No espírito dos quatro ventos

Autor: Milton Schwantes
Comecemos por uma tradução do texto bíblico que em meditação estarei estudando. No caso, a tradução é literal, imita o hebraico. Uma tal tradução – imagino – nos poderá ajudar a manter-nos nas proximidades do original. Ela, contudo, não é muito fiel à nossa língua portuguesa.

1Aconteceu sobre mim a mão de Javé. Fez-me sair pelo espírito de Javé. Fez-me descansar em meio ao vale. E este estava cheio de ossos. 2Fez-me andar sobre eles ao redor, ao redor.

E eis que eram muitíssimo numerosos sobre a planície do vale.

E eis estavam muitíssimo secos.

E disse para mim: “Filho de Adam, poderão reviver estes ossos?”

Disse: “Meu Senhor Javé, tu sabes!”

4Disse para mim: “Profetiza sobre estes ossos! Dirás a eles: ‘Ossos secos, ouvi a palavra de Javé:

5Assim disse o Senhor Javé a estes ossos: Eis que eu estou fazendo chegar em vós espírito e vivereis.

6Porei sobre vós tendões, farei subir sobre vós carne, estenderei sobre vós pele, porei em vós espírito, e vivereis e sabereis que eu sou Javé’.”

7Profetizei como me fora ordenado. Houve um som enquanto profetizava. E, eis, um ruído e se aproximaram os ossos, osso para seu osso. 8Vi e eis: sobre eles tendões, carne subiu, estendeu-se sobre eles pele por cima. Mas espírito não havia neles.

9E disse para mim: “Profetiza para o espírito, profetiza filho de Adam e dize para o espírito: Assim disse o Senhor Javé: ‘Dos quatro ventos vem o espírito e sopra nestes assassinados e viverão’.”

10Profetizei como me fora ordenado. Entrou neles o espírito. Viveram. Ergueram-se sobre seus pés, grande força, muito e muito.

11E disse para mim: “Filho de Adam, estes ossos, eles são toda a casa de Israel. Eis que estão dizendo: ‘Secaram nossos ossos e sucumbiu nossa esperança, estamos exterminados para nós. 12Por isso, profetiza e dize para eles: Assim disse o Senhor Javé: Eis que eu estou abrindo vossas sepulturas, far-vos-ei subir de vossas sepulturas, meu povo, e far-vos-ei chegar à terra de Israel. 13Sabereis que eu sou Javé ao abrir vossas sepulturas e ao fazer-vos subir de vossas sepulturas, meu povo. 14Porei meu espírito em vós e vivereis e vos estabelecerei sobre vossa terra. Sabereis que eu sou Javé. Falei e fiz, oráculo de Javé.”[2]

1 – Sem vales, que seria dos ossos?

Bem que aqueles ossos todos estavam num vale. Isso é coisa da genialidade de Ezequiel: ao ver os ossos no vale – justamente em seu “meio”, em seu “centro”, como se lê no hebraico – a profecia lhes atribui uma chance.[3]

É nos vales que se anseia por ventos que despertam. Ventos que trazem vida são ventos de planuras. Neles há ternura, sopro gostoso, há suave espírito. São qual tranqüilos cicios da madrugada, como Elias os experimentou (1 Reis 19,12). São ventos de planuras que re-fundam os horizontes, como o experimentou Lucas, em cujo evangelho Jesus não fala das bem-aventuranças nas alturas da montanha de Mateus, mas no vale, ao qual desceu (6,17), vindo do monte (6,12).

Nos desertos, ventos são ruínas, desorientam, secam, fecham poços, soterram oásis. São sepulturas. Não é acaso que o bode expiatório seja enxotado deserto adentro, morte adentro (veja Levítico 16). O vento do deserto, o siroco, é mensageiro de morte. Este vento oriental deu desmaio a Jonas; levou-o a clamar pela morte: “melhor me é morrer que viver” (4,8). Ventos desérticos resultam em seca, esturricam a alma.

Israel e Judá sofreram nos desertos quando das deportações. Os assírios arrastaram milhares de israelitas pelos desertos, rumo ao desterro. Outros tantos judaítas foram forçados a caminhar por caminhos de morte quando vítimas de exílio. Muitos terão morrido de sede e de horror. Desertos sepultam esperanças, vidas. Acobertam violência e crime (veja Salmo 121).

