A Vida de uma Princesa Árabe

Autor: Hélia Pereira Domingos, 2002-06-01
UNIVERSIDADE LUSÓFONA DE HUMANIDADES E TECNOLOGIAS

Curso de Ciência das Religiões

Departamento de Ciências Sociais e Humanas

História e Fenomenologia das Religiões IV

Docente: Prof. Mário Botas

“A Vida de uma Princesa Árabe”

Hélia Pereira Domingos

LISBOA

Junho 2002

Índice

I – Introdução .

II – O Retracto da Arábia Saudita e alguns aspectos pertinentes do Islamismo

III – Ser Mulher…

Uma História Verídica

IV – Conclusão

V – Bibliografia

Introdução

Se Deus não quisesse que as mulheres empregassem a Razão, nunca lhes teria dado nenhuma, pois Ele nada faz em vão. E se elas fazem uso da sua Razão, certamente será para a empregarem nos mais nobres objectos e em matérias das maiores consequências, portanto na religião.

A forma como as mulheres são tratadas no seio das suas tradições religiosas deverá ser encarado no contexto mais alargado do fenómeno quase universal de homens sendo vistos como superiores às mulheres. Existem muitos factores culturais que são independentes de ensinamentos religiosos específicos, mas que têm sido absorvidos pelas religiões. Por exemplo, em determinadas sociedades, o nascimento de um rapaz é acolhido com mais entusiasmo do que o nascimento de uma rapariga. Por vezes as actividades dos homens são tidas como muito mais importantes que as das mulheres, mesmo que numa outra sociedade essas mesmas actividades pudessem ser executadas por mulheres. A força física dos homens e a sua aptidão para protegerem as suas famílias contra o perigo físico, providenciaram a oportunidade, ainda que inconsciente, para proclamar que as restrições ao traje, ao comportamento e à liberdade de associação das mulheres são para sua “protecção”.

Existem, de facto, em todas as religiões aspectos positivos e negativos, quanto ao papel e estatuto das mulheres.

Ao longo dos tempos a mulher tem assistido na “pele” a uma luta de direitos, quer sociais, culturais ou religiosos, os quais valorizam ou não o seu papel na sociedade.

Se considerarmos a condição das mulheres antes do advento do Profeta Muhammad, constatamos que, de uma forma geral, era miserável, nenhuma religião lhes permitia a igualdade, nenhuma religião lhes deu uma parte na propriedade dos seus familiares e maridos. A mulher era vista como um fardo indesejado, uma fonte de desgraça e humilhação para a família. As mulheres eram universalmente tratadas como bens e brinquedos nas mãos dos homens. Elas nunca eram vistas como parte integrante do casamento. Podiam ser obtidas num momento de prazer e rejeitadas de uma forma puramente caprichosa, apenas o coração e a bolsa podiam colocar limitações. As mulheres não tinham uma posição independente, não possuíam qualquer propriedade, não tinham qualquer direito a herança. Se tivermos em conta o caso particular da Arábia, constatamos que, mesmo antes do Profeta Muhammad, a condição da mulher era simplesmente miserável, de tal forma que muitas crianças recém-nascidas sendo do sexo feminino eram enterradas vivas. Elas não eram vistas como pessoas humanas, com efeito, na Arábia, a mulher permanecia algures no esquecimento entre o mundo animal e a humanidade. De tal forma que no relato verídico de uma princesa árabe pode-se ler: ”As mulheres do meu país podem estar escondidas pelo véu e firmemente controladas pela nossa rígida sociedade patriarcal, mas a mudança virá, pois o nosso sexo está farto da restrição de costumes. Ansiamos pela liberdade.”

Sultana, é o nome emprestado a uma jovem princesa saudita, membro da família real da casa de Al-Saud. Tendo vivido debaixo de uma restrição e angústia, decidiu dar vida às palavras escritas no seu diário e fazê-las ouvir no mundo inteiro. Então, sob o título de Sultana, surgiu o relato verídico de uma princesa. As poucas páginas por mim folheadas sensibilizaram-me. Mas, foram as aulas de História e Fenomenologia das Religiões, as quais foram dedicadas ao Islamismo, que me motivaram para uma leitura mais aplicada. Foi então, devidamente inserido na disciplina de História e Fenomenologia das Religiões IV, leccionada pelo professor Mário Botas, que nasceu este trabalho. A Vida de uma Princesa Árabe visa a abordagem do papel da mulher no Islamismo, tendo como base a história de Sultana. Assim, neste trabalho serão apresentadas algumas características fundamentais da Arábia Saudita, bem como da Religião Islâmica, no entanto o foco principal será o estatuto da mulher naquela realidade, tendo por base o relato verídico de Sultana.

