Os cristãos devem converter os muçulmanos?

Autor: David Van Biema
Revista Time – Site da UOL – 22/06/2003

Um novo rebanho de missionários está lançando uma campanha para levar o Evangelho aos países muçulmanos. Mas será que inspirarão mais revolta do que crença?

Ela não era muçulmana, mas seria por ora. Em março passado, no momento em que as tropas americanas se agrupavam fora de Bagdá, ela se misturou aos demais, vestindo uma burca preta, em uma sala de aula lotada no bairro de Queens, em Nova York. A aula que ela estava freqüentando era organizada pelo Centro de Missões Mundiais dos Estados Unidos, e estava lotada de ansiosos estudantes cristãos evangélicos dispostos a aprender a serem missionários em um país estrangeiro. “Shafira”, a mulher vestida de preto, estava corajosamente tentando explicar sua religião.

“A violência não está no coração de todos os muçulmanos”, disse ela em um inglês mal falado, se referindo ao 11 de setembro. “Lamento que pessoas tenham morrido. Eu quero paz para meus filhos. Eu acho que vocês querem paz. É o mesmo”. Ela listou os cinco pilares da fé islâmica, e lembrou a platéia que a guerra santa não estava entre eles. “Nós temos muito em comum”, disse ela, mas ela questionou a Trindade: “Deus Pai mais Deus Maria igual a Deus Filho?”

Um estudante, empolgado com a oportunidade de explicar, se manifestou. Após escutar pacientemente, Shafira tirou seu traje e admitiu que não era uma verdadeira muçulmana. Na verdade, ela era uma antiga missionária cristã nas terras muçulmanas. Ela foi contratada para explicar a várias das 150 classes anuais de “Perspectivas” como a evangelização deve ser feita. Ela deu seu nome real. (Apesar de que para este artigo, para a segurança dos missionários que trabalham em ambientes potencialmente hostis ou que voltarão para eles, serão usados pseudônimos. Eles serão indicados por aspas quando aparecerem pela primeira vez. Muitas localizações também serão omitidas.)

Arma de destruição em massa

Ao longo das próximas três horas, “Barbara”, sem sua burca, apresentou listas de comparações entre Jesus e Maomé (“Jesus ressuscitou dos mortos e está vivo. Maomé está morto”.) e o que fazer e não fazer na pregação aos muçulmanos. (Escute a história deles. Não discuta Israel.) Ela projetou uma declaração do secretário de Justiça dos Estados Unidos, John Ashcroft, em uma tela: “O Islã é uma religião na qual Deus exige que você envie seu filho para morrer por Ele. O cristianismo é uma fé na qual Deus envia Seu filho para morrer por você”. Após a publicação de seu comentário no final de 2001, Ashcroft disse que se referia aos terroristas, e não aos muçulmanos comuns, mas ela não aceitou tal argumento. “O Islã é o terrorista”, afirmou Barbara. “Os muçulmanos são as vítimas”. A aula terminou em oração. “Nós lamentamos a perda de vidas” no Iraque, disse alguém. Barbara acrescentou: “Nós rezamos para que a arma de destruição em massa, o Islã, seja destruída. Senhor, declaramos que seu sangue é suficiente para perdoar cada muçulmano. É suficiente”.

Há 21 meses os americanos estão realizando um curso intensivo sobre o Islã, sua geografia e seus seguidores. Não é um assunto pelo qual nos interessávamos anteriormente, mas 11 de setembro não deixou escolha, e as forças armadas americanas em dois países continuam em meio à ação seu treinamento sobre xeques e aiatolás, hábitos sunitas e a facciosidade xiita. Mas há um grupo que pensa passionalmente nos muçulmanos há mais de uma década. Seu exército não tem armas, seus soldados geralmente não são pagos, seus campos de treinamento são locais como a sala de aula em Queens. Ele não tem ligação com o governo americano (exceto possivelmente ao inadvertidamente sujar a imagem dos Estados Unidos). Mas nos últimos meses, suas forças avançadas têm entrado nos ainda fumegantes campos de batalha do Iraque, com a intenção de moldar o futuro de seu povo assim como as tropas americanas convencionais já dispostas lá.

