Autor: Robinson Cavalcante
Introdução
Queridos irmãos e irmãs, eleitos e eleitas de Deus,
Sou grato ao Senhor e à liderança da ABUB por participar deste Congresso, com as mesmas emoções e as mesmas convicções mantidas e amadurecidas ao longo de 34 anos, desde a reunião de fundação da ABU-Recife em Outubro de 66. Na memória de tantas reuniões, acampamentos, cursos de férias, IPLs, destaco a Conferência Missionária de Urbana, de 67, onde me decido por uma vida missionária, o Seminário Continental de Capacitação, de 69, no Equador, onde me preparo para ser um assessor, e a Assembléia Mundial da IFES, de 75, na Áustria, pela ampla visão do caráter internacional do nosso movimento.
Graças a Deus por esses 34 anos de vivência e convivência com a ABU: celeiro de missionários, docentes e líderes sociais. Tenho buscado, ao longo da minha vida e ministério – e hoje no exercício do episcopado – manter esse ideal de vida cristã, que compatibiliza a piedade, a ortodoxia, a excelência profissional, a responsabilidade social e a unidade do Corpo de Cristo, pilares deste movimento e de uma concepção integral do Evangelho.
A História da Igreja tem demonstrado que, quando cristãos se ajuntam com sinceridade, guiados pela Palavra e iluminados pelo Espírito Santo, algo sempre acontece. Congressos têm mudado o curso de vidas pessoais, de igrejas e de nações. Que este Congresso não seja em vão.
I – O Lugar
Creio, firmemente, que não nascemos em uma época e em um lugar por acaso, mas em virtude dos desígnios de Deus. Como seres sociais, somos, necessariamente, seres históricos, geográficos e culturais. Foi pela vontade de Deus que nascemos hoje e não ontem ou amanhã. Nascemos aqui, e não ali ou acolá. É sempre a partir de nosso tempo e espaço que assumimos o nosso mandato cultural e a nossa tarefa missionária. É assim que compreendemos as palavras do poeta, quando escreve: “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste”.
Para tanto, é importante resgatar o sentido da Criação, da Providência, da Encarnação e das Alianças. Resgatar as implicações da humanidade de Jesus, plenamente um varão galileu. Resgatar a lição do Seu pedido ao Pai para que não tirasse os seus seguidores do mundo, mas que os livrasse do mal. Resgatar a sua ordem, que nos envia ao mundo que Ele amou, e pelo qual morreu.
Encontramo-nos, pois, diante do aqui e do agora, sob a ordem de vivermos e anunciarmos o Evangelho, primeiro em nossa Jerusalém e em nossa Judéia. O Espírito Santo, derramado no Pentecostes sobre uma diversidade de povos, inclui o nosso povo. A multiplicidade de nações que adorarão o Cordeiro, inclui a nossa nação. E somos nós somente nós os responsáveis por fazermos o Evangelho relevante a esta nação e a esta geração.
Encontramo-nos hoje neste Congresso porque a esta parcela do globo terrestre – inicialmente dedicada à Vera ou Santa Cruz – também chegou a Palavra da Verdade do Evangelho. Aqui, também, formou-se uma comunidade dos santos, que foi crescendo e produzindo frutos, à medida que ia ouvindo e entendendo a verdade, pela Graça de Deus. Sabemos que hoje, irmãos e irmãs vivendo em países secularizados ou sob perseguição tem ouvido da fé da igreja no Brasil, e dão graças a Deus por isso, intercedendo por nós.
II – A Gratidão
Nessa tomada de consciência, creio, também, que a nossa maturidade espiritual requer uma atitude de gratidão pelos pioneiros da fé evangélica, que aqui aportaram para, com sacrifício, compartilhar o senhorio de Cristo, único Salvador, movidos pelo amor a Ele e a nós. Ao honrarmos a memória dos nossos predecessores na fé, devemos, também, nos apropriar da sua herança e nos edificarmos com as lições extraídas dos seus feitos em uma cadeia de continuidade e em uma correção de eventuais equívocos, pois, se não conhecermos quem somos não sabemos quem somos e, muito dificilmente o que seremos. Sem história não há identidade. Sem passado não há futuro.
A partir dessa constatação creio que uma questão incômoda ronda as mentes desta geração: somos continuadores dos pioneiros ou somos anunciadores de um “outro evangelho”? A nossa teologia honra ou desonra os mártires do passado? Somos atualizadores de um legado ou somos portadores de uma amnésia espiritual? Que conhecemos do passado para sermos continuadores desta obra? Não seria o grande pecado e fraqueza desta geração justamente a ignorância dessa história como Igreja, e Igreja no Brasil?