O Retracto da Arábia Saudita e alguns aspectos pertinentes do Islamismo

O nome oficial da Arábia Saudita é Reino da Arábia Saudita, o qual tem uma superfície de, aproximadamente, 2 149 690 Km2 e tem cerca de catorze milhões de habitantes. É governado pela Monarquia absolutista dominada pela família Saud, na qual o rei nomeia um Conselho de Ministros para assisti-lo na formulação da política.

No que diz respeito à religião, a separação efectuada aquando o grande cisma dos anos 655-661, conhecida pelos muçulmanos como a “tormenta maior”, a qual resultou na separação do Islão em três ramos (sunitas, kharejitas e xiitas) está na origem da actual repartição geográfica dos muçulmanos . No Reino da Arábia Saudita 95% da população professa o Islamismo sunita e 5% o Islamismo xiita, concentrando-se este na Província Leste. O Islamismo xiita é uma das maiores seitas do Islamismo. Os líderes xiitas são chamados Imãs, os quais possuem extrema autoridade espiritual sobre os seus súditos e buscam manter uma interpretação do Corão estritamente severa e autoritária. Quanto aos sunitas, esse grupo é considerado a principal corrente tradicionalista do Islamismo. Do ponto de vista político, os sunitas são radicalmente diferentes dos xiitas. Enquanto estes consideram o governo como uma instituição de Alah, a fim de estabelecer uma teonomia na Terra, aqueles acreditam que a fé islâmica é para ser vivida dentro do contexto dos governos terrenos existentes.

Neste contexto, pretendo salientar alguns aspectos pertinentes que nos permitem conhecer esta que é considerada a segunda maior religião do Mundo.

Em nome do Deus Alah, muitas pessoas abraçam o Islão. Esta palavra árabe significa “submissão” e contém em si um significado muito forte. Percebe-se na raiz do nome algo fundamental nesta religião, o homem deve entregar-se a Deus e submeter-se à Sua vontade em todas as áreas da vida. Trata-se da condição para se ser muçulmano, palavra árabe que tem a mesma raiz que Islão.

Não há Deus além de Alah; Maomé é o profeta de Deus. Esta frase, muitas vezes repetida dentro dos círculos muçulmanos, é o fundamento teológico da religião.

O Islão, como religião, não compreende apenas uma componente espiritual, mas abrange todos os aspectos da vida humana e social. A interpretação da lei, o direito, sempre desempenhou um lugar relevante na história do Islamismo.

O fundador do Islão foi Maomé, também designado por Mohammad ou Mohammed. Ele foi escolhido por Deus para levar a Sua mensagem de paz, isto é, o Islão à humanidade. Maomé nasceu no ano 570 d.C. em Meca, na Arábia. A mensagem do Islão foi-lhe confiada quando tinha 40 anos de idade A revelação recebida ficou conhecida por Corão, este o livro sagrado dos muçulmanos.

Embora não existam textos escritos pelo próprio profeta, os seus primeiros seguidores reuniram os seus ensinos em tradição oral. O Corão é formado por 114 capítulos denominados por suratas. Cada um deles é dividido em quatro secções: Título; a bismillah ou oração; uma referência ao local onde a surata foi revelado, se em Meca ou em Medina; cartas fawatih as quais se acredita que tenham um significado oculto.

Para a religião Islâmica, Deus é o todo poderoso, absoluto. Para o homem tudo está previsto ou marcado, Deus ordena tudo e não há mais liberdade. Se eu sou rico ou pobre é porque Deus quer. Deus é o soberano Juiz, manda os bons para o Céu onde há o jardim das delícias, tudo de bom está ali, e manda os maus para o inferno onde existe o vento que queima, escuridão e fumaça e há também um juízo final onde virá a restauração do Islão, em que todos serão Islamitas. Em Anjos e Demónios, o Islamismo acredita que são seres puramente espirituais. A ideia de Guerra Santa surgiu quando Maomé se encontrava em Medina, lugar para onde tinha fugido e, portanto, organizar um exército, mas para isso era preciso dinheiro. Foi aí que surgiu o arcanjo Gabriel e lhe disse para assaltar umas caravanas. Sendo bem sucedido nos ditos assaltos, viu nisso a aprovação divina. Daí a promessa: quem morre nessa Guerra Santa vai directo para o céu. Actualmente é concebida como uma guerra espiritual.

