Parecer teológico sobre o posicionamento do Movimento Carismático

Autor: Paulo Afonso Butzke




Parecer sobre o posicionamento teológico da Renovação Carismática intitulado “Diálogo sobre assuntos comunitários”

A – Sobre o documento e sua introdução

1. Logo na primeira leitura, chamou-me atenção o título escolhido pela “Renovação Carismática” (abreviado no texto a seguir como “RC”) para o seu documento – “Diálogo sobre assuntos comunitários”. Quando recebi o pedido de redigir este parecer recebi a informação de que se tratava de um “posicionamento teológico” acerca de temas teológicos e práticos solicitados à RC pelo Pastor Presidente da IECLB. O texto apresentado evidentemente não é um posicionamento teológico e, pelo título, nem deseja sê-lo. Deseja isto sim, “dialogar” com o Pastor Presidente acerca de “assuntos comunitários”. Assim, o título já anuncia o que o teor do documento irá revelar: os temas em questão não são compreendidos pela RC como fundamentalmente importantes e cruciais para a unidade da igreja – afinal, são apenas “assuntos comunitários” – e sua prática carismática é compreendida como uma entre outras numa igreja plural. Assim, a forma de apresentação demonstra a dificuldade em relacionar-se adequadamente com a autoridade na Igreja. O Pastor Presidente recebe uma oferta de diálogo de um movimento cuja teologia e prática está sob suspeita de ferir a confessionalidade e a unidade da Igreja. Perdeu-se a noção de que diante da instância teológico-eclesiástica máxima da Igreja é dever – especialmente dos obreiros/as ordenados/as – responsabilizar e legitimar teologia e prática quando ela assim o solicita.

2. Na introdução do documento, há uma preocupação evidente em apresentar a IECLB como uma igreja plural, onde se vive diversidade e democracia. Utiliza-se da tese da diversidade no processo de formação da IECLB como argumento para legitimar o pluralismo interno atual. É interessante observar como toma corpo em segmentos da IECLB, a tese que tende a relativizar a confessionalidade luterana no processo de formação da IECLB, como se a mesma fosse apenas uma entre outras posições teológicas. Entrementes, circulam “teses” acerca do processo de formação histórico-teológica da igreja que são extremamente preocupantes. Está-se veiculando, por exemplo, a “tese” de que “a luteranização da IECLB deu-se em virtude dos investimentos da igreja da Baviera na IECLB” . Naturalmente, desconhece-se que a Igreja Bávara e seus expoentes teológicos eram contra a formação da IECLB, emitindo pareceres teológicos na tentativa de impedir seu ingresso na FLM em 1949. Perdeu-se, portanto, a noção de que a confessionalidade luterana, além de ser a origem da esmagadora maioria dos imigrantes, foi um processo de discernimento teológico nos anos imediatamente seguintes à segunda guerra, culminando na formação de uma Federação Sinodal confessionalmente determinada. A acentuação da existência de “diferentes vertentes teológicas” no processo de formação da IECLB parece ter como alvo a projeção do pluralismo atual sobre a história da Igreja, na tentativa provável de justificar a possibilidade de posições não conciliáveis com a confessionalidade luterana. Para a teologia luterana, a relativização da confessionalidade, porém, põe fim à unidade da Igreja.

3. Interessante também é a constatação da “ausência de cisões” ao longo da história da IECLB. Ora, este fato, sem dúvida altamente positivo, não é prova para a verdadeira unidade da igreja. A “ausência de cisões” talvez demonstre que, na IECLB, não se sabe mais o que perfaz a verdadeira unidade da igreja, priorizando-se a unidade institucional em detrimento da unidade teológica. Para a conservação da verdadeira unidade da igreja, é possível que haja necessidade de cisões provenientes da distinção entre igreja verdadeira e igreja falsa. Nem Lutero, nem o luteranismo posterior tiveram medo de distinções teológicas e, por conseqüência, de delimitações eclesiásticas. Os Reformadores jamais admitiriam uma “solução negociada” em questões centrais para a confessionalidade – como, por exemplo, em torno da compreensão do sacramento do batismo – apenas com o intuito de preservar a unidade institucional da Igreja.

