Substância Católica e Princípio Protestante: Tillich e o diálogo inter-religioso

Autor: John Dourley




Tradução de Jaci Maraschin

          I. Problemática: dúvida e desenvolvimento na última fase da vida de Tillich

Os escritos de Tillich desde 1957 até sua morte em 1965 dão testemunho da fascinante luta pessoal travada entre lealdade às posições teológicas anteriores assumidas e sua dúvida a respeito de possíveis desenvolvimentos. Esse conflito reflete-se nos trabalhos realizados com Mircea Eliade na Universidade de Chicago, no profundo diálogo mantido com o mestre Zen, Hisamatsu Sin’Chi em 1957 e na sua visita ao Japão em 1960. Sua perspectiva parece ampliar-se em diversas conferências menores mas nem por isso menos significativas que pronunciou nessa época em contraste com as posições fundamentais de sua teologia anterior[1]. Entretanto, na mesma época em que essas novas posições começavam a ser moldadas e em visível tensão com elas, Tillich se apegava às antigas perspectivas conservadoras ao escrever o volume final de sua Teologia Sistemática. Terence Thomas observou que "fora do sistema Tillich parece abandonar boa parte do que defendera dentro do sistema"[2]. Os últimos escritos de Tillich nos levam a indagar se estava saindo do "círculo teológico" e, portanto, da compreensão que tinha do papel do teólogo cristão[3]. Esta questão permanece mesmo em face da continuidade manifesta do terceiro volume da Teologia Sistemática com muitas das posições fundamentais de seu pensamento e espírito anteriores.

Se, de fato, Tillich transcende certas feições centrais de sua teologia anterior nesses escritos ocasionais, então as seguintes questões podem ser levantadas. Teria o Tillich dessa última fase afirmado ainda o evento Cristo enquanto a irrestrita "preocupação suprema" ? Se não, não teria sido necessário modificar a norma que estabelecera para a fé cristã bem como o papel do teólogo cristão? Os escritos anteriores de Tillich afirmavam que tanto a fé cristã como o teólogo cristão definiam-se claramente pela aceitação do evento Cristo enquanto " revelação final"[4] na qualidade de objeto da preocupação suprema[5]. A eclesiologia, a cristologia e a missiologia de Tillich seriam profundamente afetadas pelas possíveis respostas a tais questões. Se o evento Cristo fosse relativizado em face de outras manifestações do essencial na existência, tanto na forma secular como na religiosa, seria ainda possível atribuir ao evento Cristo o mesmo caráter de supremacia e admitir ainda que a igreja continuasse a ser a sua mais perfeita manifestação? Qual seria, depois disso, o papel dos missionários? Examinaremos, a seguir, elementos de continuidade e de descontinuidade entre os primeiros escritos de Tillich e os posteriores, para concluir com algumas sugestões a respeito dos rumos e dos recursos que o pensamento do último Tillich contribuem para o diálogo atual e futuro entre as religiões.

          II. Elementos de Continuidade entre as Duas Posturas

          1. Substância católica da religião: sacramentalismo universal

Tillich utiliza como base de sua tipologia da religião o apoio da ontologia e da epistemologia para a elaboração de seu sacramentalismo universal. Paradoxalmente, esse tipo de sacramentalismo é mais profundo e amplo do que o pensamento sacramental da tradição da comunidade cristã no Ocidente, isto é, do catolicismo romano. O sacramentalismo de Tillich supera as posições da maioria das comunidades cristãs porque orienta sua metafísica, ontologia e epistemologia a partir de forte panteísmo. Mas ele só vai reconhecer esse fundamento na conclusão do terceiro volume de seu sistema e, assim mesmo, sob o disfarce de "pan-en-teísmo"[6], que na época começava a ser aceito em alguns círculos teológicos cristãos.

Essa metafísica panenteísta fundamenta o pensamento de Tillich a respeito de participação. Sem esse pressuposto seu conceito de participação perde o sentido. A partir daí ele afirma que todos os existentes participam na sua verdade essencial presente no fundamento divino de seus seres. Seu sacramentalismo universal possibilita-lhe afirmar que o fundamento divino do ser pode se mostrar em qualquer existente sem danificar sua integridade. O divino é, pois, o fundamento das entidades naturais. Por isso pode aparecer, como tem aparecido, em todas as formas da natureza sem viola-las. Sem a presença panenteística inerente à natureza, "… o fundamento do ser destruiria a estrutura do ser; Deus ficaria dividido em seu próprio ser…"[7]. Quando a natureza torna-se auto-consciente na natureza humana, a humanidade se dá conta naturalmente do divino em suas profundezas[8]. A mente humana é, neste sentido, um sacramento por meio do qual o divino aparece[9]. Neste contexto Tillich vai encontrar a verdade contínua do argumento ontológico a respeito da consciência imediata sacramental do divino naturalmente presente nas profundidades da mente enquanto seu fundamento. A partir desse fundamento o divino força a busca da humanidade da verdade essencial em Deus. Tal consciência imediata é a base inabalável que a humanidade tem para a possibilidade e necessidade da experiência religiosa. Escreve: " A questão de Deus é possível porque a consciência de Deus já está presente na questão de Deus"[10]. A descrição que ele faz da humanidade que não apenas pode mas deve buscar a natureza perdida no infinito constitui contribuição importante e definitiva à validação da experiência religiosa enquanto plenamente humana e revestida de imenso poder tanto para a promoção como para a destruição da vida. Este ponto de vista Tillich manteve até o fim de sua vida. É provável que tal atitude não pudesse ser superada pelo menos nos limites do que procurava afirmar e da maneira como conduziu tal afirmação.