O lugar de oração denomina-se Mesquita, onde não existem imagens, nem cadeiras para se sentarem, apenas existem tapetes, também não existem instrumentos musicais. Ao entrar na Mesquita o fiel descalça os sapatos e faz a oração de cocaras, chegando a encostar a cabeça no tapete. Muezin, é aquele que do alto convida, em voz alta, os fieis à oração. Não existe clero hierarquizado, nem papa, nem concílio. Apenas existe o director das orações publicas.

As cinco principais obrigações religiosas são :

1. A profissão de fé: Alah é Deus e Maomé o seu profeta.

2. Recitar cinco vezes por dia uma oração, voltado para Meca. Para isso tem que lavar as mãos, os braços até aos cotovelos e os pés até aos tornozelos.

3. Ofertar esmolas aos pobres. Alguns muçulmanos haviam instituído uma determinada taxa para os pobres, é considerada uma taxa de salvação.

4. Jejuar no mês de Ramadão, desde o nascer até ao pôr do sol.

5. Peregrinação a Meca: têm obrigação de, pelo menos, uma vez na vida fazer essa peregrinação. São sete quilómetros, partem para Muzdalifa passando cerca três dias e depois voltam para Meca, onde cumprem quatro cerimónias: dar sete voltas, no inicio e no fim da visita, em redor da Casa Santa; beijar a pedra negra; beber a água Zenzem; ir e voltar correndo entre as duas colinas as-Safa e al-Marva.

Ser Mulher…

Uma história verídica.

A viver na realidade do Reino da Arábia Saudita, Sultana, descendente directa do rei Abdul Aziz, viveu na pele a infelicidade de ter nascido mulher, uma vez que os filhos varões eram muito desejados. A sua própria mãe vivia cada gravidez aterrorizada, rezando sempre para que o fruto que carregava no ventre fosse um filho macho.

Apesar da sociedade humana apressar-se a ir ao encontro do saber e da mudança na Terra, dos antepassados de Sultana pouco mudou. É certo que surgiram edifícios modernos e os cuidados de saúde até avançaram, porém a consideração pelas mulheres e pela sua qualidade de vida continua a ser alvo de esquecimento. No entanto não podemos atribuir à fé islâmica a responsabilidade pela posição subalterna que a mulher ocupa naquela sociedade. Contudo, tal como sucede noutras religiões, os homens têm interpretado o Corão à sua maneira e adaptado o seu contexto aos seus interesses e conveniências, em vez de seguirem as palavras e o exemplo do profeta.

Segundo percebi, há quatorze séculos atrás, o Islão tornou as mulheres igualmente responsáveis perante Deus, glorificando-O e adorando-O, sem qualquer limite para o seu progresso moral. O Islão também estabeleceu a igualdade da mulher em relação ao homem. No capítulo intitulado “As Mulheres”, o Corão refere:

“Homens! Temei ao vosso Senhor, que vos criou a partir de uma só pessoa, dela criou a sua companheira e de ambos gerou muitos homens e mulheres. Temei a Deus, em nome de quem vos interrogais; respeitai a consanguinidade. Deus está-vos observando.”

Tendo em vista que homens e mulheres descendem da mesma natureza, eles são iguais na sua humanidade. As mulheres não são más na sua essência (como algumas religiões acreditam), assim como os homens

também não o são. Da mesma forma, não existe superioridade entre os sexos porque seria uma contradição do princípio da igualdade.

