Autor: Julio Fontana
O primeiro a escrever e pesquisar sobre o "Jesus Histórico"[1] foi Lucas[2]. Ele, como podemos notar na abertura do seu Evangelho, informa estar fazendo uma pesquisa para um certo homem chamado Teófilo. Vejamos:
"Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o início foram testemunhas oculares e servos da palavra. Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas certeza das coisas que te foram ensinadas (Lc 1.1-4)".
Desse texto de Lucas podemos extrair a verdadeira essência da busca pelo Jesus histórico, que é ter plena certeza daquilo que escutamos e aprendemos. Outra informação que percebemos no texto bíblico é que o Jesus Histórico se descobre após muita pesquisa e investigação. Sigamos o método de Lucas!
REIMARUS
Preliminarmente, iniciarei descrevendo como se deu essa busca atrás do Jesus Histórico e como ela influenciou a cristologia de um modo geral.
Um mestre erudito alemão cujo nome é H. S. Reimarus (1694-1768) é considerado o fundador da "descoberta do Jesus histórico". Como vimos, anteriormente, Lucas foi o primeiro e o que melhor compreendeu essa idéia de descrever o Jesus no tempo, como homem inserido na humanidade. Em vista disso, Reimarus foi um fundador de um complexo de heresias denominadas como sendo "a busca do Jesus Histórico".
Reimarus queria descobrir o que Jesus foi, inteiramente, por meios racionais, isto é, pela pesquisa histórico, liberto de todas as considerações dogmáticas ou controle eclesiástico. Outros notáveis que formaram o "Old Quest" (Antiga Expedição) foram David Friedrich Strauss, autor de "A vida de Jesus criticamente examinada" e Ernest Renan.
RENAN
No dia 22 fevereiro de 1862, no anfiteatro do Colégio de França, ERNEST RENAN em sua lição inaugural, qualifica Jesus como "Um homem incomparável". À época supôs-se que Renan estava negando a divindade de Jesus. Dois anos após esta declaração o professor foi afastado da cadeira de Hebraico que sob influência de uma amiga de infância, Napoleão III lhe tinha oferecido.
Renan publicou sua obra "Vida de Jesus". Foi um sucesso. Vejamos uma das surpreendentes declarações de Renan:
"Tinha de nomear Jesus. Devê-lo fazer usando fórmulas teológicas que pressupunham a divindade? Não o penso. Não abordei o meu tema como teólogo, mas enquanto historiador. Tal como físico e o químico, também para o historiador não há milagres. Há fatos, causas e leis".
Renan apenas esqueceu que se tratando do povo de Israel a história se confunde com as questões religiosas. Assim, não se tem como chegar a lugar algum sem análise dos textos bíblicos, dos livros apócrifos e da história das religiões. Estudar o povo judeu é mergulhar no estudo da teologia.
ALBERT SCHWEITZER
O ápice da Antiga Expedição se concretizou em Albert Schweitzer famoso pela "Exploração do historial de Jesus". As propostas de Schweitzer sobre Jesus deixaram de comandar as concordâncias, contudo a sua última contribuição foi a sua crítica acerca dos seus antecessores. Ele mostrou, em conclusão, que o "Jesus" deles era largamente uma fantasia feita à própria imagem deles.
Esse período no qual Albert Schweitzer foi o seu maior expoente, os estudiosos na tentativa – sujeita às severas pressuposições anti-sobrenaturalistas da alta crítica[3] – de destilar fatos que os estudiosos liberais pudessem aceitar, para então compilar um quadro de Jesus que fosse relevante e compreensível às pessoas modernas, acabou por forçar uma cunha entre o Jesus histórico – que supostamente poderia ser conhecido somente através da crítica racionalista e histórica dos evangelhos – e o Cristo da fé. Este último – defendido por Bultmann e seus seguidores – era considerado muito maior que o histórico, porque a fé que os escritores dos evangelhos depositavam nEle os levou a apresentá-lo com base no que era pregado -o querigma – mais do que em fatos históricos conforme os liberais os definiam.
RUDOLF BULTMANN
O próximo período na "Expedição" é por vezes chamada "Sem Expedição", majoritariamente devido à influência de Rudolf Bultmann (este autor vai ser inúmeras vezes consultado nesse estudo).