Ao contrário vales, dão vida. Fazem crer. São qual sedes de religião. É verdade, também desertos podem sê-lo. Podem ser focos de utopias, como o vemos nos quadros pintados pelo Cântico dos Cânticos: a sulamita vem do deserto (8,5), este verdadeiro reservatório das esperanças (3,6-11); pois em meio às casas, às cidades a paixão não tem chão. Em meio às casas a amada é violentada (5,3-8). Neste sentido, desertos são trilhas do novo.

Mas, não é o que Ezequiel experimentara. Ele e sua gente foram deportados pelos desertos, arrastados e “macerados”[4]. Nesta deportação pelos desertos que separam Israel das terras mesopotâmicas muitos morreram. Chegar, enfim, à terra babilônica não deixou de ser um pequeno alívio. Aquele era local de seus suplícios e de sua escravidão. Era local de morte, mas era também um vale de águas abundantes, de ventos que sopravam para a vida.

Nossa fé, nesta perspectiva, é a dos vales. Penso na terra de Gósen, no Egito (Gênesis 46,34). Lá os hebreus resistiram diante dos senhores faraônicos. Lembro da terra de Israel, a que mana leite e mel, foco de esperanças e de anseios da gente bíblica. Trago à memória a planície de Jezreel, por onde Débora, a mãe de Israel, fez forte seu povo contra os reis cananeus (Juízes 5).

Em meio a tais vales, estão os altos consagrados. Nos montes que sobressaem, a fé alça suas asas ao horizonte. Fontes e poços que por aí se encontram dão profundidade à religião: ela se alicerça na fundura de suas águas. Penso em Jerusalém e nas águas de Siloé. Estas irrigam a terra inteira, nas palavras de Ezequiel (cap.47). Para Isaías “correm brandamente” (8,6). Lembro os altos de Belém e de Nazaré, e não esqueço dos espaços sagrados de Meca e Medina.

Sim, por toda parte, os vales e seus altos são focos de fé, fontes de religião.

Em tais vales, ossos têm como renascer.

Pois, afinal, há os que não renascem; vão-se sem memória. Ficam por aí perdidos, como ossos de escravos e escravas, para cá deportados, como ossos de índias e índios. Ficam sem vales que os abriguem ainda que tenham vivido em vales verdejantes como os brasileiros. Nossa história é mesmo de ossos sem vales que acolham, ainda que vivamos num só e maravilhoso vale, em que, nas palavras de Pêro Vaz de Caminha, “a terra em si é de muito bons ares”[5]. Mas aqui osso como que não fica de pé! Vai-se ao ralo, ao rolo do esquecimento fatal.

Sem vales essas vidas se secam, sem esperança, estando de todo exterminadas (v.11!).

Que bom que haja vales! Neles se renasce. Volta-se. Dá-se volta para recomeçar.[6]

Que vivam os vales, como esse de Ezequiel, e outros tantos! Isso é bom e vale, porque em vale não há controle. Vento vai e vem. Por toda parte se nasce, se cresce. Vales do Espírito não são, ah não são mesmo, uniformes. Não alinham, criam e recriam. É neles que ossos saem de entre lixões e lixinhos.

Vales são mesmo plurais, afinal naqueles vales da Babilônia sopravam muitos ventos[7], espíritos, ruhot, um termo que é o plural de ruah. Os ventos (ruhot) são “espírito” (ruah), aliás são “espíritos”! Cada dobra de caminho tinha lá sua fé, seu vento. Aquelas terras eram de deuses abundantes, plurais. Vales têm formas plurais de religião, de fé. Afinal, os ventos que aí atuam vem dos “quatro ventos”, de todos cantos da terra, como o diz nosso profeta (v.9)! Vem falando a seu jeito de Deus, testemunhando do Espírito de variadas maneiras.

Não há de ser acaso que, na história da interpretação deste trecho ezequeliano, alguns o entendem sob a influência da magia[8], outros do zoroastrismo[9]. É que, em vales, culturas se encontram, interagem, ramificam em novas direções.

2 – Sem Espírito – que seria de nós?

Nosso capítulo tange variados aspectos da palavra “espírito”, ruah. Já o víamos acima: pois, enfim, isso de a ruah vir dos quatro ventos lhe dá “muito bons ares”. Torna-a tão especial. Essa ruah foi mesmo sábia. Foi forte. Desdobrou-se em quatro.