Apesar do Corão ter uma “palavra amiga” para com as mulheres, não há nada que os homens não façam nem tenham feito, na terra da Sultana, para assegurar o nascimento de uma prole masculina e não feminina. O valor de uma criança na Arábia Saudita ainda é medido pela ausência ou presença do órgão reprodutor masculino. Por exemplo, na Arábia Saudita, o orgulho da honra de um homem tem por base as suas mulheres, como tal, têm que fortalecer a sua autoridade e supervisão relativamente à sexualidade das suas mulheres ou, então, enfrentar a vergonha pública. Convencidos de que as mulheres não têm controlo sobre os seus próprios desejos sexuais, torna-se, assim, essencial que o homem guarde cuidadosamente a sexualidade da mulher. Este total controlo nada tem a ver com amor, mas com o medo de que a honra masculina seja denegrida.

A autoridade de um homem saudita não tem limites, a sobrevivência da sua família depende exclusivamente da sua vontade.

“Na nossa casa ele é a autoridade máxima.”

Todos os rapazes são ensinados, desde muito novos, que as mulheres pouco valem, que existem apenas para seu conforto e conveniência. “As mulheres do meu país são ignoradas pelos seus pais, desprezadas pelos irmãos e maltratadas pelos maridos. Este círculo é difícil de quebrar, pois os homens que impõem esta vida às mulheres garantem a própria infelicidade conjugal.” As mulheres vivem momentos de tristeza e angústia, mas, acredito que os homens não conseguirão ser felizes no meio de tanta infelicidade. Apesar de procurarem sucessivos casamentos, ao tratarem as mulheres como escravas, como propriedade sua, os homens acabam por ser tão infelizes como as mulheres que dominam. Eles próprios tornam o amor e o verdadeiro companheirismo inacessível a ambos os sexos. Eles nem se apercebem que a felicidade pode estar perto, no seu próprio lar, com a sua própria mulher.

“A história das nossas mulheres está enterrada por detrás do véu negro do secretismo. Nem o nosso nascimento, nem o nosso falecimento fica lavrado em qualquer registo oficial. Embora o nascimento de filhos varões seja documentado em registos familiares ou tribais, o das raparigas não consta em lado nenhum. A emoção que vulgarmente se exprime diante do nascimento de uma menina é a de desgosto ou vergonha.”

Ao contrário de tantas mulheres sofridas, residentes na sua terra, Sultana estava decidida a enfrentar tudo e todos para alcançar a liberdade. As mulheres acabam por acomodar-se à situação: “Todas as mulheres aprendem, desde muito cedo, a manipular as situações em vez de as enfrentar.” No entanto, Sultana estava disposta a lutar.

Na história apresentada, a princesa árabe, fez questão de descrever a forma como as mulheres se devem apresentar em público e conta que na Arábia Saudita, o aparecimento da primeira menstruação significa que é chegada a hora de escolher o primeiro véu e abaaya com o maior dos cuidados. Assistimos, assim, a uma realidade de menina tornada mulher. Entra na loja menina e sai transformada em mulher, velada, a partir desse dia. A vida das jovens moças muda em fracções de

segundos. No dia em que chegou a sua vez, Sultana, a menina rebelde da casa, escondeu do pai, não por muito tempo, a realidade que vivia, de forma a adiar o seu estatuto de mulher.

Se uma mulher saudita não se vestir decentemente e apresentar-se de qualquer forma em público, correrá o risco de ser perseguida por qualquer homem perverso, assim, deve colocar o vestuário islâmico, ou seja um hijab, neste sentido o Corão refere:

“Profeta! Dize a tuas esposas, tuas filhas e às mulheres crentes, que cinjam os véus. Esse é o modo mais simples de serem reconhecidas e de não serem molestadas. Deus é indulgente, misericordioso.”

Noutro versículo diz:

“Dize ás crentes que baixem os olhos, ocultem as suas partes e não mostrem mais do que aquilo que se deve ver. Cubram o seu peito com o véu! Não mostrem os seus encantos a não ser aos seus esposos. Que estas não meneiem os pés de maneira a deixarem ver o que entre os seus adornos ocultam.”

No entanto, “a necessidade de moderação é a mesma, tanto para o homem como para a mulher. Todavia, devido à diferenciação dos sexos, dos temperamentos e da vida social, uma maior reserva é requerida da mulher, mais do que do homem, especialmente no que diz respeito à vestimenta e ao cobrimento do peito.”