Esse panenteísmo também funciona na sua compreensão de teonomia. Para entender a presença do divino no humano em termos de teonomia, Tillich, como de costume, entra em duas batalhas ao mesmo tempo. De um lado, seu panenteísmo ajuda-o a combater a imposição heterônoma da verdade religiosa, seja na forma de revelação recebida de qualquer dos deuses, ou na forma das imposições dos funcionários religiosos tanto da revelação como de sua interpretação em virtude do ofício que ocupam na instituição eclesiástica[11]. De outro lado, essa compreensão de teonomia capacita-o para entender a posição do iluminismo contra a heteronomia religiosa em todas as suas formas e a criticar, ao mesmo tempo, essa vitória quando reduziu a capacidade cognitiva humana à razão relativamente estéril e superficial. Tillich ocasionalmente observaria que a sociedade contemporânea ainda sofre com as "profundas cicatrizes deixadas no ‘inconsciente coletivo’…"[12] pela luta entre autonomia racional e heteronomia religiosa ou pela supressão ganha pela autonomia em quase todos os círculos não-eclesiásticos do século dezoito. A teonomia representa ainda o esforço para curar essas feridas ainda abertas pela revisão das relações entre o divino e o humano com a negação de que a divindade venha ao humano de fora e a afirmação de que venha à humanidade e à razão a partir da sua presença sentida no fundamento natural e profundo de ambas (negação e afirmação).

Assim, a teonomia se opõe a todas as formas de naturalismo destituído da presença divina e de todas as formas de sobrenaturalismo católico ou protestante[13]. Dessa forma, Tillich incluiria a razão autônoma entre as formas reducionistas de naturalismo porque ela negaria à humanidade o sentimento natural de Deus. Por outro lado, a defesa da teonomia do sentimento inato de Deus na razão opõe-se tanto ao sobrenaturalismo católico como protestante. Tillich sempre chamou a ortodoxia e o biblismo protestantes de sobrenaturalistas[14]. Além disso, considera que esse teísmo heterônomo e suas raízes bíblicas sejam formas de deísmo[15]. Tal biblismo identifica Deus com certa personalidade teísta embora mantendo-o distante da criação e da consciência como o Deus vigilante do Iluminismo que raramente se envolve com o sofrimento nem é sentido em ação. Tillich menciona, infelizmente de passagem, que tal deísmo bíblico esconde a "ansiedade neurótica" sobre o panteísmo[16]. Insinua claramente que esse panteísmo promoveria experiências mais imediatas e psicológicas do divino do que os teístas bíblicos poderiam tolerar.

O sobrenaturalismo católico, por sua vez, revela a divisão esquizóide entre razão e revelação. Segundo Tillich, a razão autônoma estabeleceria a existência de Deus e certos traços dele como se vê em Aquino, em John Locke e nos iluministas em geral. Mas a razão autônoma sujeita-se efetivamente à informação adicional sobre Deus na forma da revelação heterônoma. Tillich mostra-se mais aberto a esse procedimento porque, pelo menos, reconhece os direitos da razão em face da revelação[17]. Contudo, sua opção pela teonomia retrata a humanidade conduzida pela memória de sua prévia união com Deus a buscar a recuperação dessa união perdida. Revelação é o nome do processo dessa recuperação "… ‘falada’ à existência humana do além"[18]. O exame da epistemologia de Tillich a respeito da revelação demonstra que esse "além" pertence à divindade inerente à razão humana a qual, por sua vez, a reconhece de maneira inata. O "além" acaba sendo as profundezas da mente e da natureza onde criador e criatura se encontram ou coincidem. Tillich compreende a revelação como a resposta divina à busca humana. Essa idéia pressupõe um Deus muito íntimo à humanidade . Só assim esse dualismo poderia se manter[19], envolvendo a distinção entre os poderes naturais da razão para receber informação suplementar revelada sobre Deus além de suas capacidades inatas.

O panenteísmo por detrás do conceito de teonomia e do sacramentalismo universal inerente a ele, em Tillich, indica a universalidade da fé humana enquanto base de tipos específicos de fé ou de comunidades de fé. A distinção visível no terceiro volume de sua Teologia Sistemática entre fé material e formal mostra a fundamentação das religiões particulares na religiosidade universal[20]. O tipo formal de fé, também chamado de preocupação suprema, vem da experiência universal da humanidade de desgarramento de sua essência e do desejo de voltar a ela. Tal dinamismo universal da fé expressa-se por meio de variantes na história, presentes nas inúmeras formas assumidas pela religião. Tillich chama de fé material o seu conteúdo e acredita que o tipo formal de fé realiza-se no conteúdo material do cristianismo. Em seus últimos escritos Tillich admitirá que por meio dessas categorias queria encontrar a revelação universal por detrás de todas as revelações particulares. " Quero definir este conceito (revelação) de tal maneira que a idéia da revelação universal seja aceita como pressuposto de todas as revelações particulares e concretas"[21]. Parece claro que o conceito de Tillich da substância católica, do sacramentalismo universal e da revelação continua sendo a base para a compreensão da religião e deveria comandar qualquer diálogo aberto e verdadeiro entre as religiões.

          2. Princípio protestante

O princípio protestante é o complemento necessário da substância católica. Juntos lançam-se na dialética da mútua correção e complementação. Sem a substância católica o princípio protestante torna-se insípido, intelectualmente unilateral para facilmente degenerar em moralismo casuísta[22]. Whitehead escreveu: " Mas se o ser humano não pode viver só de pão, muito menos sem desinfetantes"[23]. Tillich concordaria mas acrescentaria que mesmo o espírito religioso precisa de desinfetantes. A substância católica sem o princípio protestante, ao se tornar concreta na forma das religiões históricas, como sempre tragicamente acontece, degenera-se em idolatria, inevitavelmente[24]. O princípio protestante pode aparecer de diversas formas. A mais simples é esta: " os meios pelos quais o sagrado aparece não podem ser identificados com o sagrado". Esta formulação negaria quaisquer reivindicações de identidade com o divino feitas por qualquer religião, credo religioso, doutrina ou rito, bem como por qualquer movimento histórico ou político ou por destacadas personalidades religiosas. Com a mesma intenção Tillich formularia às vezes o princípio protestante como "… a luta de Deus dentro da religião contra a religião"[25].

