Sobre pobres e demônios

Autor: Bráulia Ribeiro

Fomos visitar um bebê internado no Hospital de Base de Rondônia, um reduto de mortes por negligência e maus-tratos, retrato do desvalor da população pobre. O bebê é índio recém-saído da selva. Sem defesas imunológicas, ele sofria de uma infecção generalizada. Um caso rotineiro de hospital-por-poucos-dias-seguido-imediatamente-por-necrotério.
Ao entrar no hospital, sabia que estava ingressando em um antro de demônios. Entrei orando e clamando pelo reino de Deus e por sua misericórdia para cada criança que via.
No quarto do bebê, uma espécie de pseudo-isolamento bem no fim do corredor das enfermarias, oramos e ungimos os umbrais de entrada do quarto. Fomos tomados pela presença de Deus e pela certeza de que estávamos mesmo guerreando contra redutos espirituais das trevas. Uma sensação de morte tomou conta de nós. Mas, enquanto orávamos, a fé na vida que o Senhor gera logo a substituiu.
Saímos felizes, certos da vitória. De fato, em poucos dias, milagrosamente e contra a expectativa dos médicos, o bebê melhorou. Fiquei animada, planejando mais investidas de oração assim, conjecturando que, se tínhamos de invadir os redutos das trevas com oração, certamente ali era um dos principais lugares a ser focalizados. Imaginei que seria fácil conclamar um exército de “soldados de oração”, contando-lhes aquela experiência e falando das trevas e dos demônios que com certeza têm morada fixa ali.
De repente caí em mim. O Espírito de Deus me confrontou com a contradição daqueles pensamentos. Há anos e anos que convivemos com a morte explícita no Hospital de Base e escutamos muitos médicos falarem dos absurdos que acontecem ali, única instituição de assistência à saúde para uma parte enorme da população do Estado. Grupos de teatro da igreja já estiveram ali para distrair as crianças, que mal recebiam alimentos e nunca tinham os problemas de saúde diagnosticados nem eram medicadas com decência. Lembrei-me de um médico amigo nosso – profeta excêntrico em seu meio – que denuncia pelos quatro ventos os abusos do lugar, compra seus próprios aparelhos para trabalhar e leva medicamentos por conta própria para os doentes. Solitário como uma andorinha sem verão, ele acaba enfraquecendo, sufocado pelo túmulo de indiferença em que todos os outros, inclusive a igreja, estão.
Em 1 Coríntios 13, Paulo fornece a base teológica para todas as nossas iniciativas como igreja. Tudo deve ser motivado, pura e simplesmente, pelo amor. Ele começa falando dos dons espirituais: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, […] ainda que eu tenha o dom de profetizar […], ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei” (v. 1, 2). Para muitos, lutar contra demônios tornou-se quase como jogar video game. Matamos os monstros com um tiro na testa! Descobrimos os mecanismos para passar para a próxima fase e matar mais monstros, ou impedi-los de reviver com uma força maior. Mapeamos cidades, nos orgulhamos com resultados de orações feitas no calar da noite, repreendendo as bestas feras mais feias do inferno.
Pensei em cada rostinho que havia visto ali naquela noite e nas mães, sentadas do lado de fora da enfermaria sem repouso, sem consolo, sem esperança. A mesma igreja que por anos foi no mínimo indiferente com o sofrimento aterrador do Hospital de Base, hoje não teria dificuldades em atender um chamado para repreender as potestades do inferno que ali se alojam. Se a cidade fosse mapeada e o hospital estivesse em ângulo com a maçonaria, se alguém tivesse uma visão de algum demônio reinando sobre o lugar, melhor ainda…
Senti-me desnudada em minhas motivações. Demônios me atraem, crianças sofrendo, não. Antros de trevas e agentes sobrenaturais de repente se tornaram minha motivação e a da igreja, envolvidos nesse video game gigante, brincando de evangelho. Um evangelho-viagem, cósmico, que vai se distanciando sutilmente do evangelho-terra, evangelho-gente, evangelho-amor, evangelho dos pobres e de Jesus.
A batalha espiritual que não gera transformação de consciência social, transformação ética e moral, que não quebra a nossa hipócrita indiferença de classe média brasileira em relação aos pobres, que não cura nossa sociedade aleijada, não passa de animismo, de feitiçaria. O animismo é que se vale de mecanismos espirituais impessoais que não requerem nada do praticante além do mero exercício do ritual.
Lutar com Deus não é assim. Lutar com Deus nos lança na fornalha, nos fere a coxa, requer sacrifício e compromisso. Rasos demais, entendemos por sacrifícios espirituais os jejuns contínuos, os cultos longos. Mas não é a esse tipo de sacrifício que me refiro. Paulo nivela todos estes sacrifícios religiosos a zero: “Ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado” — ainda que me torne o mais religioso dos religiosos —, “se não tiver amor, nada serei” (v. 3). E a poesia maravilhosa de 1 Coríntios 13 se afirma em Isaías 58, Tiago 1.27 e tantas outras passagens do Antigo e do Novo Testamentos, nas quais Deus nos adverte sobre o que é a verdadeira religião.
A religião segundo Deus é o amor. É estender a mão ao carente, não por causa dos demônios que nele habitam, mas por causa de quem ele é, criatura de Deus, amada por Deus. A religião segundo Jesus anda descalça pelas ruas pobres, conversa com prostitutas, se envolve com gente sem discriminar nem se sentir superior. A nossa religiosidade rasa às vezes nos leva a exorcizar pessoas, e não demônios. Um verdadeiro ato de amor a Deus e aos pobres exorciza os demônios que habitam nossa consciência social e atrai aqueles a quem Deus ama para libertá-los.
Que a chuva do Espírito que hoje está sobre o Brasil transforme nossa indiferença em solidariedade, nossa injustiça em justiça, nossa má distribuição de renda em generosidade, nossa gente-Brasil em irmãos de fato.
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Bráulia Ribeiro é missionária em Porto Velho, RO, onde leciona lingüística e missiologia na Escola de Treinamento Transcultural da JOCUM (Jovens Com Uma Missão).
braulia_ribeiro@yahoo.com
 
Fonte: Revista Ultimato
Jan/Fev 2003/XXXVI

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