Memória e missao: as testemunhas na história

Autor: Autor Desconhecido

“Hoje há uma maior necessidade de testemunhas do que de mestres” (Paulo VI, EN)

A partir do clássico de Bosch, Transforming Mission, há vários paradigmas e modelos de missão ao longo da história. Que tal contar a missão a partir das testemunhas nos vários períodos históricos? O momento histórico e a diversidade geográfica, de um lado, e a teologia subjacente, do outro, são variáveis fundamentais para entendermos as convergências ou as continuidades e, também, as diversidades e as descontinuidades. O ponto de partida, no entanto, são as diferentes testemunhas. Contando a vida, as motivações e os métodos destes protagonistas conseguimos detectar as constantes e as diversidades. Nossa reflexão, portanto, é mais experiencial e existencial. Ao redor das personagens recosntruímos os parâmetros históricos e teológicos. O texto não perde em consistência científica, mas privilegia a linguagem e os testemunos.

AS CONVERGÊNCIAS ou CONTINUIDADES

Há algumas constantes que perpassam a espiritualidade missionária, como podem ser vistas a partir da vida de muitos missionários e missionárias. Mais missionários de que missionárias, porque até certo ponto a missão, em seu envio e protagonismo, era entendida como uma atividade principalmente masculina. Cabia às mulheres fornecer um suporte espiritual e fazer sacrifícios. No anonimato, no entanto, muitas mulheres contribuíram para manter vivo o anseio missionário. Mais recentemente, no entanto, deu-se maior destaque à atuação missionária feminina, também em seu protagonismo.
Quais, portanto, estas constantes que caracterizam a espiritualidade missionária?

Uma característica da espiritualidade missionária, e certamente ocupando o lugar central, é a paixão pelo Cristo vivo e pelo Reino.
A pessoa de Cristo inspirou e continua motivando a opção profunda dos missionários e das missionárias. Não é possível que alguém trilhe este caminho sem ter sido arrebatado pelo Cristo Pascal. Somente quem tem um vínculo e uma intimidade excepcional pelo Mestre pode percorrer o caminho da missão sem retorno. A busca e a construção desta intimidade podem ser diferenciadas. Os caminhos da proximidade com o Mestre podem seguir diferentes métodos, mas ninguém pode se aventurar no empreendimento da missão sem ter sido arrebatado pelo amor do Senhor. Cada vocação, e especialmente missionária, pressupõe um chamado íntimo e radical por parte do Mestre. Este chamado decorre de uma experiência e de um encontro transformador da vida. É este o ponto de partida para o caminho da missão e que explica a adesão radical do discípulo. Em todas as figuras e as testemunhas que apresentamos, a paixão pelo Cristo missionário é o eixo motivador da própria espiritualidade. É um Cristo, no entanto como vimos, que está situado e caminha junto com os pobres deste mundo. Os deserdados, os danados da terra, os sem esperança, os feridos no caminho revelam o rosto sofrido de Cristo. Qualquer experiência de Jesus que não passa através da solidariedade com os abandonados, faz da experiência religiosa uma aventura romântica e intimista, mas não atinge o núcleo da experiência religiosa cristã. Dar a vida, como Jesus, é preciso, fazendo-se companheiro dos despossuídos.

A ótica do Reino e a paixão pelo sonho de Jesus fazem da espiritualidade missionária um caminho sem retorno. Historicamente, a aventura missionária nem sempre teve uma perspectiva reino-cêntrica. Hoje, após o Concílio Vaticano II, ficou clara a origem trinitária da missão, como fonte, método e fim, e, também, o serviço aos valores do Reino. Na história da missão, no entanto, vários modelos focalizaram diferentemente o objetivo da missão. É conhecido o modelo da “salvação das almas”, a qualquer custo. Várias testemunhas, inseridas nesta teologia da missão, sonhavam de “salvar uma alma e depois morrer”. Poucos atentos ao contexto, transplantavam um modelo de evangelização e fundamentavam-se na exclusividade do batismo, como horizonte primeiro. Muitas vezes, ingenuamente, os missionários andavam de mãos dadas com os vários processos de colonização. Mais tarde, a perspectiva da implantação da Igreja (plantatio Ecclesiae) absorveu toda a ação missionária. Formaram-se, assim, muitas comunidade cristãs espalhadas no mundo todo. No fundo, este modelo continuava sendo muito eclesiocêntrico. A perspectiva do Reino, com toda sua aproximação metodológica, é algo de muito recente e está re-focalizando o caminho da missão. Na reflexão sobre a vida das diferentes testemunhas vale a pena dar conta destas mudanças. Não tivemos, no entanto, a pretensão de distinguir o caminho das testemunhas segundo este critério. Além de tudo, muitos dos enfoques que, a primeira vista, parecem contraditórios subsistem de maneira complementar. Muitas vezes, todas estas motivações estão entrelaçadas entre si. Não insistimos em diferenciar, conhecendo pouco as motivações de fundo e não sublinhando, exclusivamente, os referenciais históricos.

