A escolha do casal infeliz

Autor: Leslie Cameron-Bandler




Ficção bem real

Era uma vez, na não tão mítica terra de Nom, duas pessoas muito agradáveis que se apaixonaram. Decidiram viver o resto de suas vidas juntos, para preservar os bons sentimentos que havia entre elas. Acreditavam que o amor poderia conquistar tudo e idealizaram um futuro de alegria contínua e crescente felicidade.

No entanto, com o passar do tempo, algum mal misterioso começou a espreitar furtivamente pelas frestas da sua alegria. Lenta, invisível e insensivelmente, começou a abrir caminho até o centro do relacionamento. De início, ambos supuseram tratar-se apenas de um estado de espírito temporário do companheiro. Mas com o correr do tempo cada um passou a suspeitar de que o outro estivesse, de alguma maneira, enfeitiçado. Tornava-se cada dia mais árduo manter qualquer semelhança com a felicidade que outrora florescera. As coisas pioraram, até tornar-se óbvio para ambos que mesmo fingir que ainda eram felizes constituía uma tarefa cansativa. Finalmente, começaram a acusar-se mutuamente de serem a fonte do mal, cada qual alegando a própria inocência. Recrutaram aliados entre seus amigos e parentes; escolhidos os lados, foram abertas as hostilidades.

A guerra continuou em sua escalada até que especialistas foram consultados. Três deles sustentaram que o problema seguramente era culpa do homem. Outros três sustentaram que o problema era seguramente culpa da mulher. Cada lado reuniu dados e elaborou sofisticadas teorias para fundamentar suas opiniões, e o resultado foi o acirramento das hostilidades. O homem e a mulher não conseguiam se olhar sem se sentirem irritados ou vazios. Às vezes também se sentiam culpados, porque em momentos ocasionais de solidão perguntavam a si mesmos: ”Será que foi por minha culpa? ", ou "Como eles não vêem que eu também sou responsável?”. Mais tempo se passou, até que finalmente o problema foi levado a um tribunal de justiça.

Trocaram acusações e contra-acusações. A sessão era presidida por um juiz sábio e perspicaz, que num dado momento se inclinou sobre a bancada e disse: "Antes de prosseguirmos com este caso, há algo que devo lhes dizer. Quem quer que seja considerado culpado estará condenado a uma vida de total e absoluta infelicidade e será constantemente atormentado por uma terrível culpa. O outro estará livre para tentar reencontrar uma vida de alegrias. Embora as chances estejam contra vocês, não é impossível tentar recuperar a felicidade. Então, ofereço-lhes uma alternativa. Se ambos não têm qualquer dúvida de que estão com a razão, continuarei a ouvir o caso e tomarei uma decisão. No entanto, não sou perfeito, e posso tomar uma decisão errada. Assim, vocês estarão arriscando o seu futuro por causa da minha falibilidade e da veemência da sua reivindicação. Ou então podem optar por procurar a ajuda de um técnico da experiência indicado pela corte, que se encarregará de lhes oferecer formas alternativas de esclarecer quem está com a razão”. Esta segunda alternativa era ao mesmo tempo assustadora e intrigante para o homem e a mulher. Nenhum dos dois estava realmente certo quanto a quem tinha razão, e todo mundo já ouvira falar dos poderes e dos mistérios dos técnicos da experiência. Depois de muita discussão, e contra o conselho dos advogados, especialistas, amigos e parentes, eles decidiram encarar o desconhecido técnico da experiência, ao invés de pôr em risco seu futuro ao sabor dos caprichos da corte.

Na manhã seguinte, chegaram ao laboratório e esperaram ansiosamente no escritório do supervisor técnico. Um assistente entrou e silenciosamente acenou para que o seguissem.

Caminhando através de longos corredores, passaram por salas cheias de enormes máquinas e de uma parafernália científica. Finalmente, entraram num pequeno quarto completamente escuro, exceto por uma suave luminosidade de cor vermelha. Na sala, aparentemente vazia, havia duas cadeiras. O assistente deixou-os sentados, olhando nervosamente ao redor. Uma porta na pequena sala abriu-se e um vulto entrou. O brilho avermelhado refletiu-se no jaleco branco, criando uma imagem sinistra. O homem e a mulher notaram que a luminosidade parecia irradiar-se de todos e de nenhum lugar ao mesmo tempo. O vulto apresentou-se como o Quarto Técnico e, a um movimento de sua mão, um pequeno terminal de computador emergiu do chão. Dedos ágeis deslizaram pelo teclado e surgiram palavras no monitor.