4. O documento afirma com correção de que a “IECLB não tem imunidade frente às influências da sociedade pluralista”. Ela deverá estar atenta às necessidades cada vez mais diversificadas da sociedade no planejamento de sua atuação. Porém, deverá estar igualmente atenta para não reproduzir em seu interior os processos sociais desagregadores. Apesar de procurar diversificar sua atuação, ela deverá zelar por um testemunho teológico-confessional inequívoco. Aliás, igreja sem posição teológica e confessional clara pouco terá a contribuir numa realidade de confusão religiosa e dissolução dos valores.

5. Em geral, no documento, a RC jamais admite erros. Em lugar disto, detém-se em analisar e apontar os erros e falhas alheias. Não entra no mérito das críticas feitas à própria teologia e prática. É evidente que existem outros problemas na IECLB inclusive quanto à prática do batismo. Tal fato, porém, não minimiza ou relativiza o gravíssimo problema teológico-eclesiástico do rebatismo. É lamentável que a RC limitou-se a criticar outros, deixando de elaborar e expor sua compreensão teológica acerca dos assuntos nos quais é questionada. Os membros da RC desejam ser “carismáticos luteranos”. Justamente este desejo poderia ter ensejado a elaboração cuidadosa e profunda de um posicionamento teológico.

B – O “tratamento de questões batismais”

6. O documento da RC inicia este tópico com uma frase alvissareira: afirma que “o batismo é um sacramento, e como tal deve ser tratado com responsabilidade”. Em lugar de expor sua compreensão do sacramento, infelizmente, o documento passa a atacar a teologia e a prática batismal da IECLB. No documento a RC diz, direta ou veladamente, que a IECLB tem uma teologia batismal “confusa” que gera uma prática “indiscriminada” e “difusa”, na qual o batismo não passa de um “rito de passagem” ou “passe de mágica”. Para a RC, existe na IECLB uma “prática bíblico teológica insustentável” herdada da Igreja Católica Romana.

7. É preciso admitir que, de fato, na IECLB, no tocante à prática do sacramento do batismo existe irresponsabilidade de obreiros/as e paróquias. Igreja que batiza suas crianças não pode descuidar da evangelização e da formação cristã continuada. Felizmente existem muitas iniciativas abençoadas que integram o sacramento do batismo numa concepção de edificação de comunidade. Nas paróquias de nossa Igreja existe mais vida a partir do evangelho do que alguns críticos gostariam de admitir.

8. O documento da RC contém algumas afirmações muito preocupantes quanto à compreensão do batismo. Quero ater-me a duas destas afirmações:

8.1.“A prática irresponsável desse sacramento se deve ao fato de muitos considerarem que no batismo, como num passe de mágica, se recebe de Deus tudo o que Ele promete em sua Palavra”.

Esta frase do documento da RC, dita num contexto de crítica à compreensão ex opere operato do sacramento, desvincula o batismo e suas dádivas da Palavra de Deus. A colisão desta afirmação com a teologia batismal luterana é flagrante. Para a Igreja Luterana, os sacramentos são ritos instituídos pelo próprio Cristo nos quais elementos visíveis – água (batismo), pão e vinho (santa ceia) – estão ligados a promessas divinas. Assim, Lutero define o Batismo como Sacramento dizendo: “o Batismo não é apenas água simples, mas é água compreendida no mandamento divino e ligada à Palavra de Deus” (Catecismo Menor IV, 1). A obra realizada pelo batismo é a seguinte: “Opera remissão dos pecados, livra da morte e do diabo, e dá salvação eterna a todos quantos crêem, conforme rezam as palavras e promessas de Deus” (Catecismo Menor IV, 2). O Batismo também é o Sacramento “pelo qual somos recebidos na cristandade” (Catecismo Maior IV, 2), incorporando-nos à Igreja de Cristo como membros de seu Corpo. O que recebemos no batismo, portanto, é a própria salvação. Em seu Catecismo Maior, Lutero diz acerca da dádiva do batismo: “… a força, a obra, o proveito, o fruto e o fim do batismo é salvar (…) É sabido … que ser salvo não significa outra coisa que, liberto do pecado, da morte, do diabo, chegar ao reino de Cristo e com ele viver eternamente. Vês aqui de novo em que grande apreço se deve ter o batismo, visto que nele alcançamos tão inexprimível tesouro. Também isso bem mostra que não se pode tratar de pura e simples água. Porque mera água não pode efetuar tal coisa. Opera-a, porém, a palavra, e o fato, conforme dito acima, de nela estar o nome de Deus. Mas onde está o nome de Deus, aí também necessariamente há vida e bem-aventurança, de forma que é com razão que se lhe chama água divina, bendita, frutífera e plena de graça” (Catecismo Maior IV, 25-27). No batismo, portanto, recebemos – sim! – tudo o que Deus promete em sua Palavra – simplesmente porque Deus resolveu agir salvificamente no sacramento! Não é “passe de mágica”. É decisão divina que disponibiliza dádivas que independem da ação e do merecimento humano.