Nesse seu empenho todo de fazer ossos virar gente, esta ruah – que se articulam pelos vales como as ruhot “espíritos” – esvoaçou, de jeitos variados, entre aqueles ossos:

Chega-se a aludir a ela como “espírito”, como que desconhecido, sem artigo definido (v.5-6), talvez até se pudesse dizer como um/algum. Ele não tem ‘ainda’ definição, assim parece. É como se ‘ainda não’ fosse conhecido. Ele “chega” (ou “entra”) – o hebraico comporta os dois sentidos para o verbo bv’ – e logo em seguida é “dado”. Ainda que seja ‘um’/algum é divina dádiva. Afinal, desde o começo está claro que aquele um/algum “espírito” é o de Javé (v.1!). Portanto, em sua ação concreta aquela ruah, que é de Javé (v.1), permite leituras diversas, atua como ruhot, como “espíritos”.

É assim que profecia se dá; acontece pela ruah de Javé. Foi ela, pois, que, no v.1, pôs o profeta em movimento. Está assim, à base do mesmo v.1, na origem dessa profética visão que surgiu “em a ruah de Javé”.

Este “em” 9 (be no hebraico) chama a atenção. Lá, no v.1, ele pode ser entendido como um “por meio de”/“pelo”: o profeta foi feito sair ao vale “pela” ruah divina. Diferente é o sentido deste “em” nos v.5-6; aí a ruah chega e é dada “em vós”. Aqui este “em” parece-me ter um duplo sentido: tanto tem o sentido de “em”/dentro, quanto de “em”/em torno de. Pois a ruah, ao chegar “em vós” faz surgir “em”/dentro “tendões” e “carne”, e “em”/em torno de “pele”.[10] Ela constitui a ligadura dos ossos e seu entorno, para que possa vir a haver vida.

Pois, ainda que o seja o “espírito” que se expressa por meio destes tais de tendões, carnes e peles, é distinto desta sua aparência. Ele, “o espírito”, ou ela, a ruah, são basicamente vida: ossos que se ajuntam a ossos e que articulam tendões, e que dão origem a carnes e peles, ainda, curiosamente, não são vida. Falta-lhes ainda a profecia do espírito em plenitude (veja a respeito Gênesis 2).

Dir-se-ia que lhes falta algo por dentro, um algo ‘espiritual’!? Pois, não é que não é. A ruah faltante não é a que se localiza dentro, mas que põe em pé e locomove. É o que o v.10 nos ajuda a entender. Ele, novamente, menciona que “a ruah” (agora com artigo!) “chegou”/“entrou” nos ossos, tendões, carnes e peles, por esta lhes faltar (v.8). Como nos v.5-6, também neste v.10 “(o) espírito” ‘chega’ e ‘entra’. Mas, agora, a ruah tem outra aparência, consolida-se de outro jeito: há vida. É vida é estar em pé! Veja: “o espírito” não espiritualiza, mas dá estatura, firmeza. Se você rastejar por aí, humilhando-se, deixando-se submeter, você justamente não é ‘espiritual’, mas, digamos, ‘carnal’, ‘ossal’. Gente ‘espiritual’ é gente erguida, com “grande força, muito e muito” (v.10).

Ossos em pé – que visão!

3 – Ossos? Gente!

Ossos amontoados, quando mesclados aos ventos dos vales, quando remexidos pelo Espírito da profecia, se transformam, se reciclam.

O profeta se esmera em descrever a reciclagem destes tais ossos. Estavam aos montes pelos vales. ‘Enchiam-nos’ (v.2) até a borda! Eram “mui numerosos” (v.3).

Lembro-me do Salmo 32. Também nele as dores se concentram nos ossos. Quando o mal se apossa da gente, até os ossos doem. Quando “pecado” e “culpa” se embolotam dentro da gente, então não há como caminhar adiante. Os ossos se negam. Muitos exploradores testemunham disso: sua vida, em meio a suas injustas riquezas, era dores. Sua fachada embelezava o que se lhes decompunha por dentro.

Ora, aqueles ossos lá nos vales da Babilônia, antes de serem deportados, haviam sido os das elites de Jerusalém. Em 598 a.C., haviam sido arrastados uns dez mil da elite da capital para o desterro. Quem os via assim sofrer estrada afora, chicoteados e desnudados pela soldadesca babilônica, até poderia esquecer que aquela gente esfolada – ‘macerada’ – fora outrora o senhorio de Jerusalém. Do casario só sobrara dor, ossos. Não raro aos espoliadores se lhes doem os ossos!