Essa teoria, com ampla aceitação entre os estudiosos liberais, montou o palco para a abordagem da crítica da forma, liderada por Martin Dibelius e Rudolf Bultmann. Estes acreditavam que, pesquisando até para além das "formas" que a Igreja usava para descrever Jesus no querigma[4], poderiam pelo menos tentar descobrir o Jesus histórico. Afirmavam não serem confiáveis os evangelhos sinóticos, como apresentação do Jesus histórico, por estarem estes obscurecidos pelo querigma[5]. Concorda com esse pensamento Kähler onde afirma que o único Jesus que possui realidade é o Cristo descrito na Bíblia, cujo caráter é tal que não pode ser reconstruído pelos métodos da historiografia científica. Os evangelhos não são documentos históricos no sentido científico do termo, mas testemunhos com relação a Cristo. Eles compõem o Querigma, não "história"; e é impossível ir além do Querigma.
Para eles o "querigma" que era a proclamação da primeira cristandade, está na raiz da fé. Essa era a tese fundamental de Bultmann. A fé não necessita de muletas históricas, de comprovantes oriundos de historiografia, arqueologia ou de reconstrução "artificial". Ela possui a sua própria verdade. E esta consiste na autocompreensão da pessoa humana, mediada pelo evangelho. Crer não significa "acreditar em fatos". É antes uma nova maneira de enxergar a própria existência, de compreender-se de interpretar sua vida. O afã de libertar a teologia das amarras históricas conduz em Bultmann a um desinteresse quase total com relação à história subjacente ao evangelho. Ele desaprova a caça ao "Jesus Histórico". Identifica o "Jesus Histórico" com o "Cristo segundo a carne", ao qual o apóstolo Paulo se reporta em 2 CO 5.16 e do qual diz que já não o conhecemos desse modo. A fé cristã, para Bultmann, toma seu ponto de partida no querigma, na proclamação pós-pascal. Isto lhe permite o extremo criticismo que em boa medida responde pela acirrada polêmica que desencadeou. Bultmann parece ter até mesmo prazer em desmantelar os alicerces históricos da fé. Isto não porque fosse impossível saber algo a respeito, mas porque a fé não deve recorrer a provas para suas certezas[6].
Deixo evidente que a intenção desta obra não é trazer aos queridos leitores "provas" acerca de Jesus, e sim, saciar a sua curiosidade a respeito desse homem que viveu na Palestina "sob Pôncio Pilatos", período da história, onde o Império Romano dominava a maior parte do mundo até então conhecido. Destarte, essa obra não vai lhe conceder provas racionais que fortaleçam a sua fé, pois não é este o escopo desse trabalho. A fé, como Bultmann pensa, por sinal corretamente, não pode ser alvo de confirmações racionais, ela está intrínseca ao verdadeiro cristão!
O pensamento de Bultmann vai ser muito utilizado no transcorrer dessa obra, pois se acha muito da sua filosofia de conciliação entre a fé e a ciência neste trabalho. Acreditava, Bultmann, que, trabalhando no século XX, com ferramentas racionalistas e históricas, conseguiria separar o Jesus histórico do Cristo proclamado pela Igreja. Diz Bultmann, que a linguagem predominante na Bíblia é de natureza mítica, conflitante com a "cosmovisão" científica e tecnológica da modernidade.
As deficiências da abordagem de Bultmann começaram a ser apontadas por alguns de seus próprios alunos, Ernst Käsemann e Gunther Bornkamm[7].
ERNST KÄSEMANN E OS ESTUDIOSOS ATUAIS
Ernst Käsemann[8] (nos anos 50) foi usualmente considerado o iniciador da "nova busca do Jesus histórico", proposta por um grupo de estudiosos referidos como pós-bultmanianos. Argumentava que os escritores do Novo testamento atribuíam a mensagem que pregava ao Jesus histórico, e que assim o investiam "sem a mínima dúvida, com autoridade preeminente". Outro representante dessa escola de pensamento, Gunther Bornkamm, escreveu que Jesus não tinha consciência messiânica e que os títulos cristológicos lhe foram aplicados pelos cristãos depois da ressurreição. Gerhard Ebeling declarou que Jesus era conhecido como o Filho de Deus já antes da ressurreição. Ernst Fuchs levantou a questão da legitimidade teológica dessa busca, sustentando que a solução do problema está em ver Jesus como o exemplo de fé em Deus. Quando os cristãos seguem os seus exemplos, o Cristo da fé é o Jesus histórico. Vários estudiosos têm confiado mais no relacionamento entre o Jesus da História e o Cristo da fé. Nils Dahl argumenta de que a investigação histórica de JESUS tem legitimidade teológica e pode resultar em entendê-lo melhor, principalmente diante das tendências da Igreja de criá-lo à sua própria imagem. Charles H. Dodd argumenta que os títulos cristológicos realmente provêm do ministério terrestre de Jesus, e que este, quando foi submetido ao tribunal romano, considerava-se o Messias. Finalmente, Joachim Jeremias defende que é necessário basear o Cristianismo nos ensinos de Jesus conforme relatados nos evangelhos, que ele acredita fidedignos. O mesmo teólogo demonstra ainda que um dos perigos da abordagem da crítica da forma é basear o Cristianismo numa forma abstrata de Cristo, e não na realidade histórica que a teoria promete [9].