8.2. “… buscando nos distanciar da compreensão tridentina do batismo que molda o nosso contexto católico, indo em direção a visão luterana, de que é a fé que recebe o batismo, fé esta que nasce do ouvir a Palavra.”

Esta afirmação é feita pela RC no contexto da discussão do rebatismo e da procura por alternativas para a prática batismal num contexto missionário urbano. Propõe como ideal uma seqüência “pregação/evangelização – fé/conversão – batismo”. Esta seqüência interpõe a apreensão existencial e cognitiva da mensagem evangélica entre a pregação da mesma e o batismo. Parece evidente que esta seqüência privilegia os adultos e praticamente exclui as crianças menores. Embora não formulado claramente, a frase é uma apologia do batismo de adultos, potenciada pela crítica a uma forma de compreender e praticar o batismo de crianças que a precede. Diante da afirmação da RC e suas conseqüências julgo necessário expor brevemente algumas considerações sobre a legitimidade teológica do batismo de crianças. Como a refutação do batismo de crianças geralmente está associada também ao rebatismo, a reflexão se torna tanto mais relevante para a IECLB no momento atual.

Nos escritos do Novo Testamento, nenhum batismo de crianças é expressamente relatado. Os relatos apresentam batismos de adultos convertidos à fé cristã. O batismo marca a troca de senhorio – do domínio das “trevas”, o batizado passa ao domínio de Cristo (Colossenses 1.13). A partir desta consciência é possível compreender porque recém convertidos, deixavam-se batizar com “toda a sua casa” (Atos 16. 15; 16. 33; 18. 8; 1 Co 1. 16). O termo “casa” (“oikos” no original grego) referia-se à família em sentido amplo, incluídas as crianças, os escravos e os filhos destes. Para submeter todos os seus familiares ao poder do Espírito Santo, tornando-os partícipes da salvação, é provável que todos – inclusive as crianças – tenham sido batizadas. Evidentemente não eram batizados os familiares que se auto-excluíam, não aceitando a fé cristã (1 Co 7. 12-16).

A pergunta se os primeiros cristãos batizavam ou não suas crianças não pode ser afirmada nem refutada a partir de citações bíblicas. Certo é que em torno do ano 200 existem testemunhos dos Pais da Igreja relatando o batismo de crianças. Em 180, Irineu afirma que “Jesus veio para salvar a todos que são renascidos através dele em Deus: recém nascidos, crianças, adolescentes, jovens e adultos” (Adv. Haer., II, 22.4). O termo “renascidos”, para os pais da Igreja, é termo técnico para o “batismo”. Na Constituição Eclesiástica de Roma, formulada por Hipólito em 215, encontramos a frase: “Primeiro devemos batizar os pequenos. Todos que podem falar por si mesmos. Para aqueles que ainda não sabem falar, falem seus pais ou alguém que pertença à família” (Const.Ecl. XVI, 4). Orígenes, por volta de 240 fala diversas vezes do batismo de crianças. Em seu comentário à carta de Romanos, ele afirma: “A igreja recebeu dos apóstolos a tradição de batizar também as crianças” (Comm. In ep. Rom V, 9).

Os Pais da Igreja, portanto, consideravam o Batismo de crianças uma tradição apostólica. É provável que tenha sido prática comum em toda Igreja Antiga . Esta propagação do batismo de crianças na Igreja Antiga, certamente deu-se pela convicção de que no batismo é Deus que age na vida do batizando, enquanto que este apenas recebe o batismo. A fé, neste caso, é fruto do batismo, ou seja, do agir de Deus. Outro motivo que permitiu a difusão do Batismo de crianças na Igreja Antiga, certamente, foi a convicção de que a Igreja precede o cristão individual como o espaço do senhorio de Cristo onde o Espírito Santo atua e como comunhão dos que crêem e mutuamente sustentam e fortalecem sua fé. Neste sentido, a fé da Igreja sempre precede à do batizando, seja ele adulto ou criança.