A sutileza sofisticada do princípio protestante nas mãos hábeis de Tillich alcança o apogeu ao emprega-lo tanto para afirmar o significado único do evento Cristo e sua substância universal católica enquanto manifestação definitiva da essência na existência, quanto para ao mesmo tempo negar ao evento Cristo qualquer apropriação potencialmente idólatra. O uso desse princípio iconoclasta para afirmar qualquer evento religiosamente definitivo e ao mesmo tempo condenar suas possibilidades idólatras exige exame mais profundo.

Ao aplicar o princípio protestante ao evento fundante cristão Tillich trabalha com diversos elementos. Entre eles destaca-se o uso da filosofia platônica ou neo-platônica que nega à consciência existencial qualquer coisa além das percepções fugazes, ambíguas e fragmentadas do divino. Neste sentido, o platonismo combina elementos sacramentais e iconoclastas. Ao mesmo tempo em que a mente se relaciona com as idéias eternas não pode compreende-las completamente na situação existencial. A afinidade de Tillich com a perspectiva platônica evidencia-se principalmente no uso que faz de sua dialética para descrever a criação e a queda como coincidentes, isto é, como dois lados da mesma dinâmica, deixando a humanidade toda imersa na alienação do divino de tal maneira que nessa alienação persistem ressonâncias do mesmo divino[26].

A sensibilidade de Tillich perante a dialética platônica, embora importante, não é a influência principal que lhe levou a relacionar o princípio protestante com o evento Cristo. O símbolo da cruz, sim. Segundo Tillich, esse símbolo, por causa da dialética corretiva de substância católica e princípio protestante, purifica a figura de Cristo de tudo o que nela poderia vir a ser equacionado idolatricamente com sua facticidade histórica. É por meio da cruz que desaparecem as particularidades, o finito, o contingente e os detalhes biográficos do evento Cristo dando lugar ao significado presente no relato bíblico. O significado do mito permanece, pelo menos nos primeiros escritos de Tillich, que é o paradoxo do aparecimento definitivo da humanidade essencial na existência sem a deformação dessa mesma existência[27]. Trata-se da única interpretação radical do símbolo da cruz capaz de salvar, para Tillich, o significado da crucifixão e da vida de Jesus, o Cristo, da idolatria que ele chama de "Jesusologia"[28]. O princípio protestante lido dessa maneira torna o símbolo da cruz sua epítome quando aplicado à revelação. É o que lemos nesta formulação: " … a revelação só será final se tiver o poder de se negar sem se perder"[29]. Assim, só será verdadeiramente final aquilo cujo significado permanece quando o meio utilizado para esse fim vier a ser totalmente destruído. Como veremos mais adiante, a ironia desta afirmação de Tillich é que o símbolo da cruz elevado a tais alturas como exemplo do princípio protestante para salvaguardar a substância católica de sua cristologia contra qualquer ameaça de idolatria, pode tornar-se ele mesmo idólatra.

É preciso, agora, falar um pouco a respeito da tipologia das religiões empregada por Tillich sobre as relações entre os poderes sacramentais e os iconoclastas na experiência religiosa. Embora essa tipologia transpareça em seus primeiros escritos teológicos, Tillich a emprega mais tarde no contexto específico do diálogo entre religiões e no diálogo da religião com o secular.

          3. Sacramento, iconoclastia e tipologia da religião

Tillich afirma consistentemente que o elemento sacramental deve preceder o iconoclasta e que sem o elemento sacramental o iconoclasta se esvazia. Nos escritos posteriores ele continuará a empregar esses dois elementos como base de sua tipologia da religião e da estratégia para considerar o elemento religioso no secular. A presença universal sacramental ou natural do sagrado vai fundamentar dois tipos de experiência religiosa, o místico e o profético[30].

O sagrado é considerado um dado no tipo místico. Aí o místico é levado além das formas e expressões eclesiais à união apofática com o Deus além do Deus do teísmo. O princípio profético atua paradoxalmente no místico na forma de crítica de todas as formas religiosas a partir da experiência do nada além das formas enquanto precedente criativo delas[31].

O sagrado torna-se presente para o profeta enquanto dever. O elemento profético será, então, relacionado com o monoteísmo e seu exclusivismo[32]. Tillich tentará, nos seus escritos posteriores, ler com mais abertura a história do universalismo cristão para admitir certa inclusividade[33]. À luz da crítica bíblica corrente segundo a qual a origem do anti-semitismo está nas escrituras, ou do reconhecimento de Tillich da existência de anti-judaísmo na literatura joanina[34], Tillich soa condescendente ou até mesmo ingênuo quando pensa que a hostilidade do cristianismo em face de outras religiões começou com sua defesa diante das forças islâmicas e que só se tornou anti-judaico com o advento do racismo étnico no século dezenove[35]. Este problema irá retornar no contexto das relações entre a igreja manifesta e a igreja latente[36].

Os elementos místicos e proféticos procedem da mesma origem sacramental e representam duas faces do impulso religioso mais profundo. Tillich procura demonstrar como estão juntos no cristianismo. Num artigo escrito mais tarde, bastante revelador, dirigido ao mundo protestante para chama-lo ao reconhecimento da prioridade do elemento sacramental, Tillich propõe a recuperação do elemento místico com o sentido imediato da realidade suprema, que se perdera, para o estabelecimento de nova base de sua autoridade a respeito da teonomia[37]. Se isso não viesse a acontecer o protestantismo continuaria simplesmente a se deteriorar num clube social orientado por mero moralismo sem qualquer substância religiosa. Pode-se perguntar até que ponto essa esperança de Tillich era realista. Se o protestantismo tivesse seguido essa sugestão teria superado o que ele chamava de "ansiedade neurótica" protestante em face do panteísmo e teria aceito sem reservas a experiência de um Deus mais íntimo[38]. Este tema encontra-se na base das preocupações dos últimos anos da vida de Tillich a respeito da possibilidade do cristianismo, principalmente do cristianismo reformado, de superar o esclerosamento cultural predominante em que vivia no século vinte, com sua conseqüente falta de sentido[39]. O problema era este: segundo Tillich essa falta de sentido era decorrência da perda do senso de Deus nas profundezas do ser humano. Contudo, a recuperação deste sentido está psicológica e teologicamente vedada aos seguidores do que ele chama corretamente de deísmo bíblico encarregado de afastar suas vítimas das profundezas da interioridade humana. Somente assim a falta de sentido desse deísmo poderia ser superada. Tal tipo de religião contribui, na verdade, para acentuar a falta de sentido que a religião funcional pretende combater.