Obviamente que o uso do vestuário também concede beleza e alguma graça, bem como agasalho contra os efeitos climatéricos. Porém, a principal finalidade do vestuário das mulheres muçulmanas é cobrir as

partes do corpo que devem estar mais resguardadas. A mulher muçulmana deve cobrir-se com um lenço e manter a sua cabeça e peito velados. No entanto, esse lenço ou véu não poderá ser de um tecido transparente que permita aparecer o seu cabelo. O véu tem como objectivo cobrir os pontos de beleza da mulher. No entanto, o uso do véu torna a mulher árabe tentadora e desejável.

Um facto marcante na vida de Sultana, foi o casamento da sua irmã Sara e que julgo interessante mencionar alguns aspectos. Por decisão do próprio pai, Sara iria casar com um homem de 62 anos de idade, esta seria a sua terceira esposa. O noivo foi eleito mediante a sua elevada condição social e riqueza. Uma menina cheia de sonhos e projectos estava sendo sacrificada por um casamento indesejado, planeado pelo chefe da família. A sua tristeza era visível e a sua angústia marcante. Todo o sofrimento de Sara foi vivido também por Sultana.

Segundo percebi, na Arábia Saudita, a escolha de uma rapariga para um casamento é determinada por vários factores, de entre os quais se destacam: o apelido da família, a fortuna da mesma, a perfeição física da moça e a sua beleza. E a escolha do noivo, apesar de ser feita pelo pai da moça, é tido em conta a posição social e a riqueza do “candidato”, não importando a idade, pode até ser mais velho que o próprio pai da rapariga, como foi o caso de Sara.

De facto, é inconcebível que realidades como esta ainda sucedam nalgumas culturas. Porém, parece que a Arábia Saudita é mesmo um caso muito especial, pois, através de leituras efectuadas constatei que para os muçulmanos de uma maneira geral, o casamento é uma união legítima entre um homem e uma mulher para toda a vida e por isso, não tem como objectivo uma mera ligação temporária. Daí o facto de no Islão o “mutah”, ou seja casamento temporário, ser proibido. Assim, o casamento no Islão é partilhado pelas duas metades da sociedade, e os seus objectivos, para além de perpetuar a vida humana, visam o bem-estar emocional e a harmonia espiritual. O casamento tem como fundamentos o amor e a misericórdia. Entre os vários versículos contemplados a este respeito, quero destacar:

“Entre os Seus sinais está o de haver-vos criado companheiras da vossa mesma espécie, para que com elas convivais; e colocou amor e piedade entre vós. Por certo que nisto há sinais para os sensatos.”

Esta parece ser a definição correcta da relação existente entre marido e mulher. Através do casamento espera-se que encontrem a felicidade na companhia um do outro, não limitados pela relação sexual, mas, também, pelo amor e misericórdia. Tal descrição inclui carinho, consideração, respeito e afecto. O aspecto, talvez mais relevante, neste sentido, será a evidência do cuidado e respeito mútuo na relação matrimonial. O Alcorão refere-se às esposas de uma forma muito particular “Elas são vossas vestimentas e vós sois delas.” É interessante notar a analogia feita neste versículo, entre a vestimenta e a relação do casal. A propósito desta passagem li o seguinte: “Homens e mulheres são como vestimentas uns para os outros; são para o apoio mútuo, o conforto mútuo, a protecção mútua, adaptados um ao outro como uma vestimenta se adapta ao corpo. Uma vestimenta tem o condão tanto de embelezar como de abrigar.” Por outras palavras, podemos dizer que assim como o vestuário fornece calor, protecção, elegância e até decência, assim, também, o marido e a esposa oferecem mutuamente intimidade, conforto e protecção para que não seja cometido adultério, ou outro tipo de ofensa. Através destes princípios, relativos ao casamento, constatamos que estes vão ao encontro de um dos mais importantes objectivos dos regulamentos que orientam o comportamento e as relações humanas, que é o preservar da unidade familiar, de tal forma que a atmosfera da felicidade, amor, misericórdia e consciência de

Deus, possa desenvolver e florescer de forma benéfica tanto para o marido, como para a esposa, bem como para os filhos.

De facto o casamento tem um papel fundamental na vida de um homem e de uma mulher, mas não quando é imposto e obrigado por alguém.

