Autor: Emir Sader
Política e religião em livros de ficção cristã
Livros de ficção científica cristã, inspirados nas profecias bíblicas, já vendem mais que Harry Potter nos EUA. Esse gênero novo preocupa pelo extremismo de suas mensagens.
A mistura de política e religião não costuma ser democrática. A começar porque a democracia tem que estar acima dos credos, e não deve traduzir diferenças de credo, de gênero ou de raça – ou outra qualquer da esfera privada – em diferenças de direitos políticos. Além do que a religião se funda em crenças, em dogmas e em fé – fatores subjetivos que são incapazes de dar fundamento a relações políticas democráticas.
Estados fundamentalistas religiosos – como os islâmicos e Israel – discriminam os que não são adeptos dos credos dominantes. Em um Estado de credo xiita, os sunitas são discriminados, assim como todas as outras tendências religiosas ou não religiosas. Da mesma forma, em Israel, os não judeus – como os 20% árabes de sua população – são cidadãos de segunda classe.
Os EUA atual são uma demonstração assustadora da forma como esse novo surto religioso na política se propaga. O último best-seller do ramo se chama “Gloriosa aparição” – de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins –, uma ficção em que o anti-Cristo se encarna no secretário-geral da ONU, cria um governo único mundial, com uma única religião, e estabelece sua capital na bíblica Babilônia, isto é, Bagdá. Seriam os sinais de que o apocalipse está próximo e o verdadeiro Cristo voltaria à Terra, como um guerreiro furioso que desencadeia a sua violência sagrada matando e trucidando os ateus, os não crentes e perseguindo os seguidores das outras religiões.
A nova obra da direita fundamentalista cristã foi premiada com uma promoção da maior cadeia de lojas do mundo – a Wal-Mart –, que distribuiu grátis milhões de exemplares do primeiro capítulo, permitindo que houvesse mais de dois milhões de reservas do livro somente na primeira semana de vendas, mais do que venderam as memórias de Hillary Clinton em seis meses.
O livro supera as vendas de Harry Potter, com um gênero novo, que cresce aceleradamente nos últimos nove anos: a ficção científica cristã de horror, inspirada nas profecias bíblicas. Os primeiros onze livros da série dedicada ao gênero – “Abandonados” e o nome da coleção – venderam mais de 40 milhões de exemplares. O décimo segundo é justamente “Gloriosa aparição”, lançado agora.
A importância desse fenômeno supera o do filme de Mel Gilbson, por suas dimensões de massa, por sua duração e pelo extremismo de suas mensagens. Ressurgem nelas antigas superstições da passagem do milênio, uma leitura apocalíptica dos atentados de setembro de 2001, mas também uma sintoma de que a “guerra de civilizações” não nasce na periferia do Império, porque a guerra de religiões é levada a cabo no coração da sociedade norte-americana.
Seu conteúdo intolerante e racista, e a violência dos seus enredos condenam tanto judeus quanto ateus ao extermínio por parte de um Deus implacável, envolto em sangue no dia do juízo final. O primeiro livro da coleção é aberto com a uma descrição dramática da Rapto, momento em que os “cristãos renascidos” serão transportados para o paraíso. Com uma alusão ao aborto, até mesmo um embrião é tirado do ventre materno para subir ao céu. Nesse mundo maniqueísta só há espaço para deus e para o diabo – de forma bastante similar e paralela aos discursos de Bush –, em que os adversários dos EUA se tornam inimigos de Deus. Tudo faz parte do projeto de “reenvangelização dos EUA”. Enquanto na Europa a prática religiosa declina, 80% dos norte-americanos afirma acreditar em Deus e 39% se definem como “cristão reconvertidos”.
Desse esforço faz parte a nova campanha de Bush para sua candidatura a uma nova presidência dos EUA, em que se diz que os favoráveis ao aborto favorecem o crescimento das outras raças dentro do país – negros, chicanos, estrangeiros em geral –, enfraquecendo o componente essencial da nação norte-americana, conforme o último libelo racista de Samuel Huntington.
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