Mais para o fim de sua carreira, Tillich mostra-se igualmente preocupado com a tarefa de discernir o sagrado não apenas nos tipos de religião mas no assim chamado mundo secular. Semelhantemente a Jung, percebe nos diversos "ismos" legítima "substância religiosa" ou "fundamento religioso"[40]. Classifica nessa categoria três "ismos" com importância religiosa: nacionalismo, socialismo e certo humanismo liberal relacionado com a democracia ocidental[41]. A função legítima e religiosa de tais "ismos" pode facilmente tornar-se demoníaca. O nacionalismo, em sua forma mais primitiva de tribalismo ou na forma mais sofisticada de comunidade étnica ou de nação-estado moderna pode se transformar em " socialismo nacional". O socialismo com sua religiosidade legítima baseada na escatologia coletiva, pode por sua vez se transformar em comunismo stalinista. O humanismo com sua preocupação legítima pelos indivíduos, oriundo do iluminismo, pode produzir individualismos caracterizados pelo afastamento de seus seguidores do fundamento divino[42].

Nos últimos escritos, Tillich se perguntava, preocupado, se esses movimentos quase-religiosos teriam ainda capacidade, no futuro, de portar o sagrado. Nas discussões mantidas durante sua visita ao Japão com missionários, percebeu que estes não eram rejeitados. Eram, na verdade, encarados com total " indiferença"[43]. Sua mensagem era considerada irrelevante no contexto daquela sociedade industrializada. Tentando enfrentar este problema da relevância até suas últimas conseqüências fala sobre a necessidade de combinar a proclamação ofensiva da fé cristã nos moldes de Barth mediada pela apreciação maior da presença do sagrado tanto nas demais religiões como no mundo dos valores seculares[44]. Mas por detrás de tudo isso permanece a apreciação de Tillich pelo princípio protestante ao lado de sua dúvida sobre a capacidade de comunidades e de indivíduos (que poderiam ser na verdade manifestações do sagrado) para aplicar rigorosa auto-crítica nessas mesmas comunidades e em relação a suas convicções. À luz do princípio protestante ele desafia essas comunidades com a questão seguinte: poderia a sua verdade sobreviver se seus líderes fossem crucificados?

          4. Igreja latente e igreja manifesta

O terceiro volume da Teologia Sistemática mostra elementos bastante conservadores na relação entre igreja latente e igreja manifesta. Não obstante, tais categorias ainda são, em parte, criativas e libertadoras, porque Tillich emprega o conceito/símbolo inclusivo de "comunidade espiritual" para descrever a comunidade dos que estão no processo da salvação. A comunidade espiritual precede a divisão da igreja em latente e manifesta. Ele acredita que fazem parte dessa comunidade todos os que estão no processo de essencialização. Entende salvação como a vida inserida na verdade essencial e prístina inicialmente expressa no dinamismo da vida trinitária.

Neste ponto, a compreensão platônica de essência e existência se presta para a expressão de certo universalismo aceitável. Tillich entende que o significado da vida existencial histórica e individual consiste na recuperação do ser essencial em Deus. Assim, a realidade de Cristo significa o aparecimento final do elemento essencial na história, o kairos, pelo qual a história sempre ansiou embora se contrapondo à opinião comum e às expectativas a esse respeito[45]. Com a ajuda dessas categorias Tillich estende a essencialização a todas as pessoas e a todas as comunidades que já estariam vivendo a realidade essencial fora da igreja embora mantendo ainda a idéia de que o processo deveria se manifestar, como já acontece, dentro da igreja. A potencialidade crítica dessas categorias vão nas duas direções. Nem todos os que vivem dentro da igreja manifesta encontram-se necessariamente no processo de essencialização por meio da experiência do Novo Ser. Indivíduos e comunidades fora da igreja manifesta, incluindo até seus oponentes conscientes, vivendo processos de essencialização sob "o poder do Novo Ser" , são membros da igreja latente[46].

Até aqui as categorias de Tillich, como já sugerimos, podem ser consideradas libertadoras e amplas. Mas o mesmo não acontece quando descreve a igreja latente como " teologicamente relacionada" com a igreja manifesta e assim "inconscientemente levada a Cristo", cuja fé, amor e cruz, estabelecem " auto-negação e auto-transformação radicais" impossíveis de se achar na igreja latente[47]. Isto significa que a latência secular onde o essencial se manifesta "de maneira impressionante"[48] bem como a latência especificamente religiosa do judaísmo, do islamismo e do misticismo oriental, incluindo os poderes religiosos da mitologia grega e dos cultos de mistério dos gregos estão teleologicamente orientados para o cristianismo[49]. A consequência é óbvia. Faltam a todas as religiões a fé e o amor de Cristo bem como a auto-crítica radical capaz de estabelecer distinção entre o essencial e as formas por meio das quais o essencial se manifesta[50].

          III. Tensões Posteriores e o Caminho do Futuro

          1. Provincianismo

Nas últimas obras à margem do último volume de seu sistema, Tillich reconhece a presença de traços de provincianismo europeu em muitas de suas posições[51]. Essa confissão teria sido provocada pelas conversas que teve com Cantwell Smith, estudioso das religiões e seu colega em Harvard, que havia considerado o confinamento de seus esforços teológicos ao âmbito cristão como forma de isolacionismo próprio da mentalidade de gueto[52]. Sensível a essa crítica e também sob a influência marcante de Eliade ao lado do conhecimento maior com as religiões orientais, Tillich percebe inúmeros tipos de provincianismo em suas obras anteriores. Entre estes podemos destacar seu compromisso com o Ocidente, com o cristianismo, com o teísmo teológico, e com a religião em contraposição às quase-religiões e ao secular[53]. Cada uma dessas formas merece exame particular motivado pela busca de caminhos que possam transcende-las com a ajuda de recursos latentes existentes em seu próprio pensamento. Diríamos, em outras palavras, que a ampliação do entendimento da reciprocidade entre substância católica e princípio protestante poderia ser a chave para transcendermos o provincianismo auto-proclamado de Tillich com a finalidade de se contribuir para o estudo do futuro do diálogo entre as religiões e da própria religião. Essa tarefa emanaria, então, do próprio espírito do pensamento de Tillich.