E estavam também “secos” os ossos que Ezequiel via pelos vales (v.4), “mui secos” (v.2), sepulcrais (v.12-13), esturricados. Neles vida nenhuma se mexia.

Nessa secura de sepultura, a profecia, ventando pelos vale, faz aparecer o novo! Este é o dom próprio da profecia.[11] Afinal, precisa-se de profeta para dizer que na vida ossos, enfim, levam à vitória, que sepulturas são as que impõem. Gente, o mediano consumidor não carece de profeta. Ele se basta com tolos que o confirmam. Profetas não. Causam reboliço: “ruído”. Arrepiam: “barulho” (v.7). O Espírito tem gosto por “barulho”, para fazer osso bater em osso até que “cada osso ache a seu osso”.

E, de pronto (v.8), já estão aí os “tendões”! Tendões resultam de visões! O v.8 tem o cuidado de percebê-lo, ao iniciar com as palavras: “vi e eis tendões”!

Juntar ossos, isso até que nem é tão difícil. Nossas terras estão cheios deles: ossos de índios e índias colonizadas, de negras e negros escravizados. Sem memória, é isso que somos. Fizemos silenciar os ossos de nossa desviada história. Para vê-los, clamemos por profecias, senão nos vamos na ignorância dos horrores que para traz ficaram nos porões e senzalas. Sim, mais e mais precisamos de profetisas-palavras para apalpar tendões e conexões. Aí só mesmo com visão, com olho esperto, cintilante, relampejante. Olho vazio não vê tendão algum! Prefere uma lata a mais de algum importado global. Só olho esperto vê tendões em lixões de escombros. Profecia não é coisa pouca para boquiabertos! Seja esperto!

A quem, em visão, é dado vislumbrar tendões, em ato contínuo caem em vista que já há até carnes e peles a cobrir aqueles ossos encostados: “cada osso a seu osso”.

Mas, ainda assim tudo aquilo, aqueles ossos já não aos montes, mas ordenados osso por osso, aqueles tendões, aquelas carnes e peles, aquilo tudo não passa de um ossuário, coisa de sepulcro. É que sem a ruah a soprar pelos vales, nada feito.

Alguém, afoito, poderia, agora, respirar aliviado: enfim, o Espírito. Podemos, pois, falar, enfim do espiritual, sem estes tais ossos com suas estórias doloridas, seus corpos macerados, sem estes tais ossos a promover barulho, estas carnes a querer comida. Que bom, o espiritual! poderia alguém pouco afeito à Bíblia ficar a delirar.

Pois não é que o Espírito não se esvai em olhos ao alto, cantorios quaisquer, ossos etéreos. A ele lhe interessam também os pés. Imagina: os pés! Pés espirituais! Pode coisa assim? Pois, não é que pode!

O espiritual ‘tá nos pés!

É nisso que se vê sua vida, a ação do Espírito. Daqueles ossos muitos resultam pessoas muitas, colocadas em pé.

O profeta Habacuque, uns anos antes de nosso Ezequiel, propunha, conforme a tradução de Almeida, postura similar: o que importa é “andar altaneiramente” (3,19).[12]

O Espírito da vida deseja gente em pé. Nada de silêncio sepulcral ou de etéreos olhos ao alto.

Ossos em pé! Essa é, por exemplo, a maravilha do educar: serve para fortalecer os pés. O processo educativo sente graça nos pés.[13] “Caminhar é preciso”, diz o poeta. E outro nos encantava em meio ao regime militar: “caminhando e cantando e seguindo a canção”[14].

Que bom seria se nas igrejas todas, à moda ecumênica, o sonho fosse o de acompanhar a ação do Espírito em sua obra de que estejamos de pé, a pé. Maravilhar-se com ossos que o Espírito põe em pé. Deixar-se encantar pelas maravilhas que o Deus Triúno faz acontecer com as pessoas, com a gente. Andar com autonomia, por conta do Espírito dos vales – eis a questão!

Atenção andar, com pé firme! Não marchar “sem sentido…”! Espírito não é afeito a uniforme, a exército!

3 – Um exército!?

‘Mas, um momento’, poderia alguém se interpor: ‘o próprio profeta, no v.10, faz desembocar sua visão em um exército?!’