O profetismo nunca esteve ausente do caminho da missão. È Amaladoss quem define que o núcleo central da missão é o profetismo. “A missão como profecia” é o título de um artigo publicado no livro “Desafios da Missão” (São Paulo: Ed. Mundo e Missão, 1995).

Há, também, o sentido do envio e da saída, sobretudo física, da própria terra de origem. A missão é um longo caminho que não tem mais retorno. O sentido do “sair da própria terra” significa a radicalidade de pertencer somente a Deus e ao seu projeto. Quem conduz a missão é Deus (Missio Dei). Não há outro projeto a ser implementado se não o plano de Deus. É ele que toma conta completamente da vida dos missionários e das missionárias para conduzi-los aonde ele quer e segundo a maneira que ele quer. Esta radicalidade é revelada através do ato de entrega e do fato de não pertencer mais a si mesmo. Concretamente, traduz-se no processo de deixar tudo, a pátria, os amigos, os pais, as pessoas mais queridas e os lugares mais familiares para ser conduzidos pelo Mestre. Ainda hoje, a saída do missionário e da missionária se dá através de uma sugestiva celebração da “entrega do crucifixo”, significando a entrega total da própria vida a Deus e tendo como único companheiro Cristo “morto e ressuscitado”. Alguns deixam o próprio lugar para se deslocar para as situações missionárias ao interior do próprio país, outros, abandonam até sua própria cultura e sua terra onde nasceram e viveram, para outros contextos e no meio de outros povos.

Em época de “globalização, quando parece que as distâncias se encurtam e as divisões territoriais não são tão rígidas como aos tempos do surgimento dos Estados Nacionais, há a necessidade de manter vivo o sentido do “além fronteiras”, também geográficas, para significar a entrega total ao projeto do mestre. A exemplo de Abraão, o pai da fé de algumas grandes religiões, continua explicito o sentido da saída, sem saber aonde e sem conhecer tudo sobre o que fazer. Confia-se somente na promessa de Deus. O mesmo Jesus, movimentando-se ao interior da Palestina e sem ter saído fisicamente de seu contexto cultural, indica a categoria do deslocamento e o abandono nas mãos de Deus como processo radical do seguimento. O sentido do caminho de Jesus, como enviado e primeiro grande missionário, começa quando deixou o lugar que lhe pertencia, como Deus, e se encarnou no meio de nós, pondo sua tenda no meio dos seres humanos. Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte.” (Fil. 2, 6-8). A primeira grande epopéia missionária começou com a Igreja primitiva. Em poucos anos houve cristãos que se espalharam para todo o mundo conhecido, testemunhando a universalidade da mensagem de Jesus. Os Atos dos Apóstolos representam a atividade e a consciência missionária das primeiras comunidades cristãs.
Sem saída, portanto, não há missão. E isto é testemunhado pela quase totalidade dos personagens que formam o conjunto deste livro. É o caso, por exemplo, de Damião de Molokai e tantos outros. É preciso sair, mais do que tudo, da própria vida. Quem retiver a própria vida vai perde-la, mas que a oferecer, irá ganha-la para sempre.