O Quarto Técnico voltou-se para eles e perguntou: "Sabem por que estão aqui?" O homem e a mulher hesitaram, trocando olhares de esguelha. "Deixem-me então explicar o mais brevemente possível. Vocês decidiram descobrir a qualquer custo, não o que houve de errado e quem foi o culpado, mas como criar um futuro satisfatório em si mesmo. Assim, não terão necessidade de saber o que houve de errado no passado. Segundo as informações que tenho, trata-se de um problema comum: já houve um grande amor entre vocês, mas agora ele se foi.  Deixem-me fazer-lhes uma pergunta relativamente simples: para onde vai o amor quando acaba? Se existe uma resposta satisfatória para esta pergunta, nela está a maneira de criar um futuro satisfatório." O homem e a mulher estavam muito confusos com tudo aquilo, e deram de ombros. O Quarto Técnico acrescentou: "Nós, do Instituto de Experiência Generativa, oferecemos uma variedade de futuros a pessoas que têm o mesmo problema que vocês. Gostaria de resumir rapidamente cada um deles, para que possam entrar em acordo sobre qual escolher.".

Mãos ligeiras desenharam outro intrincado padrão no teclado do computador. A luz vermelha pareceu tremer por um momento. Então, começou a cristalizar-se na imagem de uma pirâmide vermelha e translúcida, suspensa no centro da sala. O restante do aposento permaneceu em absoluta escuridão.

O Quarto Técnico disse: "Quero que cada um de vocês pense em uma recordação agradável do passado – uma lembrança representativa da alegria que desejam recuperar”. O homem e a mulher olharam fixamente para o holograma. Subitamente, ambos puderam ver suas recordações surgirem na pirâmide. Diante da visão de suas lembranças, sentiram-se tristes, pois a alegria que uma vez haviam compartilhado não mais existia. O técnico continuou: ”Uma recordação tornou-se visível para cada um de vocês. Se entrarem na pirâmide, não somente assistirão ao acontecimento do princípio ao fim, como também poderão ouvir, sentir, cheirar e provar tudo o que ocorreu naquele momento, naquele lugar. Podem experimentar, se quiserem." Ambos deram alguns passos para dentro da pirâmide. Por um momento, apenas reluziram à luz trêmula. Então, foram suspensos e mergulharam na memória – primeiro na da mulher, depois na do homem. As recordações eram agradáveis, e satisfaziam-nos. O técnico digitou o comando “p-a-r-a-r’’ e ‘‘retomo’’. A pirâmide desapareceu, e novamente brilhou na sala a luminosidade vermelha. O homem e a mulher permaneceram juntos, olhando-se como faziam no começo de seu amor. Suspiraram profundamente e voltaram às suas cadeiras.

"Nossa primeira alternativa”, explicou o Quarto Técnico, "consiste em equipar sua casa com quantas dessas pirâmides quiserem. Cada pirâmide retém três acontecimentos, com aproximadamente seis horas de duração. São muito caras, por isso podem encomendar algumas agora e outras mais tarde." O homem e a mulher trocaram olhares de profundo interesse. "Contudo, devo preveni-los de que muitos dos nossos clientes tiveram problemas. Alguns cansaram-se de reviver sempre a mesma lembrança. Continuaram comprando pirâmides, até que o dinheiro acabou, e com ele as lembranças agradáveis. Mas houve um problema mais sério. Alguns casais permaneceram tanto tempo na pirâmide da memória que não conseguimos tirá-los de lá. O técnico fez uma pausa. ”Se usada com critério, a pirâmide também pode oferecer uma alternativa para os desentendimentos".

O Quarto Técnico voltou-se para o console do computador. A luz tremeu novamente, mas dessa vez cristalizou-se na imagem cinzenta e pulsante de um cérebro, suspenso no mesmo lugar onde estivera a pirâmide. "O segundo programa é simples e um pouco mais barato, mas na verdade dura bem mais. O cérebro que vêem à sua frente é um holograma vazio, que pode ser preenchido por qualquer pensamento ou crença. Não é nada mais que um elaborado banco de memória que armazena tanto informações como programas que processam essas informações. Simplificando, podemos preenchê-lo com fatos e sistemas de crença que processarão esses fatos." O técnico digitou uma seqüência e encarou o homem e a mulher. ”Esse programa oferece a seguinte possibilidade: cada um de vocês acreditará firmemente que o outro é culpado, e terá a ilusão de que ele aceitou esse fato como incontestável. Vocês precisam apenas entrar no holograma para experimentar.” O Quarto Técnico fez uma pausa e um gesto em direção ao cérebro. A mulher levantou-se e caminhou até a imagem. Repentinamente, recordou acontecimentos que nunca deixara transpirar. Teve certeza de que agira errado e de má-fé. Mesmo assim, sentiu-se completamente íntegra, embora isso não preenchesse o vazio que havia dentro dela. O homem a seguiu e teve a mesma experiência. ”Naturalmente, essa escolha torna imperativo que vocês nunca mais voltem a se encontrar. Vejo que as outras desvantagens são evidentes para vocês. Ainda assim, esta é uma opção que muitas pessoas aceitam."