Ao menos é o que se lê nas traduções da Bíblia em uso por aí; nelas se repete, como se de uma litania se tratasse: no final o Espírito convoca o exército! Nas traduções do v.10 consta: “um exército sobremodo numeroso”[15], “um exército numeroso”[16], “um exército imenso”[17], “un ejército grande, muy grande”[18]. A respeito parece haver até uma ‘tranqüila’ unanimidade: o Espírito pôs em pé um exército! Afinal, esta também é até a opinião do comentário exegético clássico sobre Ezequiel: “ein sehr, sehr grosses Heer”.[19] Diante de tamanha ‘unanimidade’[20] quase se teria que silenciar. Aliás, a tradução latina (a Vulgata) também atesta “exercitus” para nosso versículo.[21] É como se o melhor fosse submeter-se a esta visível consensualidade e admitir o que, de acordo a estes senhores, está aí no v.10, isto é que o Espírito cria exército. Ah, meus amigos, isso seria um horror! Melhor fosse que os ossos ficassem aí pelos vales, sequíssimos sem vida nem movimento. Pois, se a ação do Espírito é em prol do exército, então sua função mais apropriada seria a de criar cemitérios. Pois exércitos são associados inveterados de sepulturas. Então: será mesmo que o Espírito, como se tolo fosse, promove exércitos? Constantino, o grande imperador, acabaria tendo razão: cristianismo só é bom quando passado pelas armas!? Cruz só salva quando feita espada?

Isso, a meu ver, já em si é coisa tola, mas talvez fosse o caso de ter que admiti-la como bíblica: o Espírito dos vales e dos quatro cantos da terra como promotor de exército!?

Mas não é assim! E nem pode ser. O Espírito não é dado a exércitos! Isso não seria profético. Ora, Isaías[22] já promovera, no 8º século, a transformação de “espadas em relhas” (2,4)! Nos mesmos tempos, Oséias ousara contestar a tese de que Javé seria guerreiro (cap.11)! Jeremias, no 6º século, pouco antes de Ezequiel, aconselhara não resistir com armas em punho à invasão babilônica (caps.37-45). E Dêutero-Isaías, nos tempos de Ezequiel, celebra o escravo sofredor como modelo e “luz das nações” (49,6). Pelo visto: o espírito é mesmo pela paz!

Aliás, nesta direção, a tradução grega (a Septuaginta[23]) de nosso v.10 nos dá uma interessante pista: ela traduz a palavra hebraica em questão por “sinagoga”! Louvado seja Deus por estes tradutores gregos! Para eles a obra do Espírito dos vales se dá na reunião de pessoas. A assembléia/“sinagoga” é o que o v.11 chama de “a casa de Israel”, e os v.12-13 designam de “meu povo”. Aí sim, o resultado alcançado, isto é a sinagoga/assembléia, a casa de Israel ou o meu povo é compatível com a gente em questão, o Espírito de Deus. Suas obras não são exércitos e armas, mas gente em pé, gente reunida, em assembléia, em sinagoga, em comunidade. Aí fica bom! Aí vida tem graça!

A tradução grega já atribui, pois, um interessante significado a nosso v.10. Ainda assim, o texto hebraico permite um sentido ainda mais preciso. E este tem a ver com o substantivo usado no v.10: hayil. É a este termo que os tradutores, a partir da Vulgata, deram o sentido de “exército”. E, de fato, hayil até pode ter este significado. Mas não é habitual, pois hayil é “capacidade”, “força”, “poder”[24], de onde até que pode derivar, ao meu ver ainda que raramente, o significado de “exército”. Em nosso versículo, fica inclusive excluído tratar-se de “exército”, já que nos v.11-14 este hayil é “a casa de Israel”, é “o meu povo”.

Aliás, até é possível que este substantivo hayil tenha relação com a raiz hyl “ter dores de parto”.

Portanto, o Espírito não originou um exército: mas com pessoas “paradas sobre seus pés” (v.10) formou “um grande poder, muito e muito”, como se poderá traduzir o hebraico à moda literal. Gente em pé é poder. Exército não é propriamente poder, mas antes medo! Pessoas com armas na mão escondem seu medo. Posam de fortes, mas lá em suas calças as pernas estão bambas: medo! Sobre o assunto veja o filme: “O resgate do soldado Rayan”.