Uma outra características da espiritualidade missionária, através das testemunhas, é o sentido de “andar contra corrente”. Muitas vezes os missionários e as missionárias são considerados “loucos”, ou, pelo menos, pessoas estranhas e fora da normalidade. Há um caminho dentro da “normalidade” que muitos percorrem e há um caminho que não se encaixa dentro dos parâmetros tidos como normais. Pois bem, sendo a missão um dinamismo, mais de que uma atividade, qualquer encapsulamento e institucionalização faz morrer a missão. Missão é encontro das pessoas no caminho e não na segurança de uma casa. O missionário, nas trilhas de Jesus, rompe qualquer tipo de fronteira e passa todas as fronteiras, sobretudo institucionais. Não veste a roupa do já sabido e do já conhecido. Há um impulso que empurra os missionários a nunca se adaptarem a nenhum lugar e a nenhuma situação. Quem não se encaixa na normalidade é tido como uma pessoa excêntrica e estranha. Por isso que, por princípio, qualquer missionário é subversivo e, como tal, alguém que incomoda. Ele subverte o estabelecido e qualquer casa lhe é estreita e limitada. Esta atitude torna a vida missionária um pouco esquisita e original. Pessoas de admirar, mas não a serem seguidas, tamanho o anticonformismo que transmitem. Por isso que também, muitas comunidades estabelecidas preferem o fechamento e a normalidade da segurança ao anticonformismo dos missionários. Os missionários são admirados, pela áurea de radicalidade que os acompanha. Às vezes, até, são convidados a dar o próprio testemunho, mas nada mais do que isso. Há algumas coisa que subverte e como tal não deve ser generalizado. As comunidades cristãs, por princípio, são missionárias, mas tudo isso deve ser mantido “dentro da normalidade”. A missão, em sua radicalidade e sua loucura, deve ser mantida sob controle. A vida de alguns missionários e missionárias, quando se torna uma ameaça à instituição, representa um perigo a ser exorcizado. Por isso que, em muitos casos, nos relatos das testemunhas, irmãs religiosas ou religiosos devem deixar seus conventos e congregações para fazer seu próprio caminho da missão. Esta “loucura” missionária é parte integrante da espiritualidade. Neste sentido, a missão vive a polaridade de ser estimada e valorizada e, ao mesmo tempo, de ser controlada e exorcizada, pela carga de subversão que a envolve. É o caso, por exemplo, de Matteo Ricci, Madre Tereza de Calcutá, etc.

Uma outra característica da espiritualidade missionária é a opção evangélica pelos pobres. O profetismo e a opção pelos pobres andam juntos, e também o martírio, como conseqüência de uma vida radicalmente doada aos outros. O seguimento de Jesus na radicalidade e na pobreza são ingredientes fundamentais da espiritualidade. O sonho que Jesus vislumbrou do Reino de Deus podia ser visualizado somente na sua inserção efetiva no meio dos pobres. Ele mesmo se tornou pobre. Reforçando mais ainda esta perspectiva: a única forma de tornar acreditável e visível o sonho do Reino foi de aproximar-se e identificar-se completamente com as situações mais radicais de marginalização. “A atuação de Jesus, realizada dentro de um espaço em meio das pessoas marginais, excluídas do centro, constitui um paradigma hermenêutico de suma importância” (Arenz, 1999, p.315).

Jesus nem tinha lugar para apoiar sua cabeça. Quem não tem um lugar para amparar-se é alguém que fez da rua e do caminho sua morada, cruzando fronteiras e margens, residindo além das razões civilizadas, preferindo a não-vida para desencadear a vida em abundância. O sonho do Reino que fervia e queimava na vida de Jesus podia acontecer somente em sua proximidade histórica e humana com os oprimidos. É por causa disso que não se pode separar a vida real de Jesus, como concretamente a viveu na proximidade com os deserdados, com o sonho de ver eliminada qualquer discriminação e exclusão por causa do amor infinito de Deus que acolhe a todos.

O caminho da missão é marcado, no seguimento de Jesus, pela pobreza evangélica e material. E, ainda mais, pela presença e serviço ao pobres. Inúmeros missionários e missionárias tem marcado o próprio caminho no despojamento e na pobreza e, conseqüentemente, no serviço incondicionado aos pobres.

Aqui vale a pena indagar o sentido da pobreza. Todos tiveram como exemplo o Jesus pobres dos Evangelhos, mas nem todos tiveram a mesma consciência da realidade da pobreza. É preciso reconhecer que alguns viveram e praticaram a pobreza na perspectiva das obras de misericórdia, sem questionar os mecanismo da opressão e suas causas. Outros, com maior consciência, entenderam que a pobreza não representava o curso natural das situações, mas provocada por injustiça das estruturas e dos corações. A misericórdia aqui, como diz John Sobrino, foi elevada a princípio e como tal era profundamente questionadora da realidade da pobreza. Talvez uma maior consciência histórica e uma leitura mais conseqüente do Evangelho possibilitaram um profetismo maior. Assim encontramos missionárias e missionários que, mesmo profundamente seguidores do Cristo pobre, tiveram uma atuação diferenciadas e atitudes divergentes. No mesmo plano foram colocados, por exemplo, um Frei Bartolomeu de Las Casas com Madre Tereza de Calcutá ou Santa Rosa de Lima. Em todos, no entanto, a vida pobre e o serviço aos pobres foram fatores norteadores da espiritualidade. É preciso reconhecer que, em muitos casos, havia uma diferente concepção da evangelização e da missão.

