Autor: Ronaldo Lidório
Sempre nos lembramos de Atos como um livro que descreve um Deus que intervém sobrenaturalmente. A Igreja convivia com o sobrenatural onde línguas de fogo desciam sobre os discípulos, coxos passavam a andar, demônios eram exorcizados, anjos socorriam os apóstolos e a própria sombra de Pedro se transformava em instrumento de cura. Por outro lado nem sempre Deus intervinha miraculosamente e assim Estêvão foi martirizado, Paulo preso e açoitado, homens e mulheres fiéis foram passados ao fio da espada e outros lançados aos leões. Mas de maneira além da nossa finita lógica e curta compreensão da história, entre milagres e tragédias, o nome do Senhor Jesus era glorificado e a Igreja, resistente, avançava. É preciso olhar além da vida.
A expectativa do povo de Deus ao longo dos milênios é ver a resposta do Senhor quando chega o sofrimento. Em situações de profunda crise pessoal quando a enfermidade bate à nossa porta, o desemprego chega ou a violência ataca impiedosamente devemos esperar e rogar que o Deus do impossível faça o impossível acontecer. Entretanto Atos mostra-nos uma verdade existencialmente aplicável em muitas situações do nosso dia a dia: nem sempre Deus intervém sobrenaturalmente. E quando isto acontece Ele não deixa de ser o Senhor da situação, Dono absoluto das nossas vidas e da nossa história, Soberano e bondoso Rei. Nestes momentos quando nossa existência é confrontada com a tragédia pessoal, a doença terminal em casa, a falência do negócio, a família partida pelo divórcio ou o filho abordado pelo assaltante na rua, somos convidados a compreender que na felicidade ou na tragédia é preciso olhar além da vida e entender que o projeto maior de nossa existência – glorificar a Deus – é irrefragável e por nada pode ser revogado.
O sofrimento possível
No capítulo 8 de Atos o historiador Lucas inicia a narração afirmando que “levantou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém” onde escolhe o termo grego diogmos para definir “perseguição” o qual era largamente usado para o desenvolvimento de um programa sistemático para a opressão de um povo. Distintamente de efistamai (ataque), a expressão diogmos é uma ação ligada ao sofrimento principalmente físico (causar dores, fazer sofrer, punir com sofrimento) portanto o quadro pintado por Lucas neste capítulo é de uma Igreja que passa a experimentar de forma física e violenta o amargo sofrimento e nas próximas sentenças ele descreve os ingredientes desta diogmos: o sepultamento de Estêvão, o aprisionamento dos fiéis e a dispersão da Igreja.
Mas Lucas, inspirado, vai além. No versículo 2 quando é mencionado o martírio de Estêvão ele relata que houve grande “pranto”, sendo para isto usado o termo grego kopeton. Este ‘Kopetos’ (pranto) pode ser lido literalmente como “bater no peito” e indica o sofrimento emocional, a dor da alma, o choro inconformado do coração. Ao lado de diogmos esta expressão apresenta uma Igreja em sofrimento físico e emocional. O ataque vinha de diferentes lados pois paralelamente à opressão física como as prisões, martírio e espancamentos havia também a emocional como o medo, a insegurança, a saudade e depressão.
No versículo 3 o historiador afirma que Saulo “assolava” a Igreja e mais uma vez escolhe cuidadosamente um termo, desta vez ‘elumaineto’, para demonstrar o sofrimento dos santos em Atos. Este termo, derivado de “lumaino”, aponta para uma assolação (destruição) não apenas física e emocional mas também espiritual e é a mesma palavra usada em João 10:10 quando lemos que o Diabo veio roubar, matar e “destruir”. O ataque visava não apenas abater o corpo e desestabilizar as emoções mas também destruir a fé.
O que temos portanto até o momento é um retrato surpreendente e cuidadosamente pintado nos três primeiros versos de Atos 8: a Igreja enfrentando fortíssimo ataque físico (‘diogmos’), emocional (‘kopetos’) e espiritual (‘lumaino’), portanto uma igreja em profundo sofrimento. O contexto literário aqui existente não centraliza a Igreja mas sim o ataque a ela perpetrado, o esquema malígno que rompe sobre a comunidade de Jesus por todos os lados e a ira satânica que não deixa nenhuma frente sem oposição. Lucas relatava que o sofrimento era real e possível entre os cristãos e que esta Igreja enfrentava uma oposição sobre humana que atacava o corpo, fazia doer a alma e tentava solapar a fé. A Igreja sofria.