O desgosto e infelicidade de Sara conduziu-a a tentar o suicídio, tendo, escapado. Sara ansiava pelo divórcio. E relativamente a este aspecto, o Islamismo concede aos homens o direito de se divorciarem sem qualquer inquirição relativamente às razões do mesmo. No entanto, a mulher tem grande dificuldade em fazê-lo. Porém, no caso específico de Sara e uma vez pertencentes à família real e como existiam interesses por trás de todo aquele casamento, o próprio marido de Sara não queria, de forma alguma, que as relações que mantinha com o pai da moça fossem prejudicadas, tento, portanto, concedido o divórcio.

A realidade da vida de Sara foi, sem duvida, marcante para Sultana, tendo acompanhado de perto toda o sofrimento da irmã, decidiu tomar uma posição: “Nós mulheres, devíamos passar a ter voz activa na decisão final de actos que viessem a alterar a nossa vida permanentemente”.

A partir dessa situação, Sultana, determinou criar um objectivo máximo na vida, lutar pelos direitos da mulher no seu país, para que esta pudesse viver com a dignidade e a realização pessoal que constituem o direito inato do homem.

Um outro aspecto a considerar são as Mesquitas. Na Arábia Saudita, existem mesquitas em todos os bairros. O Governo deu prioridade máxima à colocação de centros de oração próximos dos homens muçulmanos. Como as orações são feitas cinco vezes por dia, o homem que está perto de uma Mesquita tem mais facilidade em realizá-las na totalidade. Embora as orações possam ser feitas em qualquer lugar, desde que a pessoa se vire na direcção de Meca, ainda assim é preferível ter acesso a uma Mesquita. Relativamente às mulheres, estas estão proibidas de entrar nas Mesquitas. Apesar do Profeta Maomé não ter proibido as mulheres de orarem publicamente nas Mesquitas, declarou que era conveniente que o fizessem na privacidade dos seus lares. Como resultado, na Arábia Saudita, a nenhuma mulher foi permitida a entrada num templo de oração. A este respeito, na memória de Sultana ficou marcado o facto do seu pai sempre se fazer acompanhar do filho para a oração e ela fitava aqueles passos com alguma tristeza. Sultana afirma: “Desde os seis anos que Ali era incentivado a fazer as cinco orações diárias. Senti a respiração acelerar ao relembrar a dor que sentia ao ver o meu pai pegar na mão de Ali e levá-lo, orgulhosamente, pela imponente entrada da mesquita, enquanto eu ficava, na minha condição inferior de membro do sexo feminino, na berma da estrada a olhar para eles com mágoa e raiva.” Neste âmbito julgo pertinente colocar a questão: Será, de facto, justo, proibir a entrada de mulheres nas Mesquitas? No que li e pesquisei e até com pessoas que conversei parece que a resposta é unanime: não. Não é ilícita a entrada de mulheres na mesquita. De facto, o Profeta Maomé instruiu os homens a não impedir a entrada de mulheres na mesquita. Porém, a sua entrada tem que obedecer a alguns requisitos: elas têm que estar inteiramente envolvidas no hijab e não se podem perfumar. É fundamental que as mulheres compareçam nas funções comunitárias da mesquita, sejam palestras, reuniões de estudo ou outras sessões semelhantes, pois esta é uma das poucas vezes em que a mulher testemunha como os muçulmanos interagem entre si. Estas funções beneficiam as mulheres, permitindo-lhes dar e receber, aplicar as normas adequadas e ajudar na manutenção da casa de Deus. Como tal, a permissão da oração das mulheres na mesquita é aceitável. No entanto, a questão que se pode colocar é onde será o melhor local para as orações, na mesquita ou em casa? Segundo parece a oração da mulher é preferível que seja feita em casa. Pois, seria muito difícil para as mulheres fazerem as orações obrigatórias na mesquita, cinco vezes ao dia. Exigiria que preparasse os filhos, independentemente da quantidade, e levá-los também à mesquita. Certamente que o marido não poderia ficar em casa a tomar conta das crianças, porque a oração congregacional é obrigatória para os homens. Portanto, toda a família seria obrigada a deslocar-se à mesquita cinco vezes por dia. Por outro lado, no tempo em que estivessem na mesquita as mulheres teriam que tomar conta das crianças e desta forma perdiam o tempo da oração. Assim, as mulheres são abundantemente recompensadas por fazerem as suas orações em casa.

