Autor: C. Timóteo Carriker
Introdução
Há alguns anos atrás fui convidado para dirijir um estudo para todas os presidentes de comissões de missões de igrejas locais da Igreja Presbiteriana do Brasil. O estudo deveria ter o título, “Por que missões deveriam ter a prioridade na igreja?” Podem imaginar que seria fácil para mim elaborar o tópico assim. Afinal de contas, há vinte e dois anos sou missionário, tendo pastoreado igrejas no sul de Goiás, plantado uma igreja no Rio Grande do Sul, me empenhado na evangelização naqueles dois estados, e assumido o ensino de missões em Minas Gerais e agora em São Paulo. Seria natural eu afirmar que a obra missionária deve ter a prioridade na igreja simplesmente porque isto é o propósito essencial da igreja.
Tal afirmação, entretanto, poderia ser precipitada. Pois pressupõe uma resposta afirmativa a uma outra pergunta anterior a essa: “A obra missionária deve ter prioridade na igreja?” Se eu responder que sim, logo poderei apresentar as minhas justificativas explicando por que. Se eu responder que não, corro o risco de perder a atenção de muitos ouvintes que defendem a prioridade de missões na igreja. Ou, como terceira opção mais diplomática, enquanto eu ainda dizer que a obra missionária não deve ter prioridade na igreja, poderei expor o assunto procurando contribuir positivamente para o evento.
Qual é a resposta então? A obra missionária deve ter prioridade na igreja? Se por “prioridade” queremos dizer “o alvo último”, sou obrigado a responder que não. A obra missionária não deve ter a prioridade na igreja. Isto é, a obra missionária não é o alvo último da igreja. O culto a Deus é.[1] O desafio missionário existe e persiste porque o culto pleno a Deus ainda não existe. O culto é o alvo último da igreja. O culto a Deus deve ter prioridade na igreja, não a obra missionária, porque Deus é último, e não o ser humano. Quando esta era terminar e representantes de toda raça, tribo e nação se dobrarem diante do Cordeiro de Deus, a obra missionária não mais exisitirá na igreja. Mas existirá o louvor e a adoração. Permanecerá na igreja o culto.
Por mais que eu queira afirmar a prioridade da obra missionária, creio que uma análise honesta da revelação bíblica leve à conclusão que o culto é o fim último da igreja e o desejo máximo de Deus para toda a humanidade. A primeira pergunta do Catecismo de Westminster diz: “Qual é o fim principal do ser humano?” E a resposta acertada é: “O fim principal do ser humano é glorificar a Deus e gozá-Lo para sempre.” É dentro desta perspectiva reformada e bíblica maior da prioridade última da glória de Deus que nossa reflexão a respeito da obra missionária se encontra. A nossa indagação, portanto, é um pouco diferente daquela mencionada acima. Perguntamos: “Qual é a importância da obra missionária na igreja e qual é a sua devida relação ao fim principal de glorificar a Deus e gozá-Lo para sempre?” Formulando a pergunta desta maneira, creio que a importância da obra missionária se intensifica mais ainda (e não diminue) enquanto, ao mesmo tempo, afirmamos a supremacia de Deus e a nossa prioridade de glorificar e gozá-Lo. Para responder a estas perguntas tomemos como texto orientador, Romanos 15.4-13:
Ora tudo o que se escreveu no passado é para nosso ensinamento que foi escrito, a fim de que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos a esperança.
O Deus da esperança e da consolação vos conceda terdes os mesmos sentimentos uns para com os outros, a exemplo de Cristo Jesus, a fim de que, de um só coração e de uma só voz, glorifiqueis o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
Acolhei-vos, portanto, uns aos outros, como também Cristo vos acolheu, para a glória de Deus. Pois eu vos asseguro que Cristo se fez ministro dos circuncisos para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos país; ao passo que os gentios glorificam a Deus pondo em realce a sua misericórdia, segundo está escrito: Pelo que eu te confessei entre as nações e salmodiarei o teu nome. Diz ainda: Nações, exultai junto com seu povo.
E ainda: Nações todas, louvai o Senhor,e que todos os povos o celebrem. Isaías, por sua vez, acrescenta:Surgirá o rebento de Jessé, aquele que se levanta para reger as nações.
Nele as nações colocarão a sua esperança.