          2. Provincianismo eclesiástico

O exemplo mais evidente dos resíduos desse provincianismo no terceiro volume do sistema encontra-se na sua escatologia. Como já vimos, seria difícil imaginar-se posição mais provinciana do que a afirmação de que todas as manifestações do sagrado nas religiões do mundo, no secularismo e na vida cultural contemporânea, caminham na direção da igreja cristã manifesta e particularmente do segmento onde domina o princípio protestante iconoclasta. Neste ponto o princípio protestante transforma-se num absoluto além de qualquer crítica por afirmar que a religião se realiza, afinal, no cristianismo protestante. Como qualquer outro absoluto, tal afirmação acaba sendo, de certa forma, idólatra ao se confinar à determinada comunidade histórica.

O princípio protestante pode, no entanto, ser recuperado enquanto poderoso recurso para o futuro da religião e no diálogo entre as religiões se puder ser estendido para além do cristianismo e aplicado a todas as religiões e aos fenômenos seculares relevantes para a religião. Em certo sentido, Tillich já estava fazendo isso, mesmo se localizando a plena realização desse princípio no cristianismo. Dessas maneira, o princípio protestante poderia ser trazido ao relacionamento crítico com o elemento sacramental para negar a supremacia de qualquer religião manifesta ou quase-religiões enquanto expressão final do essencial na existência. Não haveria, então, nenhum kairos central e conclusivo. A universalização do princípio protestante em relação dialética com o elemento sacramental negaria qualquer supremacia a qualquer religião específica ao mesmo tempo em que aceitaria a validade relativa de todas elas. Os membros das comunidades religiosas ou quase-religiosas poderiam apreciar a presença do sagrado na sua disposição de reconhece-lo também em outras comunidades e compromissos.

A relação com outras comunidades poderia ir além do simples reconhecimento do validamente sagrado nelas à apreciação de sua natureza complementar com vistas à plenitude do compromisso religioso de cada um. Por exemplo, Tillich chegou a apreciar a verdade religiosa manifesta no mestre Zen com quem dialogou e ao qual chamou de " santo"[54] mesmo tendo dificuldades para apreender a experiência Zen do eu sem forma e de outros elementos daquela tradição. Talvez a valorização do eu sem forma e do caráter apofático da experiência Zen poderia servir para compensar o cristianismo de Tillich tão voltado para a forma e para o Logos. Poderia ainda levar Tillich a reconsiderar a ausência de forma em sua própria teologia para explora-la no futuro. O diálogo com o mestre Zen obrigou Tillich a refletir sobre a experiência apofática e ao mesmo tempo cristã de Mestre Eckhart nunca tratada com profundidade em sua obra embora consistente com a compreensão que tinha do Deus além do Deus do teísmo[55]. Também inspiraria Tillich e seus seguidores a desenvolver o potencial apofático pressuposto na dimensão caracterizada como "abismo do divino" presente em Jacob Bohème também citado por Tillich de forma circunstancial e sem documentação.

          3. Provincianismo missiológico

A afirmação de que a igreja latente procura se completar na igreja manifesta poderia fundamentar o surgimento de certa missiologia agressiva, mesmo sabendo-se que a intenção mais profunda de Tillich era combater tal arrogância ao aceitar a latência do sagrado em outras religiões, no mundo secular e até mesmo na própria humanidade. Tillich insistirá neste ponto nos seus últimos escritos. Nos anos sessenta percebeu corretamente que o Concílio Vaticano II havia sido convocado para enfrentar a irrelevância da Igreja Romana na cultura de então[56]. O equivalente protestante à preocupação romana era, por sua vez, a irrelevância de sua pregação[57]. Recomenda, então, que a missiologia do futuro combine o elemento de ofensa com o elemento de mediação. O primeiro desses elementos viria da teologia querigmática de Barth; o segundo, da teologia da resposta de Tillich com seu esforço de mediar a mensagem cristã ao relaciona-la com a questão cultural, incluindo aí a percepção da presença válida do sagrado em outras religiões e nas formas seculares[58].

Mas mesmo aqui Tillich parece estar dividido. Em escritos posteriores abandonaria qualquer proselitismo e limitaria a conversão aos que voluntariamente quisessem ser admitidos à comunidade cristã[59]. Fiel a esta posição, substituiria explicitamente a conversão pelo diálogo não apenas entre as religiões mas da religião com as formas seculares[60]. Apesar disso, mostrava-se preocupado com a indiferença que os japoneses demonstravam para com os missionários e estranhamente não explicava porque a tradição espiritual japonesa pudesse apoiar ou não a democracia americana com suas preocupações por mudanças sociais e sua dependência do individualismo do cristianismo e do iluminismo[61]. E nunca disse porque a cultura japonesa poderia precisar de outras tradições.

O conceito de substância católica poderia ser valioso para a compreensão da missiologia. A missão cristã admitiria que a realidade manifesta no kairos de Cristo estaria também em ação na cultura onde se insere. A tarefa missionária consistiria em procurar identificar as maneiras por meio das quais o sagrado ou essencial, manifesto no evento Cristo para os cristãos, também se faria presente nessa cultura. Tal atitude aprofundaria a apropriação missionária da experiência cristã ao considera-la uma entre outras manifestações do sagrado além do cristianismo em várias culturas e, também, para indicar caminhos nos quais a auto-compreensão cristã poderia se aprofundar e se ampliar nesses contatos com outras religiões e culturas. Certas culturas aborígenes, autóctones ou originais com suas religiões locais foram, por exemplo, desintegradas ou destruídas por poderes estrangeiros ou coloniais. Nesses casos a tarefa do missionário cristão consistiria em restaurar tais recursos religiosos antes de levar essas culturas a qualquer discussão séria a respeito do cristianismo.