Dentre esse que citamos nas linhas acima existem outros pensadores importantes, tanto negativa como positivamente, entretanto, não podemos nos alongar no estudo de cada um deles, pois são muitos os que estudaram e escreveram a respeito de Jesus Histórico. Cito alguns nomes com o fim de que o leitor tenha conhecimento dos que já discutiram essa questão controversa: MARCUS BORG, JOHN DOMINC CROSSAN, BURTON MACK, OS MEMBROS DO SEMINÁRIO DE JESUS, MARTIN HENGEL, JOHN MEIER, E. P. SANDERS e N. T. WRIGHT.
REAVIVAMENTO DO JESUS HISTÓRICO
Devido à estréia do filme "A paixão de Cristo" de Mel Gibson e devido ao desenvolvimento inevitável do ainda recente estudo histórico e crítico do cristianismo primitivo e da figura histórica de Jesus propriamente dita, o número de publicações referentes à existência e a factualidade de Jesus aumentam vertiginosamente.
O aparecimento do "Jesus Histórico", já foi uma mudança de paradigma tanto no campo teológico quanto na própria postura histórica extremamente conservadora a respeito do tema. Dentre essas obras inaugurais e, portanto essenciais, do estudo histórico de Jesus, podemos citar as de Gerd Lüdemann e John Dominic Crossan, ainda conservadoras a respeito da existência de Jesus, mas apontando uma análise crítica e metodologicamente embasada de crítica a veracidade e autoria dos evangelhos, levantando pela primeira vez, com toda a sua força, a questão do silêncio dos autores contemporâneos aos fatos do evangelho.
Após esse estágio inicial, tivemos uma verdadeira explosão nesse ramo de estudo histórico, graças a soma de alguns fatores indispensáveis, como o esforço do governo de Israel de incentivar o estudo arqueológico e histórico de seu passado e a abertura doutrinária do Vaticano após o Concílio do Vaticano II, disponibilizando, inclusive, acesso a documentações até então conservadas distantes dos estudos seculares.
Com essa abertura dogmática, foi possível um estudo mais amplo e inquisitivo sobre o Cristo histórico. Um dos primeiros autores a enfocar a impossibilidade da existência de Cristo foi Earl Doherty, ao final da década de 90, dando um novo rumo a pesquisa histórica de Jesus (até então ainda essencialmente teológica).
Nesse ramo de pesquisa histórica, teve fundamental importância, a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto[10]. Documentações, estudo, teses e discussões sobre essa descoberta são atualmente abundantes.
Os maiores centros de produção sobre o tópico são exatamente os semanários específicos e as universidades que disponibilizam uma cadeira com esse tópico em especial, como a Universidade de Londres. É comum, também, a publicação constante de livros sobre o tema, em sua maioria apologistas, trabalhos de teólogos ou sacerdotes que tentam refutar as novas evidências. Difícil é ignorar a discussão atual sobre a improvável veracidade histórica do cristianismo.
Esse estudo não é apologético e sim, a realidade dos fatos. Os autores citados acima, assim como Pilatos, Caifás e Anás, contribuíram negativamente para o Cristianismo, pois através dos seus atos favoreceram ao plano de Deus. Podemos constatar que os autores retro-citados erram na interpretação dos dados que obtêm. Muitos escrevem acerca de Jesus, entretanto, aqueles que não possuem o Espírito Santo não conseguem chegar a profundidade do assunto.
Como afirma o Dr. Stanley Horton[11] "A sabedoria humana não pode ajudar-nos a conhecer a Deus". Perdoe-me os que gostam desses céticos, eles deviam escrever sobre arqueologia e história de outros povos e não dos judeus, que desde que obtiveram consciência de nação sabiam com qual fim Deus firmou aliança com eles: serem um reino de sacerdotes. A história de Israel e do Cristianismo não são matérias como outra qualquer, elas prezam por uma dedicação superior. Em vista do exposto, afirmo que muitos dados desses autores serão utilizados, no entanto, o contexto no qual estão inseridos são absurdos e insanos.