Poder são pessoas com tendões, com pés firmes, juntas, reunidas no jeito de “a casa de Israel”, de “sinagoga”, de associação, e de tantas outras formas.

De todo modo, ao colocar-nos em pé, o Espírito aposta no comunitário. Ao fazer-nos ver tendões, o vento dos vales promove também a junção de pessoas.

Que vivam tais “tendões” com muito “poder”, para livrar-nos do “exército”. Os ossos do vale não precisam dele.

E é mesmo! Os ossos, vistos por Ezequiel no vale, eram subprodutos de exércitos. Os babilônios – senhores de seus tempos – tinham gosto em trucidar e deportar, “exterminar” na linguagem do v.11. Eram exímios torturados, como o haviam sido seus antecessores assírios[25] e como o foram e são seus sucessores até hoje. Produzir ossos é sua especialidade. E quem, com armas, se opõe a tais máquinas de fazer ossos, que são os exércitos, não faz outra coisa do que igualmente produzir ossos. Foi por isso que Isaías já dizia: quem não crê (isto é: aposta em exército), não permanece (veja Isaías 7,9b)! Vira osso!

Milton Schwantes

rua Deraldo Jordão 114, ap.22

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mschwantes@bol.com.br

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[1] Este começou a surgir em um contexto especifico. Escrevi-o, inicialmente, como meditação para o Momento Litúrgico da Comunidade Universitária da Universidade Metodista de São Paulo. Aí tinha como título “O Espírito entrou nos corpos e eles viveram de novo”. A celebração daquele dia foi encantadora. Animou-me a elaborar a presente meditação.

[2] Sobre este capítulo e o livro de Ezequiel consultei seguidamente o comentário amplo de Walther Zimmerli, Ezechiel, vol.1 e 2, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1969, 1272p. [tradução ao inglês: Ezekiel 1+2, Philadelphia, Fortress Press, 1983] Além deste extenso comentário exegético veja também: Juan Snoek, “Un mensaje de resurrección desde Babilonia – Análisis de Ezequiel 37,1-14”, em Xilotl, Manágua, 1991, v.4, p.21-29; Mariano Marchitiello, “Espírito de Deus – Fôlego do povo”, em Mosaicos da Bíblia, São Paulo, Centro Ecumênico de Informação e Documentação, 1991, n.2, p.7-11; Milton Schwantes, “Quinto domingo da quaremos – Ezequiel 37,1-4”, em Proclamar Libertação, vol.18, São Leopoldo, Editora Sinodal, 1992, p.103-108; Fausto Beretta e Luiz Pirotti, “Ezequiel – A reconstrução pelo Espírito”, em Estudos Bíblicos, vol.45, Petrópolis, Editora Vozes, 1995, p.20-30; José Luis Calvillo Esparza, “Palavra de Yavé – de Ezequiel a Chiapas”, em Revista de Interpretación Bíblica Latinoamericana, vol.26, Quito, RECU, 1997, p.111-122.

[3] Nos vales há água: Deuteronômio 8,7; há fontes (Isaías 41,18); há chance de vida (Gênesis 11,2). No Vale de Jezreel, Israel renascerá (Oséias 2,1-3).

[4] Veja a tese doutoral de Jose Luis Calvillo, Do corpo macerado ao corpo profético – Visões e gestos corporais como linguagem profética a partir de Ezequiel 3,22-5,4, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 1999, 252p.

[5]Pêro Vaz de Caminha, A carta de Pêro Vaz de Caminha – Primeiro relato oficial sobre a existência do Brasil, adaptada por Jaime Cortesão, São Paulo, Publifolha, 1999, p.19.

[6] Veja neste contexto também o ensaio de Ludovico Garmus, “Traços apocalípticos em Ezequiel 38-39”, em Estudos Bíblicos, v.65, Petrópolis, Editora Vozes, 2000, p.26-34.

[7] Há referências aos quatro ventos também fora de Israel. A respeito veja Walther Zimmerli, Ezechiel, vol.2, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1969, p.895[tradução ao inglês: Ezekiel 2, Philadelphia, Fortress Press, 1983].

[8] É um intérprete vê no v.9 Harald Martin Wahl, “‘Tod und Leben’ – Zur Wiederherstellung Israels nach Ezechiel 37,1-14”, em Vetus Testamentum, vol.49, Leuven, E.J.Brill, 1999, p.225.

