Começar de novo — superando o pecado estrutural

Autor: Robinson Cavalcanti

Missão ética

Creio firmemente que a Igreja não tem uma missão técnica, de detalhar como deve ser a organização social, política ou econômica do mundo, mas, sim, uma missão profética, de denunciar os seus males, e uma missão ética de, em contraste com os pecados estruturais, apontar para os valores do reino de Deus. É sabido que vivemos na história e na cultura depois da queda, marcados pelo pecado original. Estamos, pois, longe do que seria a forma de organização prevista para a sociedade no jardim do Éden, ou de como será a organização social na Nova Jerusalém — ambas sem pecado.
A Igreja não seria fiel ao seu Senhor e à sua missão se optasse pela alienação, pelo silêncio, pela omissão ou pela conivência diante dos poderes e dos poderosos deste mundo, diante da iniqüidade da ordem internacional, do Estado ou da sociedade civil.
Enquanto estamos na história, as sociedades ideais do Éden e da Nova Jerusalém nos inspiram a protestar e a afirmar, a lutar pela justiça e pela paz, pela liberdade e pela honestidade, pela dignidade dos seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus, e a quem Ele ama, tomando claro posicionamento contra toda tirania e opressão, violência e exclusão, fome e miséria — resultados dos regimes políticos, ideologias e sistemas econômicos criados pelos homens pecadores.
Como povo de Deus, temos a Lei e os Profetas, temos Cristo e os apóstolos, temos as Escrituras e o Espírito Santo, temos a história da Igreja a nos mover como “sal” e “luz”. Não temos de nos conformar com este mundo, mas, pela conversão, santificação e presença, somos transformados em transformadores. O evangelho não se destina apenas à alma (parte fantasmagórica dos nossos seres), não pode ser aprisionado pelo subjetivismo e pelo individualismo; mas, pelo poder de Deus, atinge todo o ser e todas as suas relações e realizações. “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” nos faz comprometidos como cidadãos do reino de Deus em exercermos uma cidadania terrena responsável.
Lamentavelmente os cristãos têm sido vítimas da ignorância, da desinformação, da tentação dos privilégios e da acomodação. Têm sido vítimas do medo e do desânimo. Com isso, têm pecado, pela negação da providência de Deus sobre as nações, e pela não instrumentalidade a serviço dessa providência.
É, pois, dever dos cristãos estar informados sobre o que se passa no mundo, compreendendo as suas causas, intercedendo, e fazendo a sua parte para transformá-lo: por pensamentos, palavras, votos, atitudes e participação. O silêncio é culposo, e a omissão, pecaminosa. Mas não se pode ficar nas generalizações. Devemos ser objetivos e claros, “dando nome aos bois”. Com discernimento, os cristãos devem lançar mão do instrumental analítico facilitador das ciências, da filosofia e da teologia. Lamentavelmente é também evidente que a situação do mundo é pior por causa da omissão dos cristãos, especialmente quando se tornam portadores de teologias equivocadas e quando tomam posições igualmente equivocadas.
Como cristãos, então, é nosso dever afirmar que a presente ordem internacional é pecaminosa, por sua drástica limitação à autodeterminação dos povos, à soberania dos Estados nacionais, à liberdade e à criatividade alternativa, sob a força brutal e impiedosa de um império e dos seus associados, em sua injustiça e opressão, em sua exclusão e repressão ao novo e ao diferente, ao direito ao sonho e à busca de novas utopias, até que venha a parousia.

Sistemas pecaminosos

O século 20, com todas as suas descobertas e invenções, e todas as suas guerras e tiranias, nos legou dois sistemas econômicos fracassados: o capitalismo de Estado (impropriamente denominado de “socialismo real”), que teve a sua decadência dramatizada pela queda do Muro de Berlim e pelo fim da União Soviética, e o capitalismo privatista (hoje mal denominado de “neoliberalismo”), que, ainda, não teve um fim dramático, mas cujo fracasso (apesar da propaganda e do controle ideológico da mídia) é atestado pela brutal concentração de renda, poder, saber e propriedade, pela injustiça, violência, opressão e exclusão de milhões de seres humanos.
Os próprios fundamentos teóricos, valores e práticas do modo de produção capitalista se chocam com os princípios bíblicos e com os valores do reino de Deus, o que deveria levar os cristãos conscientes e comprometidos a lutar pela sua superação — como fizemos no passado com o escravismo e a servidão — e por sua substituição por outro modelo, em que os frutos da terra de Deus sirvam, eqüitativamente, a todas as criaturas de Deus. O remédio inadequado e os efeitos colaterais perversos da experiência soviética não transformam a enfermidade do capitalismo em saúde.
O problema é que há cristãos que estão na parte “de cima” do sistema. Outros, que ainda estão na parte “de baixo”, só pensam em chegar na parte “de cima”, e não querem que sejam eliminados os privilégios e as desigualdades, mas, sim, usufruir deles, pois equivocadamente os entendem como “bênçãos” para os “filhos do Rei”. Pode-se perceber que a luta pela superação dos pecados estruturais por parte dos cristãos parece ser uma tarefa que se procura evitar, porque o cristianismo aplicado ao cotidiano da história pode implicar em riscos do “anacrônico” martírio.
No caso particular do Brasil, um país que ainda joga na “segunda divisão” do mundo, temos também o sentimento egoísta de almejar, sozinhos, “chegar lá”, na “primeira divisão”.
Recentemente, elegemos, por ampla maioria, um governo formado por pessoas com um passado de lutas, um acúmulo de estudos e propostas alternativas para um país mais justo e soberano, sob a égide da participação popular, com um compromisso pelas mudanças. Mas esse grupo de pessoas e seu partido, por terem mudado de ideologia e de programa de forma não-participativa e não-transparente, optaram pelo continuísmo mitigado pela retórica, pelas novas faces e pelas ações cosméticas, renegando o seu passado (inclusive passado ético) e os seus compromissos, abandonando a sua antiga base social e os anseios dos excluídos, pactuando com as elites de sempre e com os donos do poder mundial (um pessoal conhecido, eufemisticamente, como “o mercado”). O sonho foi transformado em pesadelo.
O que fazer? O que fazer, além de lamentar e interceder?
O nosso cancioneiro popular nos diz: “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima” e também “Começar de novo…”. Vamos “deixando as coisas que para trás ficam”, vamos também “avançando para o alvo”. Cristo, na cruz, já derrotou o “príncipe deste mundo”. Como Igreja, nos apropriamos dessa vitória pela fé, e, em obediência, exercitamos a resistência da “santa teimosia”.
Apesar das decepções, não percamos a esperança, procurando participar de uma sociedade civil fortalecida, informada, esclarecida, mobilizada e combativa (pelos “bons combates”), e por novas alternativas partidárias (com suas limitações e possibilidades), como espaços para o nosso testemunho, na diversidade das nossas profissões, vocações e dons, a serviço do reino e do Rei, fazendo avançar os sinais e as antecipações, até que venham “novos céus e nova terra”.
Pela Palavra, continuamos a acreditar que o nosso Deus continua a destronar os poderosos!

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Dom Robinson Cavalcanti é bispo da Diocese Anglicana do Recife e autor de, entre outros: Cristianismo e Política – teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo – desafios a uma fé engajada.
www.ieabrecife.com.br

Fonte: http://www.ieabrecife.com.br/index1.htm

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