Que o Deus da esperança vos cumule de toda alegria e paz em vossa fé, a fim de que pela ação do Espírito Santo a vossa esperança transborde. (versão da Bíblia de Jerusalém)
Sugiro três relações entre a prioridade última da glória de Deus e a prioridade penúltima da obra missionária na igreja. Primeiro, a glorificação de Deus por causa da Sua misericórdia salvadora é a razão da obra missionária. Segundo, a glorificação de Deus no culto é o combustível da obra missionária. E terceiro, a glorificação de Deus no culto é o alvo da obra missionária.
A glorificação de Deus é a razão de missões
Os versos 8 a 9 fazem uma afirmação: Jesus Cristo comprova a fidelidade e veracidade de Deus porque, através dele, as promessas de Deus para o povo judeu se cumprem. Afinal, somente um deus falso e infiel não cumpre as suas promessas. No verso 12, Paulo cita Isaías 11.10 como apoio das Escrituras para sua afirmação que em Jesus Deus se prova fiel às suas promessas. Para entender isso melhor precisamos fazer três perguntas: 1) quais são estas promessas; 2) de que maneira se cumprem; 3) e quem são os seus beneficiários.
Quanto à primeira pergunta, Paulo entendeu que as promessas de Deus se encontram fundamentalmente nas promessas feitas para Abraão (Gálatas 3.8-9, 13-14, 29). Em essência, Deus prometeu abençoar o seu povo e através dele abençoar todas as etnias do mundo (Gênesis 12.1-3; cf. 22.16-18; 26.2-4; 28.13-14; 49.22; Êxodo 19.1-6).
Quanto à segunda pergunta, Paulo entendeu como toda a igreja primitiva, que as promessas de Deus se cumprem através de Jesus Cristo. Mas exatamente de que maneira se cumprem? As promessas de Deus se cumprem e a misericórdia de Deus se manifesta em Jesus Cristo da seguinte maneira: A tradição profética aguardava a vinda dum descendente de Davi que cumpriria as promessas de Deus definitivamente para o povo judeu. Isto é parte da razão que Paulo, em verso 12, cita Isaías 11.10. Uma parte importante desta tradição profética continua na literatura apocalíptica que falando catastroficamente sobre o fim do mundo (por exemplo, o Livro de Daniel e ainda mais livros extra-bíblicos), mantêm esta esperança na misericórdia de Deus na espera da ressurreição dum indivíduo que cumpriria as promessas de Deus. Logo, quando Paulo encontrou com o Jesus ressurreto na estrada para Damasco, ele reconheceu que este era aquele prometido e que nele a lei judaica encontra o seu cumprimento e portanto o seu fim (Romanos 10.4). As palavras introdutórias da carta de Paulo aos Romanos esclarecem:
Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, escolhido para o evangelho de Deus, que ele já tinha prometido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, e que diz respeito a seu Filho, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos, segundo o Espírito de santidade, Jesus Cristo nosso Senhor,
Nele, somos circuncidados espiritualmente (Colossenses 2.11-12) e ressurretos à vida eterna.
Mas as promessa de Deus se cumprem e a misericórdia de Deus se manifesta não só na ressurreição de Jesus, como também na sua crucificação. Gálatas 3.6-14 é esclarecedor. Quando Jesus foi morto na cruz, ele foi maldito de acordo com a lei que aborrece esta forma de morte. A lógica de Paulo se segue: A maldição é condição que, também de acordo com a lei, pertence ao gentio. Logo, se Jesus sofreu uma morte maldita, por causa da forma da morte, ele assumiu a condição de gentio. E se Deus transformou a maldição e rejeição de Jesus em bênção e aceitação através da ressurreição, também Deus transforma a maldição e rejeição do gentio cuja condição Jesus assumira. Quando Paulo encontrou Jesus ressurreto na estrada para Damasco, provavelmente ainda com as marcas da paixão, ele só poderia concluir que a época prometida, em que Deus iria demonstrar a sua misericórdia para as nações, já havia começado. E tudo isso é o conteúdo dum grande mistério revelado por Deus em Cristo que anteriormente foi oculto (Romanos 16.25-27; Efésios 3.1-6).
Quanto à terceira pergunta, portanto, os beneficiários das promessas são primeiro os judeus e também as nações. Este, aliás, é o tema principal de toda a carta aos Romanos, como vemos no 1.16: “Na verdade, não me envergonha do evangelho: ele é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê, em primeiro lugar do judeu, mas também do grego.”
