecer que organizações, programas, modelos,
liturgias, estilos e literatura vão desaparecer. Quando as tradições se tornam ineficientes
diante dos propósitos de Deus, é necessário mudá-las ou desmontá-las. Isso exige uma
reflexão crítica sobre a política denominacional diante da Bíblia. E, a meu ver, as
denominações têm de encorajar e experimentar novas formas de igrejas locais, para que
haja futuras opções na própria denominação – opções orientadas segundo as funções
neotestamentárias. Se não, podemos perder a essência da igreja, preservando a casca.

6. As igrejas e a Igreja. A Igreja universal (e não a denominação) é o absoluto pelo qual
entendemos as igrejas locais. Cada verdadeira igreja evangélica local – não importa a placa
– pertence à família de congregações finitas que representam o Corpo de Cristo no mundo.
Vejo aqui duas implicações claras. No nível individual, se eu não posso experimentar
koinonia transdenominacional com outros evangélicos convertidos, algo está
profundamente errado. No nível eclesial, lembramos que nenhuma igreja local representa
perfeitamente o Corpo de Cristo. Em vez de nos comparar com a igreja vizinha,
criticando-a ou proibindo nossos membros de ter comunhão com os de lá, temos todo
motivo teológico para ajudar umas às outras – da mesma forma como, dentro de uma
igreja, um irmão mais forte vai querer ajudar um mais fraco. As outras igrejas evangélicas
não são adversárias. Rejeitar a comunhão com um irmão é, de alguma forma, rejeitar
Cristo.

7. Visão descentralizadora da igreja local. O Corpo de Cristo opera no mundo. A igreja
local não é o centro de tudo para a vida cristã e não deve esgotar toda a energia dos
membros em suas próprias atividades. A visão descentralizadora quer dizer que a igreja
local se esforça para equipar os santos para que eles sejam sal e luz nos seus lugares.
Entende-se que a igreja é uma comunidade para apoiar, não uma fortaleza para retirar o
cristão do mundo.

8. Formas e doutrina. Resistimos a qualquer inferência de que a Bíblia já não seja
adequada ou, especifica- mente, que o ensino normativo para a igreja não sirva mais. Ao
contrário, o fato de a Bíblia ser nossa suprema autoridade é o que nos liberta para voltar às
Escrituras e redescobrir as gloriosas verdades muitas vezes obscurecidas pela tradição e
pelo hábito.

As lagartas processionárias morreram. As nossas atividades e até sucessos podem nos
enganar. É possível que, em vez de fazer a vontade de Deus em nossas igrejas locais,
estejamos trabalhando em vão. Aqui são apresentados alguns traços de uma eclesiologia
funcional. Não digo uma eclesiologia completa, mas que sugere uma nova orientação
sobre o porquê da igreja local no Novo Testamento. A maioria dessas idéias não é nova.
Mas são oferecidas para que algumas igrejas possam entrar no século XXI com uma nova
visão da sua razão de ser e da liberdade quanto à forma que Cristo concedeu a Sua igreja.

NOTAS
1. Os quatro paradigmas vêm do Pr. Ed René Kivitz num estudo interdenominacional de
pastores em São Paulo; a interpretação dos paradigmas é do autor.
2. Alguns incluem a ação social.

(Condensado do livro: J. Scott Horrell, ed.,
Ultrapassando Barreiras (São Paulo: Vida Nova, 1994), pp. 7-28.) Dr. John Scott Horrell era, até junho 1997, professor titular de teologia sistemática na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Hoje leciona em Dallas, EUA.

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