          4. Provincianismo cristológico e teológico

Talvez a forma mais intransigente de provincianismo de Tillich e da teologia cristã seja o cristológico. No primeiro volume de seu sistema Tillich chama a revelação cristã de "final"[62]. Como vimos, a convicção de que a revelação dirige-se, de certa forma, para a sua realização no cristianismo, fundamenta suas reflexões sobre a igreja latente e a manifesta no terceiro volume. Tillich refutaria essa idéia numa conferência sobre a história das religiões pronunciada no dia em que sofreu o primeiro de uma série de ataques cardíacos que acabaram levando-o à morte. Desenvolveu essas idéias no contexto da crítica que fazia mais uma vez a Barth por rejeitar todas as demais religiões em favor da exclusiva revelação cristã e, ao mesmo tempo, contra a possibilidade da existência de uma humanidade sem Deus em resposta aos teólogos da morte de Deus[63]. Ao discutir a maneira como o teólogo cristão poderia se apropriar da história da religião, acentua em itálico que "talvez possa existir… algum evento central na história das religiões…"[64] capaz de reunir as religiões em certo tipo de plenitude cumulativa. Ao fazer essa afirmação no subjuntivo pareceria estar abandonando a idéia anterior da singularidade e superioridade do cristianismo em relação com as outras religiões. Poderia ainda estar fortalecendo a idéia de que o símbolo da cruz cristã também se dava "… fragmentariamente em outros lugares…" , mesmo se "tais momentos… não estivessem ligados histórica ou empiricamente a ela"[65]. Não se pode negar que nessas passagens Tillich relativiza a revelação cristã.

Se a revelação cristã puder ser assim relativizada, mudam a natureza e a função do teólogo cristão. A norma do teólogo cristão, nos primeiro volume de seus sistema, era "… a aceitação da mensagem cristã enquanto sua preocupação suprema"[66]. Os escritos posteriores parecem negar essa norma. No final da vida, Tillich passa a advogar não mais a teologia da libertação mas a libertação em face da teologia ou, pelo menos, em face das restrições que o jovem Tillich havia criado para ela.

O teólogo cristão, livre desses impedimentos, poderia de bom grado localizar a revelação cristã no contexto de outras religiões e revelações. Com isso, alargar-se-ia o seu compromisso perante as muitas faces da religião. As antigas restrições seriam superadas e se aprofundariam suas percepções de outras formas existentes de religião. Tilllich estava trabalhando, agora, no contexto maior da influência da história das religiões. Abria-se, também, para o papel que poderiam desempenhar ciências como a psicologia, a sociologia e a antropologia para a compreensão da religião na natureza humana.

          5. Provincianismo histórico

Na mesma conferência há pouco mencionada, Tillich afirma que o futuro da teologia precisaria estar mais relacionado com a história das religiões. Embora não tenha vivido o necessário para realizar essa tarefa, em seus últimos escritos oferece pistas para tal. Nos rascunhos e esquemas deixados, indica possibilidades para a elaboração de novas metodologia e tipologia históricas que rejeitam o modelo hegeliano. Tillich rejeita especialmente a sugestão hegeliana de que quando as posições religiosas primitivas são superadas por formas mais elevadas de religião e completadas no cristianismo, elas são definitivamente deixadas para trás e não mais podem contribuir para o presente nem para o futuro[67].

As últimas reflexões de Tillich mostram-no disposto a considerar as religiões como importantes expressões da propensão religiosa da humanidade. Seu significado aparecia de diversas maneiras e eram elementos importantes capazes de contribuir para a melhoria da situação religiosa segundo exigências específicas das diferentes culturas[68]. Abandonava, assim, a idéia de religiões mortas ou do passado, em favor do conceito não muito distante do de Jung, de que o potencial religioso da humanidade, ainda existente, seria capaz de enriquecer a vida religiosa segundo as necessidades do momento. O kairos deixaria de ser certo momento definitivo na história, dando lugar ao sentido mais amplo de kairoi. Estaria presente em diferentes aspectos e movimentos da história quando o sagrado aí se manifestasse, embora amplo e relativizado. Nesses casos, o essencial nunca seria plenamente alcançado na existência.

          6. Provincianismo escatológico e essencialização

As tensões perceptíveis nas últimas formulações da escatologia evidenciam certa inquietação intelectual criativa no pensamento de Tillich. Ao longo de sua vida sempre resistira aos temas da teologia do processo empenhada em fazer depender a divindade do desenvolvimento da história humana. Para ele tal dependência condenava Deus a ser dependente da aventura humana. Escreveu: "Um Deus condicionado não é Deus"[69]. Essa concepção de Deus negava a auto-suficiência divina que, para ele, consistia na substância do símbolo da Trindade.

Essa tensão torna-se mais clara nas últimas páginas de seu sistema. Em continuidade com sua escatologia anterior Tillich descreve a história por meio de imaginário linear, transitando da origem na eternidade, pelo tempo existencial até retornar à essa mesma origem[70]. O problema com essa escatologia é sua incapacidade de dar qualquer sentido final à história. A história serviria para a realização do essencial na existência temporal e para a sua preservação na eternidade mas de tal maneira que deixaria a divindade fora do processo e independente dele.

As últimas páginas da sistemática mostram uma versão radicalmente diferente da escatologia. Usando um termo tomado de Schelling, "essencialização", Tillich admite abertamente, em tensão e até mesmo em contradição com escritos anteriores sobre o tema, que o processo de essencialização não apenas redimiria a raça humana mas também contribuiria para o ser do divino. Para muitos comentadores, esta posição de Tillich representava aberta concessão à teologia do processo. Seja qual for a motivação, temos aqui um paralelo com a escatologia mais conservadora que insere a divindade no processo de desenvolvimento por meio da realização do essencial no tempo[71]. Deus, então, participaria de fato na aventura humana individual na existência temporal e histórica. Nesse processo o ser divino realiza-se ou diminui. Os acontecimentos da história contribuiriam para o conteúdo da "divina bênção" eterna[72].