Creio que, através da nossa discussão, o significado de Romanos 15.9 tenha se tornado mais evidente. Aqui as nações glorificam a Deus “por causa da sua misericórdia”.. Isto é, em Jesus Cristo, elas também se beneficiam da salvação que Deus dá, e como Paulo havia falado em capítulos 9 a 11, as nações estavam, de fato, aceitando em grandes números, o evangelho. Portanto, a misericórdia de Deus em estender a salvação para as nações é a suprema razão da obra missionária. É iniciativa e obra dEle, portanto, nós, os embaixadores de Deus, teremos toda razão de anunciar tão grande oferta. Enraizamos a razão da obra missionária não no ser humano, na sua carência de Deus, ou no seu amor para com aqueles que não tem Deus, mas a razão da obra missionária está firmemente enraizada na iniciativa e na misericórdia de Deus, isto é, na sua soberania.
A glorificação de Deus é o combustível de missões
A paixão por Deus no culto precede a oferta de Deus na pregação. Não pode comendar com convicção aquilo que não estima com paixão. Não poderá clamar, “Alegrem-se e exultem as gentes” (Salmo 67.4a) aquele que não pode afirmar no seu coração, “eu me alegarei no SENHOR” (Salmo 104.34b; 9.2). “Quando a chama do culto queima com o calor da verdadeira dignidade de Deus, a luz da obra missionária brilhará até os povos mais distantes da terra” (John Piper, p. 12). Quando a paixão por Deus está fraca, o zelo por missões certamente será fraco também. As igrejas que não exaltam a majestade e a beleza de Deus dificilmente poderão acender um desejo afervescente para “anunciar entre as nações a sua glória” (Salmo 96.3). Os nossos cultos fervem com a exaltação da glória de Deus? O zelo pela glória de Deus no culto motiva a obra missionária.
John Piper, cita o seguinte pronunciamento de Andrew Murray há mais que cem anos:
Enquanto buscamos a Deus sobre por que, com tantos milhões de cristãos, o verdadeiro exército de Deus que está combatendo os exércitos da escuridão é tão pequeno, a única resposta é C falta de coragem e entusiasmo. O entusiasmo pelo reino de Deus está faltando. E isto é porque há tão pouco entusiasmo pelo Rei.
Ninguém poderá se dispor à magnitude da causa missionária se não experimentar a magnificiência de Cristo (Apocalipse 15.3-4; cf. Salmos 9.11; 18.49; 45.17; 57.9; 96.10; 105.1; 108.3; e Isaías: 12.4; 49.6; 55.5)
Nunca esquecerei do jovem rapaz que nos visitou em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Ele falava do seu entusiasmo de evangelizar no início da sua fé. Naquele momento, entretanto, ele achava que já amadurecera e portanto não possuira mais tanto zelo de evangelizar! Ele precisava mesmo renovar a alegria da sua salvação para que fluam, em conseqüência disto, o culto a Deus e a evangelização (Salmo 51.10-15). O culto é o verdadeiro combustível para a obra missionária.
A glorificação de Deus é o alvo de missões
O culto é o alvo da obra missionária simplesmente porque nosso propósito é levar as nações a regozijarem-se em Deus e glorificá-Lo acima de tudo. O alvo da obra missionária é a alegria dos povos na grandeza de Deus (Salmo 97.1; 67.3-4; cf. 47.1; 66.1; 72. 11, 17; 86.9; 102.15; 117.1; e Isaías 25.6-9; 52.15; 56.7; 66.18-19.
Creio que o culto a Deus como o alvo da obra missionária já se tornou patente como decorrente de toda a nossa reflexão até este momento. Mas há um aspecto desta verdade que precisamos explorar mais. É o seguinte: O culto a Deus como alvo da obra missionária ajuda a entender a própria definição da obra missionária. Pois a obra missionária enfatiza a prioridade de alcançar povos, ou etnias não alcançadas. Isto se evidencia na repetida descrição bíblica da tarefa missionária em termos de etnias (Mateus 24.14; 28.18-20; Romanos 15.19-21). Na Bíblia, a frase, panta ta ethn‘ (pa,nta ta. e;qnh), significa “todas as nações” ou “todas as etnias”. A palavra na forma singular, ethnos, de fato, sempre se refere a coletividade dum povo ou duma nação. Nunca se refere a indivíduos gentílicos. O mesmo é geralmente verdade em relação a palavra na forma plural, ethn‘. A frase, panta ta ethn‘, quase sempre denota esta referência coletiva na Bíblia, também. Que a estratégia bíblica seja de alcançar especialmente as etnias não alcançadas é claro em Romanos 15.19-21. Para muitos cristãos, talvez até a maioria, esta estratégia não parece muito lógica. Antes alcançar todos os indivíduos ao nosso alcance e semelhantes culturalmente a nós, que procurar alcançar representantes de etnias que podem ser geografica ou culturalmente distantes. Parece uma questão de mordomia de esforços.