Aqui vale a pena introduzir o fato de que pode não ser conseqüente comparar e juntar entre si missionários e missionárias que viveram em contextos e em períodos históricos diferentes. Cabe, no entanto, a cada um de nós introduzir outras variáveis contextuais na interpretação das testemunhas. O fato de se ter diferenças na compreensão e na consciências da questão da pobreza, não elimina o ponto de partida que unifica a vida dos missionários e das missionárias. Mesmo com diferentes interpretações a opção evangélica pelos pobres representa uma constante da vida missionária.

A radicalidade na vivência da pobreza e no serviço dos mais pobres fez que muitos missionários e missionárias “perdessem a própria vida” pelos outros. O profetismo, neste caso, está muito mais na doação da própria vida do que na denúncia explícita dos mecanismos da opressão. Quando alguém, como Damião de Molokai ou Pe. João Bosco Burnier chegam a testemunhar, até as últimas conseqüências, dando a própria vida, é porque a causa dos outros, leprosos ou torturados, é a lógica conseqüência da uma entrega total à causa missionária. Alguns, sem ter tido uma morte violenta, seguiram a trilha do martírio na entrega total de sua própria vida.

AS DIVERSIDADES OU DESCONTINUIDADES

Para entendermos a missão nos diferentes períodos temos que colocá-la em seus contextos, nos momentos históricos e na diversidade de lugares. Concomitantemente é necessário entender a teologia da missão veiculada em épocas diferentes. A ênfase de uma prática missionária ou de um aspecto peculiar nasce, evidentemente, da transmissão de uma determinada teologia da missão.

Bosch, em seu Transforming Mission, visualiza, pelo menos, seis grandes horizontes da epopéia missionária:

Os modelos do Novo Testamento,
A missão nos primeiros tempos da Igreja,
O paradigma medieval da missão,
A visão missionária da Reforma protestante,
A época do Iluminismo,
A missiologia hodierna.
Sem pretender abarcar todos este períodos e todo este arco de tempo, escolhemos algumas épocas e focalizamos algumas personagens ou testemunhas.

A missão avança entre continuidades e descontinuidades. O mesmo conceito de paradigma, herdado de Thomas Kuhn (As estruturas das revoluções científicas), e aplicado à teologia, ressente-se de uma certa complexidade. A dimensão teológica, mesmo em suas descontinuidades, pressupõe um caminho de continuidade na Tradição e nos fundamentos da Palavra de Deus. Pode ser, também, que um velho paradigma ressuscite num momento histórico diferente, como, de outro, na mesma época histórica sobrevivem paradigmas diferentes. Isto mostra que, junto com a complexidade, há a necessidade de evitar uma fixação num único modelo. Diferentes paradigmas podem co-existir, como podem encontrar uma certa complementaridade. Às vezes, no entanto, podem se opor.

Escolhemos, dentro de alguns períodos históricos, alguns protagonista e emprestamos a palavra. Por cada período destacaremos algumas características históricas e teológicas particulares.

1. A época dos Evangelhos e dos primeiros tempos da Igreja

O Evangelho de Mateus
O Evangelho de Marcos
O Evangelho de Lucas
O Evangelho de João
Os Atos dos Apóstolos

2. A idade média
Francisco de Assis (1182-1226)

3. A época da conquista (séc. XVI…)

Bartolomeu de Las Casas (1484-1566)
Antônio de Montesinos (+ 1535)
Rosa de Lima (1586-1617)
Mateu Ricci (1550-1610)
Francisco Xavier (1506-1552)
Anchieta
Nóbrega

4. A época das grandes colonizações (Séc XIX….)

Charles de Foucauld (1858-1916)
Damião de Molokai (1840-1889)
Mons. Comboni
Mons Conforti
Cardeal Massaia

5. A época contemporânea

Pe. Alfredinho (1920-2000)
João Bosco Burnier (1917-1976)
Cleusa Carolina Coelho (1933-1985)
Teresa de Calcutá ( 1910-1997)
Augusto Gianola
Mártires da Libéria

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