[9] Veja Bernhard Lang, “Street Theater, Raising the Dead, and the Zoroastrian Connection in Ezekiel’s Prophecy”, em Ephemerides Theologicae Lovanienses, vol.74, Leuven, 1986, p.227-316.

[10] Em termos poéticos, as frases e repetições dos v.5-6 conformam um belo esquema. Dele se depreende que a chegada ou a dádiva do Espírito se conforma na constituição de tendões, carne e pele. Por isso, o Espírito “em vós” no concreto é o Espírito “em torno de vós”:

4Disse para mim:

Profetiza sobre estes ossos!

Dirás a eles:

Ossos secos, ouvi a palavra de Javé:

5Assim disse o Senhor Javé a estes ossos:

Eis que eu estou fazendo chegar em vós um espírito e vivereis.

6Porei sobre vós tendões,

farei subir sobre vós carne,

estenderei sobre vós pele,

porei em vós espírito, e vivereis e sabereis que eu sou Javé.

[11] Sobre “o novo” na profecia veja, em especial: Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, v.2, São Paulo, ASTE, p.167-178 [“O novo na profecia do 8o século”].

[12] A respeito deste v.19 do cap.3 de Habacuque confira agora o minucioso estudo de Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres – Tradução critica do profeta Habacuc, Aparecida, Editora Santuário, 1999, 343p.. Sobre Habacuque veja, agora, Luiz Alberto Teixeira Sayão, O problema do mal no livro de Habacuque, São Paulo, Universidade de São Paulo, dissertação de mestrado, 2000, 145p.

[13] Penso em Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 27a edição, 1999, 184p. (Coleção O mundo Hoje, 21) e recordo também o belo livro de Clodovis Boff, Teologia de pé-no-chão, Petrópolis, Editora Vozes, 1984, 4a edição, 227p.

[14] Geraldo Vandré.

[15] Essa é a tradução de João Ferreira de Almeida, A Bíblia Sagrada – Antigo e Novo Testamento, Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, p.853.

[16] Bíblia – Tradução Ecumênica/TEB, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p.856.

[17] Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, São Paulo, Edições Paulinas, 1990, 1128; A Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 1995, p.1660; Bíblia Sagrada, Petrópolis, Editora Vozes, 1982, p.1072.

[18] La Biblia Latinoamericana, Madrid, Ediciones Paulinas/Verbo Divino, 1989, p.581.

[19]Veja Walther Zimmerli, Ezechiel, v.2, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1969, p.885+896 (Biblischer Kommentar Altes Testament 13/2.

[20] Retomada também por Harald Martin Wahl, “‘Tod und Leben’ – Zur Wiederherstellung Israels nach Ezechiel 37,1-14”, em Vetus Testamentum, vol.49, Leiden, E.J.Brill, 1999, p.236.

[21] Biblia sacra – Vulgata. Stuttgart, Württembergische Bibelanstalt, 1975, 2ª edição, p.1320

[22] A respeito da paz em Isaías e em outros trechos do Antigo Testamento veja Hans Walter Wolff, Frieden ohne Ende – Eine Auslegung von Jesaja 7,1-7 und 9,1-6, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1962, 90p.

[23] Septuaginta (editada por Alfred Rahlfs), Stuttgart, Württembergische Bibelanstalt, 1965, 8ª edição, p.838. De acordo à Septuaginta de Goettingen não existem variantes importantes em relação ao nosso v.10. Veja Septuaginta – Vetus Testamentum Graecum (editada por Joseph Ziegler), Goettingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1977, 2a edição, p.268.

[24] Walter Baumgartner, Hebräisches und aramäisches Lexikon zum Alten Testament, Leiden, E.J.Brill, 1967, p.298-299 [tradução ao inglês: The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, Leuven, E.J. Brill, 1994, p.311-312], o mesmo significado encontramos em Wilhelm Gesenius, Hebräisches und aramäisches Handwörterbuch, Berlim, Springer Verlag, 17ª edição, 1962, p.228. Para Luis Alonso Schökel, o primeiro sentido de de hayil é militar; mas ele não cita Ezequiel 37,10, expressamente, entre os textos em que o termo teria o significado de “exército”.

[25] Veja a respeito das torturas assiro-babilônicas o artigo de Erika Bleibtreu, “Grisly Assyrian Record of Torture and Death”, em Biblical Archeology Review, Washington, Biblical Arqueological Society, 1991, p.53-61.

Fonte: www.metodista.br

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