A atuação de Lutero e a Reforma Eclesiástica no século XVI coincidem com o surgimento de movimentos “anabatistas” na Suíça, em partes da Alemanha e na Holanda. Segundo estes, o verdadeiro batismo é o batismo com o Espírito Santo ocorrido na fé. O Batismo com água, para eles, apenas é testemunho humano de uma decisão espiritual anterior. A partir destes argumentos, os “anabatistas” rejeitaram – e o rejeitam até hoje – o batismo de crianças, considerando-o inválido, desprezando 1500 anos de história da Igreja. Um adulto batizado como criança, chegando à fé, deverá ser “batizado” novamente.

Lutero condenou o rebatismo duramente. Para ele, quem rebatiza um adulto batizado como criança “blasfema e profana o sacramento em sumo grau” (Catecismo Maior IV, 55). Lutero defende o Batismo de crianças afirmando que a contestação desta prática é “obra do diabo”, que, “através de suas seitas, confunde o mundo” (Catecismo Maior IV, 47). Em defesa do Batismo de crianças Lutero argumenta, em primeiro lugar, com a história da Igreja. Assim, ele diz “Que o batismo infantil agrada a Cristo, prova-o suficientemente sua própria obra. A muitos dentre os que assim foram batizados, Deus os santificou e lhes deu o Espírito Santo. E ainda no dia de hoje muitos há nos quais se percebe que tem o Espírito Santo, tanto a vista de sua doutrina como por causa de sua vida. Assim, também a nós [Lutero fala de si!] outros foi dada pela graça de Deus a capacidade de podermos deveras interpretar a Escritura e conhecer a Cristo, o que não pode suceder sem o Espírito Santo. Agora, se Deus não aceitasse o batismo infantil, a nenhum deles daria o Espírito Santo, nem qualquer parte dele. Em suma, durante todo esse tempo, até o dia de hoje, homem nenhum no mundo poderia ter sido cristão” (Catecismo Maior IV, 49-50). Se Deus agiu através de seu Espírito todo este tempo na Igreja, então, é porque ele se agrada do batismo de crianças – pois “Deus não pode estar em conflito consigo mesmo” (Catecismo Maior, 50).

Como argumento em favor da validade do Batismo de crianças, Lutero esclarece a relação correta entre Batismo e fé. Isto era importante porque os “anabatistas” justamente argumentavam dizendo que somente a fé consciente (de um adulto!) pode receber o batismo. Para Lutero, porém, a obra do Batismo e sua validade para o ser humano dependem exclusivamente da obra que Deus realiza neste sacramento. A fé, ainda que imprescindível, apenas recebe o batismo, confiando na sua obra. Por isso, o Batismo de crianças é válido mesmo que a fé e a confiança no sacramento cheguem mais tarde. Aliás, nem é possível dizer que o batismo de crianças aconteça sem fé. Os pais, os padrinhos, as madrinhas e toda a igreja agem em fé e em esperança: “Levamos a criança ao batismo com o ânimo e na esperança que ela creia; e rogamos que Deus lhe dê a fé” (Catecismo Maior IV, 57). Este, porém, ainda não é o argumento maior que permite Lutero batizar – sejam crianças ou adultos. O batismo acontece porque a Igreja age em obediência ao mandato divino: “Não é, porém, à vista disso que a batizamos, mas unicamente porque Deus o ordenou” (Catecismo Maior IV, 57).

9. O valor maior do documento da RC é o de lembrar a Igreja da necessidade poimênica de atualizar de forma permanente e existencial o significado do batismo para cada pessoa batizada. Concordamos com a RC quando ela afirma: “Carecemos de um RITO que simbolize a celebração da memória do batismo assim como já foi ensaiada em outras comunidades luteranas” . Nas “frentes missionárias”, onde pessoas “tem o desejo de romper de maneira visível com sua velha vida, abraçando sua fé publicamente e de maneira marcante”, esta necessidade torna-se tanto mais aguda. Compreendemos a frustração da RC que esperava encaminhamentos concretos como resultado dos seminários convocados pela IECLB em 1997 e 1998 sobre os temas batismo, rebatismo e fenômenos carismáticos. Tempo precioso foi perdido. A reflexão e a elaboração de materiais teológico-litúrgicos sobre a “memória do batismo”, portanto, é urgente e deve ser incentivada pelos órgãos diretivos da IECLB. O intercâmbio de materiais e experiências com a vigília pascal , momento privilegiado no ano eclesiástico para a memória do batismo, pode ser um bom início. O Conselho de Liturgia e o Centro de Recursos Litúrgicos da EST podem prestar valiosa contribuição à IECLB nesta tarefa.