O sofrimento continua presente entre o povo de Deus hoje. Quando a violência cai sobre a família, o irmão tem sua vida ceifada pelo trágico acidente automobilístico, a enfermidade teima em não abandonar o corpo, o desemprego e as dívidas fazem o sono esvair-se na madrugada, a depressão se abate profusamente sobre a alma e a fé é provada no fogo entendemos que o sofrimento é possível. Mas a fidelidade constante de Deus mostra-nos que mesmo no mais terrível sofrimento Deus continua sendo Deus, e nunca se ausenta. Mesmo quando Ele se silencia em momentos que esperávamos um poderoso e miraculoso grito, Ele continua Pai de seus filhos e Senhor de nosso destino. Quando o Senhor se cala é preciso olhar além da vida em total dependência filial e saber que Deus é maior que os homens.
Cantamos um hino aqui em Gana que diz:
“… não vivemos para celebrar o sofrimento; nem também para chorar; mas quando ele vier choraremos; … no sofrimento há Deus; não cremos na dor sem Deus, não cremos na dor sem Deus ”
O Deus do impossível
Entretanto existe o outro lado da moeda que nos incita a esperar contra a esperança e crer no Deus dos milagres. Compreender o sofrimento como fato possível na vida do crente não implica em perdermos a expectativa de ver Deus abrir os céus e intervir miraculosamente. Fomos geneticamente nascidos em Cristo com a tendência de esperar que o impossível pode acontecer. E assim a resposta de Deus ao seu povo em Atos 8 vem nos três versículos seguintes e Lucas escreve neste texto, com todas as letras, que Deus tem sempre a última palavra em nossas vidas.
No versículo 1 a Igreja sofria quando “foram dispersos pelas regiões da Judéia e Samaria” mas no verso 4 veio a tremenda e intérrita resposta do Senhor: “Entrementes os que foram dispersos iam por toda parte pregando a palavra”. Mesmo no sofrimento humano Deus fazia a história caminhar para a glória do Seu Nome e o avanço da Sua Igreja.
No versículo 2 o evangelho sofria com o martírio de Estêvão, pregador da Palavra e homem cheio do Espírito Santo. Caía alí um grande líder e incansável pregador. Mas Deus, no versículo 4, dá resposta ao sofrimento levantando Filipe, também cheio do Espírito, e este “descendo à cidade de Samaria anunciava-lhes a Cristo”. Caía Estêvão. Deus levantava Filipe.
No versículo 3 homens e mulheres eram arrastados e encarcerados após terem feito grande pranto sobre Estêvão, a Igreja perseguida se dispersava e a violência se abatia sobre famílias inteiras. Tristeza e melancolia seria o quadro humanamente esperado para encerrar esta história entretanto no verso 8 o texto conclui dizendo que “houve grande alegria naquela cidade”. Deus fazia o impossível acontecer tanto no corpo, na alma e na fé do Seu povo.
Gostaria que entendêssemos que o nosso Deus, em sua e minha vida, nunca será surpreendido. A despeito do possível caos em sua alma, das inúmeras batalhas perdidas, do vazio no coração, da falta de fé, da ausência de respostas esperadas, Deus – na história da sua existência – nunca foi ou jamais será surpreendido por qualquer fato ou acontecimento que tente lhe roubar a expectativa de um dia voltar a ser feliz. Ele detém o direito autoral de escrever cada capítulo da sua existência, é Soberano e tem domínio sobre a sua história pessoal mesmo quando se cala.
Mas Deus fala ainda hoje. E perante a insistente afirmação médica de que poucos meses lhe restam, ou todas as estatísticas sociais de desemprego que apontam para mais um ano sem trabalho, ou ainda defronte do nefasto e incansável ataque do Diabo em seu lar, do casamento que parece não ter mais jeito ou do filho que prometeu nunca voltar ao lar, creia que o Deus dos impossíveis pode fazer o impossível acontecer.
Olhar além da vida é olhar para o projeto maior na mente do Senhor, é reconhecer que Deus é maior que o homem, que a glória de Deus importa mais do que a nossa glória. Não creia na dor sem Deus.
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