A família no Novo Testamento

Autor: Manuel Cardoso
Para falar da família numa perspectiva do Novo Testamento penso que é importante começar por lembrar o episódio cm que a mãe e os irmãos de Jesus o procuram quando ele pregava à multidão. Disseram-lhe: “A tua mãe e os teus irmãos estão aí e querem falar-te.” E Jesus perguntou rectoricamente: “Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?” para afirmar: “Quem faz a vontade de meu Pai que está no Céu é meu irmão, minha irmã e minha mãe.” (Marcos 3:31-35 e paralelos).

Não deixa de ser significativo que este episódio apareça nos três evangelhos sinópticos, o que mostra a importância que a Igreja do primeiro século lhe atribui. Em Marcos e cm Mateus o episódio é seguido imediatamente por parábolas sobre o Reino de Deus. Ou seja, com o anúncio da aproximação do Reino de Deus até os laços familiares , tão importantes no Judaísmo, sao secundarizados.

Sem tirarmos já conclusões radicais, como seria deduzir-se que Jesus veio acabar com a família, podemos reconhecer, no entanto, que o episódio obriga a um olhar diferente sobre a família. Aliás, os evangelhos também reconhecem que Jesus veio criar divisão nas famílias, pondo o filho contra o pai, a filha contra a mãe, a nora contra a sogra (Mateus 10:35). Para aqueles de nós que foram educados sob a triologia “Deus, Pátria e Família”, triologia hipócrita mas que afirmava, cm nome da chamada civilização cristã, a mais alta honra para o núcleo familiar, o Evangelho espanta-nos com a forma como a família é colocada nestes discursos de Cristo. Os pescadores que vieram a tomar-se apóstolos são mesmo indirectamente elogiados por, ao convite de Jesus para o seguirem, terem abandonado tudo, incluindo as famílias (Marcos 1:18 e paralelos).

Mais livres para a luta
Esta “secundarização” da familiar como eu lhe chamei, pode compreender-se se pensarmos no que está implícito no anúncio do Reino de Deus. No fundo trata-se de pôr cm questão a ordem do mundo então vigente, trata-se de uma “conspiração contra o estado das coisas”.

Ajudar-nos-à a compreender a situação pensarmos o que acontece num país que vive sob uma ditadura política. Aqueles que querem pôr fim a essa ditadura correm o perigo de, se descobertos, serem presos, torturados e assassinados. Quem se decidir por se tomar conspirador contra a ditadura joga tudo por tudo, e sabe que a partir do momento cm que escolheu este combate já não pode sonhar com a vida tranquila cm familia, porque toda a sua acção e todos os seus sonhos têm de estar concentrados na implantação do novo regime, do regime por vir. O revolucionário não pode aspirar ao modelo tradicional da familia.

É a esta luz que se podem entender as palavras de Jesus sobre sua mãe, seus irmãos e suas irmãs, e é a esta luz também que se podem entender as palavras de Paulo sobre a sua preferência pelo celibato no capitulo 7 da Primeira Epístola aos Coríntios. Na perspectiva da vinda do Reino de Deus, que está em preparação, nada deve estorvar o combatente que é o cristão. É claro que esta situação, cm princípio, mantém-se. Nós continuamos à espera da realizaçãoo plena do Reino de Deus. Por isso, oramos dizendo: Venha o Teu Reino! Continuamos a ser “conspiradores do Reino de Deus” – pelo menos é esse o sentido da nossa militância cristã. Combater o bom combate (II Timóteo 4:7) é realizar na nossa vida tudo o que puder concorrer para que Deus governe o mundo, isto é, para que o Reino se torne uma realidade. Dizendo-o por outras palavras: combater o bom combate consiste cm viver na obediência da Palavra de Deus. Tudo o que temos, tudo o que somos e todas as instituições em que estamos envolvidos têm de estar subordinados a este alvo supremo do cristão. Incluindo a familia. É por isso que podemos falar numa “secundarização” dela em relação à importância que tinha no Judaismo, mas perceber igualmente que a família tem ainda uma missão importante a cumprir.

Defender as penúltimas coisas
Na escatologia da fé cristã, é verdade, não há referências à família parental, mas ela não é eliminada neste período cm que vivemos entre a Ascenção e a Parousia. Usando a perspectiva de Dietrich Bonhoeffer, poderia dizer-se que a familia não pertence às “últimas realidades”, mas pertence às penúltimas. No entanto, se queremos chegar a viver as “últimas realidades” temos de lutar pela preservação dos penúltimas. Para tornar mais claro: o livro de Apocalipse diz que na Jerusalém celeste não haverá igrejas. Quer dizer, que as Igrejas não pertencem às últimas realidades”, mas elas entretanto são necessárias para anunciarem a cidade celeste. O mesmo então poderemos dizer da família. No mundo vindouro os homens não se casarão nem se darão a casar (Marcos 12:25), não haverá famílias, mas por enquanto as famílias têm um papel a desempenhar. Bonhoeffer diz que desprezar as “penúltimas realidades” não é ter uma atitude piedosa, mas é manifestar irresponsabilidade. Por isso o Novo Testamento não deixa de prestar uma grande atenção à família. O facto de Jesus aparecer no Evangelho de João a realizar o primeiro milagre durante um casamento não é certamente por acaso, mas serve para mostrar o apoio do Mestre a esta instituiçao.