10. Na seqüência do documento, a RC apresenta duas propostas pastorais-litúrgicas concernentes aos temas batismo e memória do batismo. Passamos a analisá-las:

10.1. “A confirmação do batismo, com a repetição do rito com água”. A RC sugere um ato litúrgico destinado a reafirmar, certificar, comprovar um batismo já realizado. A intenção da RC, sem dúvida é boa e merece atenção. Mas, para não causar interpretações indesejadas, ela deveria ser reelaborada. O termo “confirmação” está próximo demais do sacramento católico-romano da crisma e do culto de profissão de fé luterano que encerra o Ensino Confirmatório. Ademais, o termo sugere que o batismo realizado não tenha validade plena e necessite uma complementação. Lembro que o batismo é sacramento, isto é, ação irrevogável do próprio Deus em nossa vida. Lutero diz: “Ser batizado em nome de Deus é ser batizado não por homens, mas pelo próprio Deus. Por isso, ainda que levado a efeito pelas mãos do homem, não obstante é verdadeiramente obra de Deus mesmo” (Catecismo Maior IV, 10). É evidente que a obra de Deus não necessita de confirmação ou complementação. Qualquer ato litúrgico que insinuasse esta necessidade estaria em conflito com o caráter sacramental do batismo. Como a argumentação da RC tem perspectiva poimênica, sugerimos um ato litúrgico destinado a reafirmar e celebrar a fidelidade de Deus presente na vida do batizado, apesar da infidelidade e pecado deste. Para alguém batizado, a possibilidade de conversão nada mais é do que a possibilidade de retornar à graça do batismo. Assim, esta celebração teria o caráter de renovação dos votos batismais e novo compromisso com a vivência do significado do batismo .

Esta memória do batismo sugerida pela RC recebe uma ênfase toda especial com a sugestão da “repetição do rito com água”. A inclusão de ação simbólica destinada a envolver os sentidos, certamente enriquecerá a liturgia da memória do batismo. Há, entretanto, limites. A ação simbólica jamais poderá induzir a comunidade a interpretar a memória do batismo como rebatismo.

Para embasar a proposta, a RC afirma no documento: “sem dúvida, a prática da confirmação do batismo com a repetição do rito, é doutrinariamente aceita pelo catolicismo Romano.” Trata-se de uma afirmação improcedente. Confrontado com esta afirmação e com a história da “confirmação do batismo” de Gugu Liberato pelo Pe. Marcelo Rossi, o Bispo Dom Angélico Bernardino, Bispo da Diocese de Blumenau/SC, considerou-as um “abuso” .

10.2. “Batismo condicional”. Trata-se de possibilidade teologicamente correta, constando no “Código de Direito Canônico” – “Cân. § 869 – Havendo dúvida se alguém foi batizado ou se o batismo foi conferido validamente, e a dúvida permanece depois de séria investigação, o batismo seja conferido sob condição.” Na nota deste artigo lê-se: “Diversas igrejas batizam validamente; por esta razão, um cristão batizado numa delas não pode ser normalmente rebatizado, nem sequer sob condição” (…) segue a lista das igrejas ortodoxa, veterocatólica, Episcopal, IECLB, IELB, Metodista. Outras igrejas (presbiterianas, batistas, congregacionistas, adventistas e a maioria das pentecostais) não encontram reserva quanto ao rito batismal, embora observem-se problemas advindos da “concepção teológica do batismo”. Mesmo assim, “quando há garantias de que a pessoa foi batizada segundo o rito prescrito por essas igrejas, não se pode rebatizar, nem sob condição”. Há, no entanto, outras igrejas e grupos religiosos (Pentecostal Unida, Igrejas brasileiras, Mórmons, Testemunhas de Jeová, Ciência Cristã, Umbanda etc) de cujo batismo “se pode prudentemente duvidar e, por essa razão, requer-se, como norma geral, a administração de um novo batismo, sob condição”.

É preciso observar com que seriedade o batismo condicional é tratados pela Igreja Católica Romana. Num contexto propenso à solicitações de rebatismo, o batismo condicional poderá sofrer abusos e manipulações. Por isso, é preciso haver legislação oficial da IECLB a respeito que garanta esta mesma seriedade no trato dos casos.