Este raciocínio parece, sem dúvida, bastante lógico e leva muitas igrejas a desconfiar da estratégia missionária de alcançar representantes de diversas etnias. Meu ponto é o seguinte: se fosse pelo amor humano pelo ser humano, nossa ênfase deveria estar na salvação de indivíduos que estão próximos, e isto, de fato, é a praxe comum. O amor a Deus, entretanto, leva a outra conclusão, que acredito ser a bíblica: a ênfase na prioridade de etnias, e especificamente etnias não alcançadas. Pelo menos, isto é o ensino bíblico, como vimos acima. Resta esclarecer como esta prioridade é ligada ao culto a Deus como alvo da obra missionária. John Piper oferece algumas pistas pela ligação entre o culto como alvo da obra missionária e a razão específica da estratégia de povos não alcançados 9pp. 215-217):
Primeiro, há mais beleza e poder de adoração na unidade de culto derivada da diversidade de povos. No Salmo 96.3-4, lemos, AAnunciai entre as nações a sua glória, entre todos os povos as suas maravilhas. Porque grande é o SENHOR e mui digno de ser louvado, temível mais que todos os deuses.@ Há mais profundidade de beleza do coro que canta todas as partes dum hino a Deus que o coro que canta unísono. A unidade na diversidade é mais bela e poderosa que a unidade da uniformidade.
Segundo, a fama, a grandeza, e o valor dum objeto de beleza aumenta na proporção da diversidade daqueles que reconhecem tal beleza. Se uma obra de arte é reconhecida como grande por um grupo pequeno e restrito, provavelmente não seja verdadeiramente grande. Quando Paulo cita o salmo em Romanos 15.11, “louvai ao Senhor, vós todos os gentios, e todos os povos o louvem,” ele está dizendo que Deus é tão universalmente digno de louvor e tão profundamente belo e tão compreensivamente digno e tão profundamente satisfatório que Deus encontrará admiradores apaixonados em cada grupo humano diverso do mundo.
Terceiro, a força e a sabedoria e o amor dum líder se magnifica na proporção da diversidade de povos que ele inspira para segui-lo. Se você consegue liderar somente um grupo pequeno e homogêneo provavelmente as suas qualidades de liderança não sejam muito significantes (Romanos 15.18).
E quarto, ao focalizar todos os grupos humanos do mundo, Deus está subvertendo o orgulho etnocêntrico baseado em alguns atributos distintivos que cada povo gosta de destacar. Ao invés disto, o orgulho etnocêntrico natural de cada povo dá lugar à graça imerecida de Deus.
Conclusão
A obra missionária começa e termina com o culto prestado à glória de Deus. Começa, porque somente o culto genuíno e profundo pode motivar adequadamente a igreja para assumir sua vocação missionária. E termina, porque o alvo último e o fim principal de toda humanidade é glorificar a Deus e gozá-Lo para sempre. E na obra missionária, procuramos levar as nações à mesma alegria e exaltação que carateriza o nosso culto a Deus. Portanto, quando afirmamos que a obra missionária é a prioridade penúltima na igreja não estamos diminuindo a sua importância. Estamos meramente fazendo o que devemos, maximizando a tarefa de glorificar a Deus e gozá-Lo para sempre. E assim, enxergamos a verdadeira importância da obra missionária, certamente acima de outras atividades na igreja, isto é estender e diversificar, e assim intensificar o culto que glorifica e goza Deus entre todas as nações da terra (Apocalipse 5.9-10; 7.9-10).
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1. As idéias principais que se seguem são grandemente fruto da minha leitura recente do livro de John Piper, Let the Nations be Glad! The Supremacy of God in Missions, Baker Books, 1993.
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