A condenação, por outro lado, que Jesus faz do divórcio …por qualquer motivo… (Mateus 19:1-12), pode ser lida como a sua tomada de posição em favor da mulher, mas mostra também a seriedade com que ele encara a instituição matrimonial. Com o texto de Gênesis 2:24-25, surge o comentário que afirma os esposos “unidos por Deus”, o que é, verdadeiramente, uma originalidade do pensamento evangélico.

Comportamento exemplar
Na Igreja do Novo Testamento vão surgir referências a várias famílias, designadas por “casas” (oikia ), como no conhecido episódio do carcereiro de Filipos, que foi baptizado com toda a sua familia (Atos 16:32). Destas famílias fazem parte também os escravos e mesmo servos assalariados. Na escolha de homens para servirem como “bispos” (condutores) do povo cristão, dos diáconos e das mulheres para cargos na comunidade deve ter-se cm consideração o modo como governam as suas famílias. Estas devem ter um comportamento exemplar (I Timóteo 3:1-13; I Timóteo 5:14; Tito 1:6).

Desenvolve-se mesmo, já nas páginas do Novo Testamento, uma ética para a família cristã. Espera-se que os cristãos casem com pessoa que esteja também “no Senhor”, isto é, que seja igualmente cristã. Isto pelo menos é indicado para as mulheres cristãs viúvas, não havendo a exigência de o homem cristão casar com uma mulher cristã porque neste tempo se subentende que a mulher, entrando na “casa” de seu marido, toma-se seguidora da fé do seu marido. Às cristãs solteiras é inútil indicar que deve casar com um cristão, pois não está, neste tempo, na sua mão escolher, sendo seu pai ou quem o substitua quem a casará. Os filhos dos crentes são “santos”. Aliás, é também de grande significado o facto de Jesus por várias vezes nos Evangelhos aparecer a valorizar as crianças. Estas que, no Judaísmo, eram consideradas impuras por não estarem ainda cm condições de cumprirem a Lei, para Jesus são apresentadas como modelo a seguir e as que têm o primeiro lugar no Reino dos Céus. Uma tal mudança do estatuto da crianga teria inevitavelmente de ter reflexos importantes na vida familiar. A prática do Baptismo infantil tem aí um dos seus alicerces. A Criança, pelo Baptismo, dá entrada no Povo de Deus.

A preocupação pastoral pelo modo como os cristãos hão-de orientar a sua vida familiar explica a existência das exortações da Carta aos Efésios, no capitulo 5, a partir do versículo 21. Que não trata, como sabemos, apenas do relacionamento entre os esposos, mas também dos pais com os filhos e dos filhos com os pais e do comportamento dentro da família dos servos ou dos escravos.

Sujeição mútua
É importante realçar que esta perícope de Efésios começa no versículo 21 que requer a sujeição recíproca do casal. Eu direi que o texto de Efésios pode servir facilmente hoje para a luta da emancipação da mulher, mas é errado ver aí a a raiz de toda a discriminação sexual praticada pelas lgrejas ao longo dos séculos. Pelo contrário, esse texto co-habita muito bem com Gálatas 3:28, onde se lê: Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há masculino nem feminino; porque todos vós sois um em Cristo. Se Efésios diz às mulheres cristãs essa palavra que a muitos choca …sujeitai-vos aos vossos maridos, como ao Senhor (mas já lembrei que no versículo anterior diz a ambos: Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Deus), logo a seguir diz aos homens: Vós, maridos, amai a vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e a si mesmo se entregou por ela. Toda a perícope estabelece as bases fundamentais para uma verdadeira igualdade entre marido e mulher, como até então ainda se não conhecera nem no Judaísmo nem nas religiões pagãs. O problema é que esses textos foram lidos na perspectiva tradicional de domínio masculino, e as Igrejas pouco ou nada contribuíram, também nesta área, para a renovação do pensamento. A sexualidade foi vista como expressão privilegiada do pecado, ponto de vista alheio à Bíblia, o celibato dos ministros considerado um estado de maior santidade, o que trouxe como consequência passar a ver-se na mulher a tentação a condenar e a reprimir, e a família tornou-se o lugar da repressão e do autoritarismo.