A gratidão aos pioneiros da fé nos conduz a outra ação de graças: a Deus por Sua especial bondade dispensada na criação e preservação deste pedaço do planeta chamado Brasil: a sua beleza, a amenidade e diversidade do seu clima, a fertilidade de suas terras, a ausência de fenômenos naturais destruidores. Gratidão a Deus por nossa unidade nacional, sob um só Estado e um só idioma, na rica diversidade das nossas regionalidades. Gratidão a Deus pela liberdade que temos por cultuá-Lo e serví-Lo, pela fraternidade e pela permanência da alegria, quando tantas pessoas não sabem mais sorrir.
III – A Confissão
A geração que agradece é, também, a geração que confessa.
Esta geração tem a responsabilidade de confessar 500 anos de pecado. É trágico que, em nome do Evangelho e sob a bandeira da cruz, milhões de nativos tenham sido exterminados, roubadas as suas terras, destruídas as suas culturas, contaminados pelas enfermidades e pelos vícios. É trágico que, em nome do Evangelho e sob a bandeira da cruz, milhões de africanos tenham sido caçados como animais, amontoados em fétidas naus, nas quais metade haveria de morrer, tenham sido chicoteados, violentados, coisificados, despojados da sua dignidade. Somos herdeiros de invasores. Cada pedaço desse chão, cada título de propriedade, tem como antecedente um assassino, um ladrão, um estuprador.
Fomos, no passado o que os economistas denominam uma “colônia de exploração”, geradora de excedentes para outros países. Uma economia fundada no latifúndio e no escravismo, uma política fundada nas oligarquias e no patrimonialismo, concentrando propriedade, renda e poder, excluindo e marginalizando índios, negros, mulheres, deficientes, pobres.
Hoje, em um presente sob nossa responsabilidade e não dos nossos antepassados, permanecem as desigualdades regionais e sociais, onde os 20% dos mais ricos detêm 50% da Renda Nacional, enquanto os 20% dos mais pobres detêm apenas 2% dessa Renda.
Dirigentes eleitos com o voto dessa geração e dessa igreja optaram por destruir o Estado e a Nação, reduzindo-nos a um mero mercado dependente e periférico, marcado pelas falências empresariais, pela desnacionalização, pelo desemprego, pela marginalização. Os nossos indicadores sociais nos colocam em posições vergonhosas no cenário internacional. Sem saúde, sem educação, sem emprego, sem terra, sem teto, sem esperança – governados pelos sem vergonha e sem coração – explode a marginalidade, o narcotráfico e a violência, cujas tentativas de “solução” incluem massacres, grupos de extermínio, tortura, um sistema penitenciário: desumano e condomínios fechados.
Phillip Yancey, em seu importante livro Maravilhosa Graça, nos diz que enquanto a segregação racial maculava o sul dos Estados Unidos, as igrejas protestantes conservadoras nem tomavam conhecimento da tragédia, preocupadas e ocupadas em combater o fumar, o dançar, o ir ao cinema, o uso de cosméticos ou de certas roupas em sua membresia toda branca. Igrejas que levantavam milhões de dólares para a evangelização dos negros da África, mas que não permitiam a entrada dos vizinhos negros. Algo semelhante aconteceu com o regime do apartheid na África do Sul, onde igrejas fundamentalistas, legalistas e moralistas apoiavam a imoralidade do seu regime político e social.
Capítulos positivos da história da Igreja atestam que a alienação não é uma fatalidade para os cristãos. Escreve Yancey: “Rousseau disse que a igreja estabeleceu um dilema insolúvel de lealdade. Como os cristãos podem ser bons cidadãos neste mundo se estão principalmente preocupados com o outro mundo?… Como bem observou C. S. Lewis, aqueles que estão muito conscientes de um outro mundo tornam-se muito mais eficientes neste mundo”.
Não haverá esperança para o Brasil se a nossa fé for inoperante, sem desdobramentos, sem obras, ausente de um amor abnegado, se nos fecharmos em nossos guetos, em nossa sub-cultura, em nossos clubes religiosos, alienados, insensíveis, dando a resposta de Caim: “Sou eu porventura guardador do meu irmão?”, cedendo a tentação de Pedro no Monte da Transfiguração, fugindo dos endemoniados, dos leprosos, dos famintos e da Cruz, propondo um “acampamento”, um “louvorzão” eternos…
Não haverá esperança para o Brasil com uma igreja dividida, liderada por chefes autocráticos e vaidosos, importando modismos de outros países, negociando a prosperidade com o céu, ou gastando suas energias na luta contra um inimigo que já foi derrotado na cruz. É tempo de arrependimento e de mudança.