Esta obra vem para apresentar de maneira fácil e descomplicada a história de Jesus. Os novos cristãos e leigos terão a oportunidade de conhecer algo que só é discutido nas cadeiras acadêmicas e congressos teológicos. Marginalizados pelos religiosos e teólogos, os leigos e os novos cristãos, estando interessados, poderão estudar mais profundamente acerca do Jesus Histórico do que o ensinado em reuniões bíblicas, escolas dominicais, etc.
Apresentei no decurso dessa obra opiniões de diversos teólogos e historiadores, sempre realizando citações dos seus trabalhos e emitindo a minha opinião em seguida, de forma que não suscitasse dúvidas quanto à originalidade e autoria do texto mencionado.
——
[1] Segundo Leonhard Goppelt O Jesus histórico é a imagem de Jesus que se quer conseguir através da pesquisa meramente histórica, a imagem de Jesus do historiador moderno. Nosso conceito de Jesus histórico, aquele que será aplicado no decorrer deste estudo, é diferente do supracitado. É aquele resultante de intensa pesquisa em torno da verdade que está relacionada à pessoa de Jesus, como nos escalrece o evangelho de Lucas no seu prólogo.
[2] Cullmann considera João como o inaugurador da busca pelo "Jesus Histórico". Cullmann afirma isto em razão de João, além de ter enfatizado a humanidade de Jesus, se ateve rigorosamente a cronologia do Ministério do Cristo. Diante desse fato é inegável a contribuição de João ao estudo histórico de Jesus, contudo, notamos no texto joanino muito material querigmático, onde há influências apologéticas contra os gnósticos. Destarte, o evangelho mais imparcial e completo para um efetivo estudo histórico de Jesus seria o de Lucas. Goppelt concorda com a nossa posição. Veja: Teologia do Novo Testamento, Leonhard Goppelt, Editora Teológica, 3ª edição, 2003, p. 54.
[3] Alta Crítica. Método literário de interpretação das Sagradas Escrituras, que tem por objetivo determinar a autoria, data e circunstâncias em que foram compostos os santos livros. Este método verifica também as fontes literárias e a confiabilidade histórica da Bíblia. Embora à primeira vista possa assustar, o método da Alta Crítica é o utilizado nos livros de síntese bíblica (Dicionário Teológico, Claudionor Corrêa de Andrade, CPAD, 2002, p. 36).
[4] "Querigma" é a forma portuguesa do grego Kêrugma ("proclamação", "pregação"). Aqui, o termo tem o significado mais técnico da pregação da Igreja Primitiva durante os trinta ou quarenta anos imediatamente após a ressurreição de Jesus.
[5] David R. Nichols "O Senhor Jesus Cristo" in: Teologia Sistemática, Stanley M. Horton, CPAD, p.302,303. Leitura recomendada do texto original.
[6] Dr. Gottfried Brakemeier, professor de Teologia Sistemática da Escola Superior de Teologia São Leopoldo, em Apresentação ao Livro Teologia do Novo Testamento de Rudolf Bultmann, Editora Teológica, 2004, p.16,17.
[7] Günther Bornkamm nasceu em 1905, na cidade de Görlitz, lecionou disciplinas relacionadas com o Novo Testamento de 1934 até 1937 nas Universidades de Königsberg e Heidelberg, Alemanha. Sob o regime nacional-socialista, foi lhe retirada em 1937 a permissão para lecionar. Após a guerra, atuou como professor do Novo Testamento na Universidade de Göttingen e por fim na Universidade de Heidelberg. Faleceu em 1990 aos 85 anos de idade.
[8] Käsemann nasceu em 1906, estudou teologia em Bonn, Marburg e Tübingen; em 1931 concluiu o seu doutorado. Foi professor de exegese do Novo Testamento em Mainz (1946-1951), em Göttingen (1951-1959) e em Tübingen (1959-1971). Faleceu em 1998 em Tübingen aos 91 anos de idade.
[9] David R. Nichols "O Senhor Jesus Cristo" in: Teologia Sistemática, Stanley M. Horton, CPAD, p.302,303.
[10] Discordo na importância exagerada que os estudiosos dão a estes textos. Eles são importantes para o conhecimento do pensamento da época da comunidade de Qumrã. Esta, certamente, influenciou o cristianismo primitivo, contudo, não foi determinante na sua doutrina.
[11] I e II Coríntios, Stanley M. Horton, CPAD, 2003, p.30.
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