Família alargada
De qualquer forma é bom sublinhar que o núcleo familiar, na perspectiva cristã, não pode fazer esquecer uma outra realidade, porventura mais importante: é que o projecto de Deus inclui a ideia de fazer de toda a humanidade uma família. O Povo de Deus deve ser entendido como “casa de Deus” (Hebreus 10:21, I Pedro 4:17); Deus é o “Pai”, e os cristãos são os “filhos de Deus” (Romanos 8:16).

A paternidade de Deus e a consequente condição que os cristãos têm de filhos não é uma condição natural. Não é pelo nascimento que se é filho de Deus – não nascem da carne nem da vontade do homem – mas é o resultado de a semente da Palavra de Deus, pelo Espírito Santo, ter produzido o milagre da regeneração ou novo nascimento na fé. Jesus é filho naturalmente, desde sempre, nós somos filhos pela graça. É por isso que o Novo Testamento lhe chama o Unigénito do Pai (João 1:14, João 3:16, Hebreus 11:17) Mas os que crêem em Jesus Cristo são feitos filhos de Deus: A todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem no seu nome. (João 1:12).

A carta aos Filipenses, no famoso hino que S.Paulo transcreve, anuncia como alvo final de Deus, que o Pai deu ao Filho Unigénito … um nome que é sobre todo o nome, para que, ao nome de Jesus, se dobre todo o joelho dos que estão na terra e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus pai. (Filipenses 2:9-11).

Construir o Reino e juntar a família humana em torno de Jesus Cristo são duas expressões para a mesma realidade. O núcleo familiar deve estar também envolvido nessa tarefa de cooperar com Deus na criação da família de Deus.

Poderíamos dizer que o avanço do Reino de Deus se faz em círculos concêntricos, como acontece quando atiramos uma pedra para um lago. Deus em Cristo salva o indivíduo, faz dele cidadão do Seu Reino; o indivíduo transmits a sua fé ao seu núcleo familiar e o núcleo familiar junta-se à comunidade cristã local, e esta avança – até que toda a humanidade esteja envolvida pela mensagem do Reino.

Um dos sinais de fraqueza de uma congregação parece-nos ser o facto de ela ser composta mais de indivíduos do que de famílias. Faz supor, por um lado, que o Evangelho pregado tem sublinhado a questão da “salvação da alma”, do indivíduo, da responsabilidade e da felicidade pessoais, privilegiando a moral individual. Que são valores indispensáveis mas não completam a mensagem cristã. Por outro lado, essa situação da existência de poucas famílias numa congregação, pode ser a prova da ausência de uma pastoral da familia, como vimos que há na Igreja do Novo Testamento.

Comunidade e família
As áreas fundamentalistas do Protestantismo têm combatido muito o que chamam Cristianismo tradicionalista, e posto o acento na “decisão pessoal”. Obviamente, não se põe em dúvida a necessidade da decisão pessoal, mas é importante lembrar que há um contágio espiritual profundo que é feito no seio das famílias quando elas são ajudadas a participarem em conjunto da liturgia da Igreja, os adultos e as crianças que ainda não têm condições para compreenderem a Palavra de Deus. As famílias precisam de ser encorajadas a realizar actos devocionais em conjunto, nos lares, e é triste observar como são raras as publicações feitas com esse objectivo. Aliás, também é muito reduzida em algumas Igrejas a produção de material catequético preparado com vista a acompanhar a crianqa até à idade da adolescência com as suas crises. Muitos, desamparados, perdem-se para a fé nesse período de crises que podiam ser crises de crescimento.

Impõe-se sobretudo valorizar o espírito comunitário, levar as crianças e os jovens, como, naturalmente, os adultos, a perceberem que ser cristão é “aceitar Jesus Cristo”, que é também aceitar o seu projecto de fazer de todos uma família. O espírito clubista que existe em muitas congregações evangélicas, levando a interessar-se quase apenas pela sua congregação e a querer sobrevalorizá-la, deve ser combatido. No fundo um “congregacionalismo clubista” é a continuação do orgulho pessoal. “A minha congregação é a melhor!”. “Estar em Cristo”, no Novo Testamento, não é apenas crer em Cristo, mas é também estar integrado no seu Corpo, que é a Igreja, começando essa integração por ser feita numa comunidade local. O individualismo exacerbado do nosso tempo tem sido o principal causador da situação de crise em que se encontra a familia. A Igreja Cristã tem uma contribuição muito valiosa a dar na luta por revitalizar a instituição familiar, e essa contribuição é a leitura libertadora do Novo Testamento.

Pastor Manuel Cardoso
Seminário Evangélico de Teologia

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