C – O “tratamento de questões relacionadas a interferências de obreiros (no caso carismáticos) em ‘áreas’ de outras comunidades” e o “tratamento de tensões e conflitos internos em comunidades onde a expressão carismática se faz presente”

As questões relacionadas à interferência de obreiros/as em comunidades alheias e os conflitos internos em comunidades atingidas pela “expressão carismática” podem, a meu ver, ser tratadas conjuntamente. Muitas vezes estão relacionadas e associadas. Por um lado, interferências são justificadas por conflitos existentes que estão excluindo pessoas de perfil carismático; por outro, a interferência externa gera novos conflitos.

Trata-se, na verdade da questão da convivência de diferentes espiritualidades em uma só comunidade, paróquia, sínodo, Igreja. É evidente que obreiros/as e leigos/as da IECLB ainda não estão maduros para esta convivência. Em vista dos conflitos, porém, há necessidade de equacionar o problema e encaminhar soluções.

Concordo com a RC que “é praticamente impossível restringirmos a participação de alguém em uma paróquia geograficamente definida”. Porém, extremamente problemáticas são as conseqüências práticas que a RC tira do fato citado acima. É indiscutível a possibilidade de membros participarem em outras comunidades em que não estejam formalmente inscritos. Até é possível inscrever-se em outra paróquia que não a geograficamente mais próxima. Estas questões, em menor ou maior grau, sempre foram tratadas com bom senso na IECLB. Não é possível, porém, estender estes direitos dos membros aos/às obreiros/as da Igreja. Nem a alusão à Constituição Brasileira poderá livrar o/a obreiro/a sujeito/a aos votos de sua ordenação de um processo disciplinar se indevidamente interferir em um campo de trabalho que não lhe foi confiado pela direção da Igreja. Salta aos olhos que o documento da RC utilize a palavra “área” (de outras comunidades) entre aspas. Expressam com isto que a jurisdição de uma paróquia assim como histórica e juridicamente definida está definitivamente relativizada e abolida na IECLB?

O problema da interferência em campo de trabalho alheio, na verdade, é problema antigo. Já o apóstolo Paulo sofreu com a interferência dos assim chamados “pregadores itinerantes” (“charismatische Wanderprediger”) em comunidades por ele fundadas, especialmente em Corinto. A dificuldade e o sofrimento advindas desta intromissão estão registrados em sua segunda carta aos coríntios, não por acaso chamada de “carta das lágrimas”. O renovado estudo desta carta auxiliaria membros e obreiros/as da IECLB a ter maior consideração pela autoridade do ministério conferido a obreiros/as da IECLB e maior respeito pelo campo de trabalho alheio.

Algumas paróquias e sua situação particular são citadas para justificar interferências. Citações deste tipo, porém, pouco ajudam numa discussão objetiva. Devido à ambigüidade das situações, podem ser utilizadas tanto para justificar como para acusar os que, de fora, interferem na mesma. Proponho, porém, levar as situações citadas a sério e, de forma objetiva e imparcial, fazer o estudo de pelo menos um caso. Um estudo de caso possibilitaria à direção da Igreja averiguar o que efetivamente motiva membros a se desligarem da IECLB. O estudo poderia mapear o perfil teológico-espiritual destes membros desistentes. Igualmente, seria possível saber se algum tipo de prática pastoral ao longo de um determinado período leva membros a se desligarem da IECLB por motivos teológico-espirituais. Num estudo de caso desta natureza deveriam estar contemplados os enfoques teológico, histórico e sociológico.

Concordamos com a RC quando afirma que “na comunidade urbana existe uma grande variedade de públicos”. Nem sempre, comunidades e paróquias da IECLB tem tido competência para acompanhar a diversificação das necessidades de seus membros com a paralela diversificação das ofertas eclesiásticas. O ideal de incluir em uma só comunidade e paróquia diferentes expressões de espiritualidade parece ter fracassado até o momento. Se, de fato, estivermos interessados em auxiliar a RC “na manutenção de membros com uma expressão mais carismática”, será necessário buscar modelos que transcendam a experiência da paróquia tradicional da IECLB. Um modelo possível é a criação de paróquias em nível sinodal com um perfil de espiritualidade específico – ex. comunidade/paróquia carismática. A criação destas paróquias/comunidades deveria ser fruto do planejamento pastoral e missionário sinodal para uma determinada região. O que deve ser evitado é a subdivisão de paróquias e comunidades em decorrência da incompatibilidade de espiritualidades.

Blumenau, 03 de agosto de 2004


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