Autor: Marcos Monteiro
Todos nos esquecemos, ou fazemos questão de esquecer, que o mesmo congresso que relutou em autorizar um plano de cerca de 700 bilhões de dólares para “salvar” a economia do planeta, é o congresso que autoriza periodicamente gastos militares no Iraque de uma guerra que já custa mais de 600 bilhões e cujas estimativas chegam a três trilhões de dólares até o ano 2010.
Vivemos como se, depois de Descartes ter partido o ser humano em dois e dividido a realidade em partes, Pascal, no século XVII, não nos tivesse advertido que todas as coisas estão material e imaterialmente interligadas e o que causa é causado e o que ajuda é ajudado e existem vínculos mediatos e imediatos que colocam parte e todo em relações complexas e indissociáveis.
Não podemos, por conseguinte, enfrentar aquela que se afigura como a maior crise econômica de todos os tempos, como mero acidente de percurso, mas como componente estrutural em que sistemas econômicos, interesses políticos e projetos particulares se conjugam e se contrapõem, formatando uma esdrúxula e imensa rede com nós e fios irregulares que ainda não sabemos para que serve.
Na falência do processo civilizatório, governantes e técnicos do planeta lembram um bando de crianças soltas em uma loja de cristais, sem a desculpa da inocência. Mais sabedoria revelava o cacique Seattle, em 1854, na famosa carta de índio que analisa a proposta, incrível para a sua cultura, de venda de terras. Entre outras coisas, adverte que se os brancos continuam a não cuidar da sua cama (a mãe terra, claro), serão um dia sufocados pelos próprios dejetos. Dito de outra forma, as bombas jogadas sobre o Iraque estão finalmente caindo sobre a economia americana.
A hipótese Gaia, considera a terra um complexo sistema vivo, garantido por uma complexa rede de bactérias presentes em organismos e meio ambiente, ar, pedras, terra, água e seres vivos, que forma e mantém o seu próprio meio, garantindo uma uniformidade, diante das variações produzidas por desgastes e por catástrofes naturais. Esse equilíbrio é estável, mas limitado, e o tecido da vida tem sido constantemente esgarçado dentro de um sistema de opressão em que androcentrismo, exploração ambiental, militarismo e capitalismo são aspectos de uma única e destrutiva lógica, a lógica do interesse.
Des-interessar a sociedade, na esteira do raciocínio do filósofo Lévinas, nunca seria tarefa fácil, exatamente porque não interessa ao poder. Mas interessa ao planeta, cujos gritos de socorro precisam ser ouvidos urgentemente pelo maior número de pessoas, e deve interessar à sociedade civil, que ensaia há muito tempo novos tipos de relações e novas formas de organização, mais democráticas.
O princípio do des-interessamento é o princípio da alteridade. É preciso ouvir o outro, caminhar com o outro, ser para o outro. Em uma sociedade androcêntrica, plutocrática, elitista, o outro é a mulher, o pobre, o excluído e todo aquele ou aquela que sofre qualquer tipo de discriminação, política, econômica, religiosa, racial, sexual.
Diante de tudo isso, podemos afirmar que a crise econômica mundial é sobretudo uma crise ética. Pois ética, segundo mais uma vez Lévinas, é exatamente a afirmação de que o outro nos precede na região do ser. Se considerarmos, por conseguinte, a sociedade civil como o outro do governo, atender aos movimentos sociais, incentivar os movimentos populares, fortalecer as relações comunitárias e estabelecer instâncias de interlocução com as demandas da população organizada, é o único caminho possível para enfrentar uma crise que é estrutural.
*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE e da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também é coordenador do Portal da Vida e vice-presidente do Centro de Ética Social Martin Luther King.
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br
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