Autor: Walter Altmann
A IECLB é uma igreja de confissão luterana e se alegra com essa identidade confessional. Mas ela tem também um preito de gratidão para com João Calvino, reformador de Genebra. Junto com Lutero, ele é reconhecido como um dos grandes reformadores da Igreja no século 16.
Alguns dados acerca da vida e da obra de Calvino
João Calvino nasceu em Noyon, na França, em 10 de julho de 1509. Celebram-se, pois, os 500 anos de seu nascimento. Calvino teve formação humanista, conhecendo à fundo os escritos da antiguidade, os pais da igreja, especialmente Agostinho, e os métodos da interpretação bíblica. Esta formação lhe conferiu, entre outras capacidades, uma extraordinária precisão na linguagem. Sua titulação foi na área do Direito, o que explica a importância que deu ao direito e à ordem eclesiásticos. Embora quase 26 anos mais jovem do que Lutero, foi contemporâneo dele, sem, porém, tê-lo conhecido pessoalmente. Chegou a interagir, no entanto, intensamente com o colaborador de Lutero, Felipe Melanchthon. Entre 1533 e 1534, Calvino aderiu intimamente ao movimento da Reforma iniciado por Lutero, fato que posteriormente ele viria a classificar como uma “conversão inesperada”, semelhante à de Paulo em Damasco, conversão esta que atribuiu à providência divina.
Ao longo de sua vida trabalhou, em diferentes versões, cada vez mais detalhadas, em sua obra máxima, as Institutas da Religião Cristã. Trata-se de uma súmula da fé cristã, um dos escritos teológicos mais relevantes de toda a cristandade. Inicialmente com estrutura semelhante à dos Catecismos Menor e Maior de Lutero, a primeira edição surgiu em 1536, e a última, já extremamente volumosa e transformada em tratado dogmático, em 1559. Nessa obra ele rejeita, à semelhança de Lutero, a “justiça das obras”, para apegar-se à “justiça de Cristo”, apreendida pela fé, pela qual o ser humano pecador aparece à vista de Deus como um ser humano justo.
Por essa opção Calvino teve que recorrer ao exílio, buscando refúgio em cidades-livres, como Genebra, Basiléia e Estrasburgo, que se inclinavam para a Reforma. Exortado veementemente por Farel, o qual se empenhava em introduzir a fé evangélica em Genebra, Calvino foi por ele convencido a permanecer nessa cidade, em vez de prosseguir a Estrasburgo como intencionava. Calvino atuou então em Genebra a partir de 1536, como professor e, ainda que fora autodidata teológico sem ordenação ministerial, também como pregador. Formulou as ordenanças eclesiásticas sobre a organização da igreja, entre outras prevendo uma celebração mensal (não semanal) da Santa Ceia, o canto de salmos no culto e uma rígida disciplina moral e eclesiástica. Sendo esta assunto polêmico, Calvino chegou a ser expulso da cidade, o que o obrigou a instalar-se em Estrasburgo até 1541, quando retornou a Genebra por solicitação de novos magistrados na cidade, para ali permanecer até sua morte em 1564. Aí liderou a Reforma e o processo de organização da igreja reformada e da própria sociedade genebrina. Na organização da igreja, deu participação decisiva a presbíteros e diáconos leigos, na organização da sociedade incutiu a observância de preceitos cristãos.
Sob a influência de Calvino, o culto passou a estar nitidamente centrado na pregação do Evangelho. Notáveis comentários bíblicos foram por ele escritos. A vida comunitária e a moral tinham um rígido regramento disciplinar. A dedicação do domingo ao culto e a proibição de imagens nos templos eram observados de forma consequente. A doutrina da dupla predestinação, para a salvação e a condenação, tem suscitado controvérsias até hoje, mas sua exposição por demais simplista, algumas pessoas predestinadas para a salvação, outras para a condenação, não faz jus à profundidade da teologia de Calvino, cujo interesse consistia acima de tudo em enfatizar a soberania de Deus sobre todas as pessoas e sobre o mundo, bem como a livre eleição pela graça divina.
A influência de Calvino na Igreja
A influência de Calvino se estendeu para muito além de Genebra, tendo sido decisiva no surgimento e desenvolvimento das igrejas reformadas e presbiterianas na Europa, nos Estados Unidos e, posteriormente, em todo o mundo. A comunhão das igrejas reformadas compreende hoje cerca de 75 milhões de fiéis em 214 igrejas congregacionais, presbiterianas, reformadas e unidas em 110 países. A maioria dessas igrejas assume um claro compromisso ecumênico e de responsabilidade social profética.