O cérebro desapareceu, deixando apenas a luminosidade vermelha na sala. ”A terceira escolha que oferecemos é muito popular. Vocês podem ter um futuro com novas experiências juntos, sem nenhum risco ou sentimentos desagradáveis." Uma nova seqüência de teclas foi ritmadamente acionada. A luz vermelha tremeu mais uma vez, mas não apareceu qualquer holograma. Em vez disso, uma aura verde surgiu em volta do homem e da mulher, iluminando-os da cabeça aos pés. O Quarto Técnico pediu-lhes que revivessem o tipo de lembranças agradáveis que haviam desejado que permeasse seu relacionamento”.

Começaram a rever, separadamente, as recordações do tempo em que se haviam apaixonado e decidido viver juntos. Recordações e sentimentos agradáveis tomaram seus corpos e pensamentos. O técnico instruiu-os então a interagir da forma que desejassem. Eles se encararam e começaram a falar, e coisas muito estranhas aconteceram. Não importa o que falassem ou fizessem, seus sentimentos eram comparáveis àqueles que tinham quando estavam apaixonados. Tentaram ser agressivos e mesquinhos, mas o efeito era sempre prazeroso.

Finalmente, o Quarto Técnico pressionou os comandos adequados e a luminosidade vermelha sobrepôs-se ao que restava do brilho verde. "Esta opção oferece um futuro de condutas variadas, mas com um alcance limitado de sentimentos. A vantagem, naturalmente, é que todas as arestas desagradáveis da relação são eliminadas. Por outro lado, a possibilidade de novos momentos inesquecíveis também é eliminada.”

Mais uma vez, o homem e a mulher trocaram olhares cheios de interesse. Neste momento, o técnico levantou-se de sua cadeira e fez um sinal para que o seguissem. De novo atravessaram longos corredores, até que o técnico entrou bruscamente em uma sala. Nas paredes alinhavam-se cilindros com cerca de um metro de diâmetro e dois metros e meio de altura. Estavam dispostos em pilhas, colocadas lado a lado. Parecia haver dezenas de milhares pela sala. Todos pareciam ser feitos de algum tipo de vidro, e iluminados pelo brilho avermelhado.

O Quarto Técnico observou os rostos amedrontados do casal e falou sem qualquer emoção: "O que vêm aqui é a quarta e última opção. Se entrarem nestes cilindros, poderão viver a vida que acreditavam que teriam quando estavam apaixonados. Só precisamos decompor suas expectativas daqueles dias, programar um módulo e os sonhos de suas vidas se tornarão reais. Vocês apenas sentirão isso. Nada será real, mas vocês não serão capazes de perceber a diferença. Passarão o resto de suas vidas num estado semelhante ao coma, embora interiormente vivam uma vida plena. Cuidaremos para que permaneçam vivos, e qualquer excesso de energia que produzirem será canalizado para pagar os custos." O técnico fez um gesto com a mão, e dois cilindros abriram-se, preservando a luminosidade vermelha. "Estes dois estão programados para uma pequena demonstração." O técnico acenou para o casal.

O homem entrou cautelosamente e a porta se fechou com suavidade atrás dele. Foi tomado por uma sensação estranha, delirante. Viu a si mesmo na sala do supervisor técnico, de mãos dadas com a mulher. Ouviu sua própria voz dizer com convicção, sentindo o fervor e a sinceridade que havia em cada palavra: "Decidimos que não precisamos de seus serviços. Vamos construir sozinhos nosso próprio futuro de satisfações”. Então, enquanto saíam, olhou bem dentro dos olhos da mulher e soube, claramente, que ambos reencontrariam e preservariam o amor que haviam partilhado. Seguiram-se três dias de alegrias contínuas, ricos em momentos de amor e de carinhosa convivência, que fortaleceram no homem sua convicção. Subitamente, o mundo à sua volta dissolveu-se; esquecera-se de que estava dentro do cilindro, e, quando se recobrou, olhava para o técnico. Levantou-se ao mesmo tempo que a mulher, que estivera no cilindro ao lado. Olharam-se. Nada disseram. O técnico levou-os de volta ao escritório do supervisor técnico e disse-lhes que agora deviam decidir seu destino. Saiu, deixando-os sós.

Uma hora depois, o supervisor técnico entrou no escritório e perguntou: "O que decidiram?”

Os dois entreolharam-se, e finalmente o homem disse: “Decidimos não utilizar seus serviços, por mais sedutores que sejam. Vamos tentar construir nosso próprio futuro a partir das alegrias do passado, e fazer desta vez o melhor que pudermos. Se falharmos, voltaremos; mas não nos esperem. Sabemos que não será tão fácil quanto seria com a sua ajuda, mas temos esperanças de que será melhor”. Com isso, voltaram-se e saíram.

O supervisor técnico arqueou uma sobrancelha e virou-se para a parede às suas costas. A um movimento de sua mão, a parede desapareceu, revelando o Quarto Técnico. O supervisor técnico foi até ele e disse: "Você conseguiu mais uma vez. Merece ser condecorado por esta proeza. Agora pode voltar ao seu trabalho". O técnico sorriu, o supervisor técnico também, e o homem e a mulher viveram felizes para sempre.

No livro Soluções (Summus).


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