IV – Posicionamento
O posicionamento dos cristãos, diante a sua pátria terrena, deve ser marcado, basicamente, por cinco atitudes:
1. Conhecer. O que é o Brasil? Por que ele é assim? Quais as suas características e os seus problemas, e por que estes existem? Respostas podem ser obtidas pela profusão de dados e estudos à disposição dos interessados;
2. Discernir. Entendemos o que vemos nos jornais e telejornais? Nossas interpretações e opiniões são frutos da intuição, tradição, preconceito, ou são baseados nas informações das Ciências Humanas e da Palavra de Deus?
3. Interceder. É nossa responsabilidade colocar a nossa pátria terrena, seus dirigentes, seu povo, seus pecados, diante do trono da graça;
4. Propor. Os cristãos têm a Palavra e o Espírito, e um acervo milenar de experiências, que os permite sugerir mudanças, propor soluções, contribuindo com suas reflexões com alternativas construtivas;
5. Intervir. Viver é participar e tomar partido. Na variedade dos nossos dons e vocações, situações e possibilidades, somos “sal” e “luz”, em nossa atuação decidida, sacrificial, pacífica, profética, co-beligerante com os movimentos e organizações sociais e culturais, como cidadãos responsáveis, arautos do Reino de Justiça e Paz, agentes de transformação histórica.
V – As Possibilidades
É possível construir, com a participação ativa dos cristãos, cenários diferentes para este País que se desenvolve com exclusão social, democracia apenas formal, e em que o exercício da cidadania vem sendo progressivamente criminalizado?
A economista Tânia Bacelar, da Universidade Federal de Pernambuco, nos aponta seis fontes para essa possibilidade, e urgente necessidade:
1. A Vulnerabilidade do Projeto de Elites. Excludente, segregacionista, contando apenas com “pedaços” do Brasil, não consegue dar conta das nossas potencialidades;
2. O Enorme Potencial do Brasil. Pode dobrar sua área cultivada, eliminar a miséria no campo, dinamizar a economia das cidades do interior, reduzindo a pressão sobre as grandes cidades;
3. O Potencial que representa a Demanda Insatisfeita de vários tipos de bens, espaço para a criação de empregos urbanos;
4. O Potencial Produtivo e Tecnológico que já se montou aqui. Este é um país capaz de enfrentar com êxito desafios complexos. Temos numerosos exemplos disso em nossa história;
5. O Potencial Criativo e as Habilidades do nosso povo. Impacto positivo teria um investimento maciço em uma Educação abrangente, que trabalhe novos valores, como a Solidariedade, que promova o potencial de cada pessoa;
6. A Capacidade Organizativa da nossa População, da qual muitos duvidam e outros buscam diminuir, e da qual assistimos freqüentemente provas, como o MST, na organização de uma grande massa, de coordenação descentralizada, visando montar um projeto alternativo para o Século XXI.
Hoje vivemos sob um império político-militar (os EE.UU.) e um oligopólio econômico (o G-8), com uma elite nacional dirigente aparentemente sólida e uma ideologia pretensamente única (o neo-liberalismo), com a modernidade desabando e a História aparentemente fechada, sem novas possibilidades. Mas, a mesma história é um cemitério de impérios, de tiranos e de civilizações, aos quais a Igreja tem assistido, ou ministrado, os funerais. Só Deus é Absoluto e Eterno, e continua Providente, que derruba os ídolos gigantes de pés de barro (e gosta de pregar peças na História…).
VI – O Papel
O papel dos cristãos junto à vida pública nacional – política e cultural – procurando promover, em todas as esferas, os valores do Reino de Deus, deve se dar mantida a estrita separação entre Igreja e Estado.
Devemos insistir na rejeição à tentação teocrática, à tutela do Estado ou a promiscuidade com o poder. Foi Lesslie Newbigin quem afirmou: “O projeto de trazer o céu de cima para a terra sempre resulta em trazer o inferno de baixo”. A ligação oficial entre Igreja e Estado ou resulta na manipulação da Igreja pelos políticos ou na imposição do legalismo, confundido com o Reino de Deus.
Não podemos admitir que um cristão de hoje, maduro e sadio, deseje ver reeditado no Brasil inquisições protestantes, como a cidade de Genebra na época de Calvino, onde eram proibidos, e passíveis de rigorosas punições, os banquetes, o canto, a dança, a caça, o teatro, os cosméticos, e o que entendiam por “roupas indecorosas”… Antes, afirmamos o direito e o dever dos cristãos vocacionados de participarem, criativamente, da produção da literatura e das artes (sonoras, plásticas ou cênicas) ecos da beleza de Deus.
Hoje, no Irã, Arábia Saudita ou Afeganistão existe uma Polícia Moral, símbolos da repressão religiosa intolerante (e que conta com enrustida simpatia de evangélicos brasileiros). Lamentavelmente, a Igreja Cristã, tem tido, em várias situações, semelhante comportamento.
Oremos, pois, fervorosamente, para que Deus nosso Senhor tenha piedade de nós, e poupe o Brasil das des-graças, de qualquer fanatismo, extremismo, patologia ou chatice (inclusive protestante).