Sultana apresenta um outro relato, não menos importante que os já mencionados. Em Agosto de 1990, recebia a notícia de que dois dos seus vizinhos travavam uma luta de morte num país situado mesmo do outro lado da fronteira, o Kuwait. Poucos sauditas, até mesmo os membros da realeza envolvidos em negociações entre o Kuwait e o Iraque, tinham acreditado que Saddam Hussein tivesse invadido o Kuwait. Tendo-se instalado a confusão e reinando o caos completo, Sultana, apesar de todo o aparato, ficou entusiasmada ao saber que existiam mulheres Kuwaitianas a conduzir e a andar de rosto descoberto, guiando os carros nas estradas da sua terra, rumo às ruas da capital. A vida dessas mulheres fora facilitada, em total contraste com o pesado fardo machista que Sultana e suas “companheiras” foram obrigadas a suportar. Como ansiavam pelos direitos assumidos por aquelas mulheres “donas da liberdade”. Nenhum saudita imaginaria ver mulheres de farda militar a defender o último bastião do domínio machista que é a Arábia Saudita.

A guerra instalada e a existência de mulheres-soldados, suscitou grande entusiasmo no coração de Sultana. A liberdade vivida por aquelas mulheres escapava à capacidade de entendimento das mulheres árabes. Sultana desabafa: “Pouco sabíamos das mulheres-soldados americanas, pois os nossos censores cortavam todas as notícias que chegassem à Arábia Saudita sobre mulheres que fossem senhoras do seu próprio destino. Os nossos modestos objectivos englobavam apenas a exposição do rosto, guiar e trabalhar. A nossa terra acolhia agora elementos do nosso sexo perfeitamente preparados para enfrentar homens na batalha.”

A mente daquelas mulheres não parava, cada gesto, cada movimento das mulheres “livres” despertava os sonhos adormecidos pela força machista, “Nós mulheres árabes, vivíamos num turbilhão emocional. Por um lado, odiávamos todas as mulheres estrangeiras, tanto kuwaitianas como americanas, que estavam na nossa terra, por outro, as primeiras alertavam-nos com a demonstração de desafio aos séculos de supremacia masculina.”

Toda aquela realidade excitou o coração e a alma das mulheres sauditas e despertou-as para a sua verdadeira condição. “No passado, poucas mulheres se tinham atrevido a exprimir o seu desejo por uma reforma na Arábia Saudita islâmica, pois a esperança de êxito era muito diminuta e as penalidades imensamente severas para quem punha o status quo em causa. Afinal de contas, o nosso país é o berço do Islamismo: nós, Sauditas, somos os “guardiões da fé”. Para disfarçarmos a vergonha que sentíamos pela repressão a que nos submetemos, falámos orgulhosamente às irmãs kuwaitianas da nossa herança única: nós mulheres sauditas, erguemos bem alto os símbolos da fé muçulmana em todo o mundo. Até que, de repente, as mulheres sauditas da classe média quebraram as algemas. Enfrentaram os fundamentalistas de cabeça erguida e pediram ao mundo que, quando restituíssem a liberdade aos Kuwaitianos sitiados, também as libertassem!”

As mulheres decidiram, então, derrubar a primeira das barreiras intransponíveis , reclamaram o direito de conduzir.

De facto, todos os acontecimentos relacionados com aquela guerra serviram para derrubar a confiança na lendária mudança social da mulher da Arábia Saudita. Poderá parecer ridículo mas após a guerra, Sultana conta-nos que: “Terminada a guerra, os nossos homens puseram-se a rezar com grande diligência, pois tinham sido salvos da ameaça de exércitos invasores e de mulheres livres.” Dá vontade de perguntar qual das duas ameaças os aterrorizava mais?

Assim, a Guerra do Golfo para libertar o Kuwait acabou por, transformar –se, também, numa guerra conflituosa nitidamente crescente entre homens e mulheres sauditas, onde as mulheres viram a esperança de mudanças sociais, os homens sentiram o perigo de qualquer alteração numa sociedade que pouco difere daquela que se tem mantido desde há dois séculos. No entanto, maridos, pais e filhos não se prestaram a desafiar as forças religiosas radicais em prol dos direitos da mulher. A causa da liberdade para a mulher na Arábia perdeu o fulgor no recuo a que se viu obrigada por parte dos religiosos extremistas, pois a chegada de tropas estrangeiras desencadeara o seu poder. A promessa de endurecimento dos religiosos espalhou o medo naquele país. Porém, tristemente, em 1992, Sultana, juntamente com outras mulheres sauditas, foi forçada a recuar para o fosso do passado.