Em termos do debate sobre o diálogo inter-religioso a aceitação da idéia da divindade em processo de auto-realização por meio da história apoiaria a hipótese de que o fundamento do ser, com seu potencial infinito na busca de maior realização na consciência humana, precisaria de imensa variedade de expressões para definir-se por meio do humano. Poder-se-ia combinar assim a plenitude na aliança do princípio protestante com a afirmação de que o fundamento das religiões não se realiza em nenhuma delas como plena expressão de seus potenciais, embora cada uma delas mostrasse relativamente as profundezas do fundamento de onde emanam. Por fim, o princípio sacramental ampliado validaria todas as expressões religiosas importantes, e o princípio protestante acabaria com qualquer pretensão à supremacia das religiões existentes.

          IV. Conclusão: A possibilidade de um Tillich resgatável

Nas áreas de teologia, de estudos de religião e de diálogo entre as religiões diversos elementos da obra de Tillich servem para possibilitar a superação do próprio Tillich na direção que ele começava a trilhar nos últimos anos de sua vida. É importantíssima a contribuição que fez a todas as formas de estudos de religião com sua análise da humanidade enquanto portadora do sentido de Deus. Expressou tal pensamento de maneira sucinta: "Um deus desaparece; a divindade permanece"[73]. Tal sentido irrecusável do divino vem da apropriação que faz de Platão para apoiar a teologia cristã bem como para expressar a universalidade da religião. É provável que sua contribuição à antropologia teológica seja mais importante do que sua cristologia[74]. Essa antropologia baseava-se na memória viva que tem a humanidade de sua origem divina em contraste com a alienação em que vive agora. Essa mesma memória funciona como impulso na direção da recuperação plena da antiga intimidade com o divino perdida na existência. Esta dialética pode ainda ser considerada uma análise convincente da gênese da religião no espírito humano

Quando Tillich afirma que a humanidade é universalmente religiosa, partindo da tensão entre o universal e o particular, precisa localizar o particular no contexto mais amplo do universal. Em vez de considerar a realização plena do universal na revelação cristã, parecia, agora, decidido a relativizar a particularidade cristã no contexto dessa humanidade universalmente religiosa. A reviravolta implícita nessa nova ênfase exigiria que o teólogo cristão apreciasse positivamente as demais manifestações do essencial em outras épocas, culturas e tradições. Nem por isso o compromisso com a fé cristã seria diminuído. Ao contrário, a fé seria aprofundada por meio do reconhecimento das infinitas variações daquilo que os cristãos percebem no evento Cristo, tanto nas religiões como nas culturas seculares. O poder do simbólico nas diferentes religiões aumentaria com essa percepção.

Ao privilegiar o universal, Tillich, nos últimos escritos, desenvolvia idéias latentes capazes de transformar a relação entre o cristianismo e as outras religiões da conversão para o diálogo As religiões, a partir do reconhecimento mais amplo do caráter religioso universal e autenticamente presente na humanidade, ampliariam a consciência coletiva e individual, facilitando o diálogo a respeito de diferenças de ênfases, símbolos, valores, rituais e seus efeitos nas circunstâncias sociais de suas culturas. Tal atitude suplantaria, por certo, qualquer tipo de proselitismo agressivo. Se a religião puder ser encarada como expressão universal do espírito humano fundamentada na participação do espírito no ser e na vitalidade de Deus, será bem mais difícil universalizar-se quaisquer de suas expressões particulares e mais difícil ainda engajar-se em atividades genocídas e holocáusticas contra os que se comprometem com manifestações alternativas de religiosidade.

Comunidades e pessoas política e religiosamente comprometidas aprenderiam a conviver pacificamente com outras expressões de fé, plenamente conscientes da relatividade de suas crenças e abertas para reconhecer o valor das outras. Teria esse impulso o poder de gerar simpatias mais amplas ou, serviria para calcificar visões comunitárias mais estreitas em face de conflitos políticos e religiosos capazes de ameaçar o êxito da aventura humana total? A sugerida extensão radical do princípio protestante de Tillich poderia ser aplicada, então, às diversas materializações da substância católica na direção de exigências morais mais amplas e maiores. Tal exigência moral identificaria qualquer reivindicação religiosa ou secular com a manifestação do sagrado. Nesse caso denunciavam-se as expressões idólatras que ameaçam a comunidade humana e pecam contra a religião e a humanidade que são os objetivos do serviço da religião. Essas implicações parecem estar presentes no que o próprio Tillich descreveu como "… minha última palavra…" Nas últimas linhas publicadas, confessava que a universalidade que afinal desejava "…encontrava-se na abertura à liberdade espiritual tanto do próprio fundamento como para o próprio fundamento"[75]. Espera-se que a face religiosa do futuro surgida do atual diálogo possa produzir a liberdade espiritual confiando que a entrada nas profundezas de qualquer tradição encontre o poder de onde tudo emana.