Que a Igreja, espaço da graça, não concorra para destruir a espontaneidade, a afetividade, o lúdico e o erótico. Que a Igreja, espaço de graça, não concorra para destruir uma das últimas civilizações da alegria e do prazer, dádivas do Criador, e sim para sua realização e aperfeiçoamento.
O papel dos cristãos junto à vida pública, em suas diversas áreas, pode ocorrer por três vias:
a) Institucional – papel profético, cívico e filantrópico exercido pela denominação ou comunidade local, de forma oficial;
b) Individual – atuação pessoal de cada cristão na sociedade: sindicatos, partidos, ONGs, movimentos sociais e culturais;
c) Orgânica – atuação de grupos de cristãos em movimentos e organizações por eles constituídos, a partir de sua fé e princípios, para atuação especializada.
No atual contexto histórico, os cristãos, em sua atuação, deveriam priorizar as seguintes ênfases:
1. O Resgate do sentido de dignidade da pessoa humana, criada à imagem de Deus, capazes de se, capazes de se in-conformar com o mal e de propor alternativas, sendo lícito para elas lutar (resistência pacífica);
2. A devolução da esperança em uma história sempre dinâmica, aberta, diversa e criativa, a partir da Providência, do Reino de Deus e da Escatologia;
3. O Fortalecimento da crença no valor da cidadania, do direito e da participação solidária nas organizações e movimentos da sociedade civil;
4. O estímulo à criatividade de alternativas no campo econômico (empresas familiares, cooperativas, parcerias, empresas comunitárias, empresas auto-gestionárias, etc.), a todas as expressões micro-utópicas, repensando o legado das antigas macro-utopias;
5. O atribuir a si mesmo um papel profético, na denúncia dos pecados sociais e estruturais, apoiando as iniciativas populares que exijam a presença da Ética na Política.
Lembremo-nos que a Igreja, um dia, já foi chamada de “consciência moral da nação”.
VII – A Fé, a Esperança, o Amor
Meus queridos irmãos e irmãs, discernir é preciso.
Acautelai-vos dos que adicionam artificialidades ao Evangelho, aditivos ideológicos ou culturais, tais como: “democracia cristã”, “partido cristão”, “família cristã”, que se constituem em danosos exercícios etnocêntricos, manipulando a Palavra de Deus, e desqualificando as visões divergentes.
Acautelai-vos das versões liberais e conservadoras da chamada “ revelação progressiva”, expressões da arrogância dos contemporâneos contra o passado, arrogância do “ nós” contra “o resto”, pretenciosidade de querer a equivalência entre modelos históricos com os valores da Revelação. Revelação de valores e não de modelos, estes, todos, constituídos culturalmente. Valores capazes de interagir com a inevitável diversidade e dinamicidade cultural. Esses modelos, pretensamente eternos, são, no máximo, antigos. Esses modelos chamados padrões são, no máximo, saxões. Lamentavelmente, nessa luta contra os adicionais ao Evangelho e às sacralizações culturais, dificilmente podemos contar com a colaboração de profissionais cristãos das Ciências Humanas, quase sempre fundamentalistas seletivos, paralisados pelos dogmas culturais que não conseguem questionar, seja em virtude de bloqueios internos ou temores externos. O que apenas retarda o amadurecimento e a cura da Igreja, e o seu papel libertador.
Meus queridos jovens cristãos tupiniquins, minha querida tribo verde-amarela,
Nesse momento de crise, de transição, e, também de desânimo, de desesperança, vocês podem – e devem – encarar a Esperança que o Brasil precisa: uma esperança firme, sólida, vibrante, baseada nos sonhos da juventude sintonizada com os sonhos sempre renovados do coração de Deus. Sonho de dias melhores até o Dia Perfeito. Sonhos de cristãos reconciliados com sua cultura e que amam sua pátria e povo.
Vocês podem – e devem – ser portadores da Fé que o Brasil precisa: teocêntrica, cristocêntrica, ortodoxa, e, ao mesmo tempo, ortoprática, sadia, sensata, capaz de promover ações do Reino nos corações, nos relacionamentos, nas instituições e nas estruturas.
Vocês podem – e devem – ser instrumentos do Amor que o Brasil precisa: fruto do Espírito Santo, sempre acompanhado da bondade, da mansidão, do altruísmo, da solidariedade, da compaixão, da abnegação.
É na inconformação com os sistemas deste mundo – inclusive sistemas religiosos – é na compreensão da vontade de Deus pela renovação do entendimento que a Fé, a Esperança e o Amor podem vicejar, na permanente reforma da Igreja Reformada e na eterna construção do País do Futuro.
Tenhamos bom ânimo. O Senhor está conosco.
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