Liberdade era o coro entoado pelas mulheres sauditas. Liberdade para guiar, para não usar véu são pequenos grandes sonhos, perdidos no meio de preocupações mais importantes para a vida, como é o caso da ameaça crescente de extremistas religiosos regionais. Quando voltará a surgir, para as mulheres da Arábia, outra oportunidade com tão grande potencial para mudanças sociais como uma guerra?

Ainda que existam muitos aspectos positivos na sociedade saudita, a vida não poderá ser celebrada até que a mulher tenha liberdade de viver sem temor.

Conclusão

Pelo exposto anterior posso concluir que, de facto, as muitas diferenças entre as sociedades muçulmanas acabam por construir generalizações muito simplistas. Existe um vasto espectro de posturas relativamente à condição da mulher no mundo muçulmano actual. Estas posturas diferem de uma sociedade para outra e dentro de sociedade individual. Porém, podemos discernir alguns traços gerais. Quase todas as sociedades muçulmanas, em maior ou menor grau, desviaram-se dos verdadeiros ideais do Islão, no que concerne à posição da mulher.

Estes desvios, na maior parte, direccionam-se para um ou dois sentidos. O primeiro, é mais conservador, restrito e orientado pelas tradições, enquanto que o segundo é mais liberal, de certa forma influenciado ou orientado pelos costumes ocidentais. As sociedades que se encaminharam para o primeiro sentido tratam as mulheres de acordo com os costumes e tradições herdados dos seus ascendentes. Estas tradições, normalmente, privam as mulheres de muitos direitos garantidos pelo próprio Islão. Para além de que, as mulheres são tratadas mediante padrões que se diferem dos homens. Esta discriminação envolve a vida de qualquer mulher. Elas são recebidas com menos alegria ao nascer do que um menino, são menos incentivadas a ir à escola, podem ser privadas de qualquer direito na herança da família, estão sob contínua vigilância, actuam pouquíssimo nos assuntos familiares ou nos interesses comunitários, entre outras discriminações a que estão sujeitas.

Por outro lado, existem sociedades muçulmanas ou certas classes dentro de algumas sociedades, que foram varridas pela cultura e pelo estilo de vida Ocidental. Estas sociedades, muitas vezes, tentam imitar, ainda que de forma inimaginável, tudo o que receberam do ocidente e acabam por adoptar os piores frutos da nossa civilização, caindo noutro extremo. Nestas sociedades, a prioridade máxima na vida de uma mulher “moderna”, passa a ser, o realce da sua beleza física. Consequentemente, o seu esforço é mais para compreender a sua feminilidade do que, propriamente, preencher a sua humanidade.

Mas porque será que as sociedades muçulmanas se desviaram dos ideais do Islão? Parece-me que não existe uma resposta fácil. De facto, também, não estou suficientemente habilitada para responder à questão. No entanto, é certo que as sociedades muçulmanas desviaram-se, há muito tempo, dos preceitos islâmicos relativamente a diversos aspectos da sua vida. Existe, de facto, uma nítida diferença entre o que os muçulmanos supõem acreditar e o que de facto é praticado.

A vida de uma princesa árabe ofereceu uma perspectiva realista duma sociedade em sofrimento. Através da vida de Sultana percebi que enquanto as sociedades modernas se esforçam por melhorar as condições de vida de todos os povos, existem mulheres, que continuam a fazer face a uma autêntica ameaça de tortura ou morte sob o domínio primitivo do sexo masculino. As costuras do manto da escravatura feminina são cosidas com a linha forte da vontade masculina em se agarrar ao seu domínio histórico sobre as mulheres. “As mulheres do meu país podem estar escondidas pelo véu e firmemente controladas pela nossa rígida sociedade patriarcal, mas a mudança virá, pois o nosso sexo está farto da restrição de costumes. Ansiamos pela nossa liberdade pessoal.” – afirma Sultana.

As mulheres árabes têm vivido verdadeiros tempos de luta, desespero e dor. Porém, ainda lhes resta uma esperança, alcançar a liberdade.

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