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NOTAS

[1] Essas conferências incluem as Matchette Lectures, Wesleyan University, 1958, bem como a conferência apresentada no Lycoming College, em 1961, encontradas em P. Tillich, The Encounter of Religions and Quasi-Religions, ed. Terence Thomas (Lewiston: Edwin Mellen Press, 1990) incluindo a Earle Lecture, Pacific School of Religion, encontrada em The Irrelevance and Relevance of the Christian Message, ed. D. Foster (Cleveland: The Pilgrim Press, 1996).
[2] Terence Thomas, "Introduction" in The Encounter of Religions and Quasi-Religions, op. cit. p. xxi.
[3] Ibid., p. xxiii.
[4] P. Tillich, Systematic Theology, v. I (Chicago: Chicago University Press, 1951), p. 15, 136 e 137. (Daqui para a frente citada como ST I).
[5] Ibid., p. 10.
[6] P. Tillich, Systematic Theology, v. III (Chicago: Chicago University Press, 1963), p. 421. (Daqui para a frente citada como ST III). Cf. também a interpretação favorável que Tillich faz do panteísmo na ST I, p. 233 e 234: p. 237 e 238.
[7] P. Tillich, ST I, p. 116.
[8] Ibid., p. 79s.
[9] Este é o tema principal do meu livro The Psyche as Sacrament: A Comparative Study of C. G. Jung and Paul Tillich (Toronto: Inner City Books, 1981).
[10] P. Tillich, ST I, p. 206.
[11] Ibid., ST I, p. 83s; p, 147s.
[12] P. Tillich, Dynamics of Faith (New York: Harper and How, 1966), p. 23.
[13] P. Tillich, ST I, p. 64 e 65.
[14] P. Tillich, "The Significance of the History of Religions for the Systematic Theologian" in The Future of Religions, ed. J. C. Brauer (New York: Harper and Row, 1966), p. 92; Carl Gustav Jung, 1875-1961, A memorial meeting, New York, 1 de dezembro de 1961 (New York: Analytical Psychology Club, 1961), p. 30; ST I, p. 64 e 65.
[15] P. Tillich, The Encounter of Religions and Quasi-Religions, op. cit., p. 49.
[16] Ibid.
[17] P. Tillich, ST I, p. 65 e 66.
[18] Ibid., p. 64.
[19] Ibid., p. 65.
[20] P. Tillich, ST III, p,. 130 e 131.
[21] P. Tillich, The Encounter of Religions and Quasi-Religions, op. cit., p. 64.
[22] Ibid., p. 68 e 69, "The Significance of the History of Religions for the Systematic Theologian", op. cit., p. 87.
[23] A.N. Whitehead, Science and the Modern World (New York: Mentor, 1925), p. 59.
[24] P. Tillich, The Encounter of Religions and Quasi-Religions, op. cit., p. 72 e 73.
[25] P. Tillich, "The Significance of the History for the Systematic Theologian", op. cit., p. 86.
[26] P. Tillich, Systematic Theology, v. II (Chicago: Chicago University Press, 1957), B, p. 29s, e 5, p. 39s. Ver especialmente a p. 44. (Daqui para a frente citada como ST II).
[27] Ibid., p. 92-94.
[28] P. Tillich, ST I, p. 136.
[29] Ibid., p. 133.
[30] P. Tillich, The Encounter of Religions and Quasi-Religions, op. cit., p. 22s.
[31] Ibid., p. 23.
[32] Ibid., p. 25 e 32.
[33] P. Tillich, Christianity and the Encounter of the World Religions (New York: Columbia University Press, 1963), p. 35-46.
[34] Ibid., p. 39.
[35] Cf., por exemplo, E. Pangels, The Origin of Satan (New York: Vintage, 1995).
[36] P. Tillich, Christianity and the Encounter of the World Religions, op. cit., p. 36-39.
[37] P. Tillich, "The Permanent Significance of the Catholic Church for Protestants", Dialogue, v. 1, 1962, p. 24 e 25.
[38] Cf. nota 16.
[39] P. Tillich, The Irrelevance and Relevance of the Christian Message, op. cit., p. 57s.
[40] P. Tillich, The Encounter of the Religions and the Quasi-Religions, op. cit., p. 32, 62 e 63.
[41] Ibid., p. 31 e 32.
[42] Ibid., p. 31-35.
[43] P. Tillich, Christianity and the Encounter of the World Religions, op. cit., p. 12s.
[44] P. Tillich, The Irrelevance and Relevance of the Christian Message, op. cit., p. 7-10 e cap. 3, p. 43s.
[45] P. Tillich, ST III, p. 153.
[46] Ibid.
[47] Ibid., p. 154.
[48] Ibid., p. 153.
[49] Ibid., p. 154.
[50] Ibid., p. 155.
[51] P. Tillich, Christianity and the Encounter of the World Religions, op. cit., p. 1.
[52] W. C. Smith, "The Christian in a Religiously Plural World" in Religious Diversity, ed. Williard G. Oxtoby (New York and London: Harper and Row, 1976), p. 8.
[53] P. Tillich, The Encounter of the Religions and the Quasi-Religions, op. cit., p. 60-62.
[54] Ibid., p. 28.
[55] Ibid., p. 83-89.
[56] P. Tillich, The Irrelevance and Relevance of the Christian Message, op. cit., p. 12.
[57] Ibid., p. 14-21.
[58] Ibid., p. 5-9.
[59] Ibid., p. 73 e 74.
[60] P. Tillich, Christianity and the Encounter of the World Religions, op. cit., p. 94-97.
[61] Ibid., p. 24 e 25.
[62] P. Tillich, ST I, p. 132s.
[63] P. Tillich, "The Significance of the History of Religion for the Systematic Theologian", op. cit., p. 80.
[64] Ibid., p. 81.
[65] Ibid., p. 89.
[66] P. Tillich, ST I, p. 11.
[67] P. Tillich, Christianity and the Encounter of the World Religions, op. cit., p. 56; "The Significance of the History of Religions for the Systematic Theologian", op. cit., p. 86.
[68] P. Tillich, Christianity and the Encounter of the World Religions, op. cit., p. 57.
[69] P. Tillich, ST I, p. 248.
[70] P. Tillich, ST III, p. 400.
[71] Cf. Durwood Foster, "Tillich’s Notion of Essentialization – A Preliminary Spreadsheet of Observation" in Mystical Heritage in Tillich’s Philosophical Theology, eds. G. Hummel e D. Lax (Hamburg, London: LIT-Verlag) p. 365-383.
[72] P. Tillich, ST III, p. 422.
[73] P. Tillich, Dynamics of Faith, op. cit., p. 18.
[74] Cf. meu estudo , "The Problem of Essentialism: Tillich’s Anthropology versus his Christology" in Theological Legacy: Spirit and Community, International Paul Tillich Conference, New Harmony, Indiana, 17-20 de junho de 1993 (Berlin: Walter deGruyter, 1995), p. 125-141.
[75] P. Tillich, "The significance of the History of Religions for the Systematic Theologian", op. cit., p. 94.

Fonte: revista eletrônica Correlatio – ISSN 1677-2644
www.metodista.br/correlatio


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