No Brasil, há várias igrejas presbiterianas e reformadas, sendo a maior delas a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), fundada em 1862 (data oficial 1859, com a vinda do primeiro missionário). A IECLB teve estreita parceria com a IPB no âmbito da antiga Confederação Evangélica do Brasil e intercâmbio entre suas respectivas faculdades de teologia em São Leopoldo e Campinas, até o golpe militar em 1964, quando embates teológicos e ideológicos levaram a rupturas internas naquela igreja. De outra parte, a IECLB tem mantido relações fraternas com a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB), criada em 1903, com a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (IPU), criada a princípio como federação em 1978, e com a Igreja Cristã Reformada, com as quais compartilha membresia, seja no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), no Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) e no Conselho Mundial de Igrejas (CMI).
A influência de Calvino na sociedade
Desde a obra clássica de Max Weber, Ética Protestante e Espírito do Capitalismo (1904-1905), o nome de Calvino tem sido associado, de forma bastante simplificada, tanto às conquistas quanto às mazelas do capitalismo. Certo é que ele defendeu um sentido de vocação no trabalho e na ação social, com grande disciplina, associada a um estilo de vida bastante regrado, e assim contribuiu para o desenvolvimento da modernidade. Combinou o zelo na obtenção de lucro com a restrição no seu usufruto para fins pessoais, favorecendo seu re-investimento na empresa. Sua visão da sociedade e de sua organização política contribuiu para o desenvolvimento da democracia.
Assim como em Lutero, nem todas as ações de Calvino podem hoje ser justificadas. O episódio mais controvertido foi o papel de Calvino na condenação de Miguel Serveto à morte na fogueira em Genebra, em 1553, por heresia, ao rejeitar a doutrina da trindade. Contudo, desqualificar a obra de Calvino à base desse episódio, por mais deplorável que seja, revelaria desconhecimento dos processos históricos mais abrangentes. Não pode haver qualquer dúvida quanto à importância da obra de Calvino em seu todo e em suas repercussões. Em obra recente acerca de Calvino, o romancista e teólogo Klaas Huizing descreve sua contribuição com os termos reformador, organizador, arquiteto da fé, advogado de Deus, disciplinador e frutificador, realçando o legado que deixou até os dias de hoje.
O legado de Calvino e a IECLB
A IECLB é devedora do legado de Calvino também num sentido histórico bem específico. Ela tem sua origem na vinda de imigrantes evangélicos alemães, suíços, austríacos e de outros países europeus. Entre eles havia não apenas luteranos, mas também reformados (calvinistas e zwinglianos) e unidos (de luteranos e calvinistas). A mais antiga comunidade membro da IECLB, a de Nova Friburgo / RJ (maio de 1824), era constituída, em boa medida, de reformados. A maioria das comunidades da IECLB designa-se até hoje como “evangélica”, termo que caracteriza o centro da teologia tanto de Lutero quanto de Calvino. Se a IECLB, ao longo de sua história, se definiu mais e mais como sendo de confissão luterana, nunca o fez em antagonismo a Calvino ou à tradição reformada. Ao contrário, entende que as duas tradições se sabem irmanadas na fé em Cristo e na proclamação do evangelho da graça de Deus, pelo qual o ser humano, através da fé, é justificado. Diante dessa convicção comum no centro da fé, diferenças em outros tópicos teológicos podem ser reconciliadas como ênfases peculiares de cada uma das tradições, sem se excluírem mutuamente. Isso vale também no tocante à compreensão da Ceia, em que diálogos oficiais entre luteranos e reformados puderam remover o mal-entendido de que o calvinismo concebesse uma presença apenas simbólica de Cristo na Ceia.
A concordância básica alcançada nos diálogos referidos ficou expressa claramente, na Europa, na chamada Concórdia de Leuenberg (1973). Essa Concórdia elabora a compreensão comum do evangelho sobre a seguinte base: “A Igreja está fundamentada tão-somente sobre Jesus Cristo, o qual a congrega e a envia através da dádiva de sua salvação na proclamação e nos sacramentos. Segundo a compreensão reformatória, para a verdadeira unidade da Igreja é necessária e suficiente a concordância na reta doutrina do evangelho e na reta administração dos sacramentos.” Assim, as igrejas signatárias luteranas, reformadas, unidas, valdenses e dos irmãos moravos, se reconhecem em plena comunhão de púlpito e altar (palavra e sacramentos) e reconhecem mutuamente a ordenação de seus ministros. No Brasil, não temos tido um processo de diálogo entre luteranos e reformados com o objetivo de adesão à Concórdia de Leuenberg, mas a IECLB se sabe irmanada àquelas igrejas reformadas que compartilham dessas convicções fundamentais.
Conclusão
Nesse sentido, a IECLB se congratula com as igrejas presbiterianas e reformadas no Brasil pela passagem dos 500 anos do nascimento do Reformador João Calvino e reconhece a data comemorativa como parte significativa de sua própria história. Assim como queria o próprio Calvino, também a IECLB expressa “glória a Deus somente” (soli Deo gloria).
Porto Alegre 10 de julho de 2009.
Walter Altmann
Pastor Presidente da IECLB
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