Fazia um século que a idéia de evangelização do Islã não provocava tamanho fervor entre os cristãos conservadores. Tocados pelas necessidades materiais e (supostas) espirituais dos muçulmanos, e convencidos de que eles são as grandes “megapopulações” que necessitam ouvir o Evangelho antes do eventual retorno de Cristo, os evangélicos têm corrido para o que se tornou o campo missionário mais cobiçado. Dados do Centro para o Estudo do Cristianismo Global do Seminário Teológico Gordon-Conwell, em South Hamilton, Massachusetts, sugerem que o número de missionários nos países islâmicos quase dobrou entre 1982 e 2001 -de mais de 15 mil para algo acima de 27 mil.

Aproximadamente 1 entre cada 2 é americano, e 1 entre cada 3 é evangélico. George Braswell Jr., um professor de missões do Seminário Teológico dos Batistas do Sul, disse: “Agora nós temos, mais do que nunca, interessados em ir até povos como os muçulmanos”. O 11 de setembro parece ter alimentado tal impulso.

Mas este “boom” coincide com o aumento das restrições aos esforços missionários pelos regimes de países de maioria islâmica, e com o aumento da militância anti-Ocidente. As tensões resultantes às vezes irrompem tragicamente: os últimos dois anos viram a prisão de duas missionárias no Afeganistão governado pelo Taleban, e os assassinatos, aparentemente por motivos religiosos, de mais quatro no Iêmen e no Líbano. O atentado à bomba mal feito contra uma família missionária alemã-holandesa em Trípoli, Líbano, sugere que o risco não está diminuindo. Stan Guthrie, autor do livro “Missions in the Third Millennium” (missões no terceiro milênio), disse: “As pessoas estão começando a contar os custos. Se você estiver no lugar errado na hora errada, você pode ser morto. Os missionários sempre consideraram a possibilidade, mas agora é muito mais real”.

Prós e contras

Tais temores, mais a recente entrada de missionários evangélicos no Afeganistão e no Iraque no rastro das tropas americanas, têm levantado outras questões. Os recém-chegados são bem-intencionados: além do Evangelho cristão, que eles consideram seu presente mais precioso, eles canalizam milhões de dólares em ajuda humanitária e dedicam horas incontáveis a trabalhos de caridade. Mas alguns trabalhadores de campo de organizações cristãs mais liberais alegam que algumas das táticas evangélicas mais agressivas podem colocar todas as caridades religiosas em risco, como quando o Taleban, enfurecido com as atividades missionárias há dois anos, fechou todos os grupos cristãos de ajuda humanitária em Cabul. Os críticos muçulmanos acusam os missionários de mentirem sobre sua identidade e fé para atingirem suas metas. E enquanto as tensões entre o Islã e o Ocidente continuam a ferver, alguns familiarizados com o Oriente Médio têm começado a se perguntar se os missionários, que amam os muçulmanos mas desprezam o Islã, são o tipo de embaixadores não nomeados da boa-vontade que os Estados Unidos precisam em uma região cheia de retórica de guerra santa. Charles Kimball, um pastor batista que foi diretor do escritório do Conselho Nacional das Igrejas do Oriente Médio nos anos 80, disse: “Sinceridade não é questão, ou o compromisso com a fé de alguém. Apenas que a região é uma junção chave e volátil, e possivelmente não é o momento para grupos entrarem, pois é como alguém entrar com um fósforo aceso em uma sala cheia de explosivos, vestindo uma camisa de Jesus”.

Quão grande é a proporção de trabalhadores religiosos cristãos que se encaixam neste perfil? Um motivo que dificulta saber é o fato do entusiasmo ser freqüentemente reduzido após algum tempo passado em um país. Há dois séculos, em uma onda semelhante de entusiasmo, seitas maiores como presbiterianos e metodistas enviaram milhares de missionários ao Oriente Médio. Como a onda atual, eles chegaram ansiosos por conversões. Mas com o tempo eles adotaram uma agenda mais modesta, que obedecia as leis locais antiproselitismo e se concentrava na construção de instituições educacionais e de caridade, e na prestação de ajuda humanitária. Tais grupos ainda constituem a grande presença missionária visível na área, e desfrutam de relacionamentos frutíferos e respeitosos, apesar de limitados, com os regimes e populações locais. Mesmo dentro da atual onda evangélica, há uma grande variedade de métodos e atitudes. Alguns missionários, apesar de manterem o direito de evangelizar, inicialmente mantêm a tradição principal de canalizar dinheiro e tempo para atender os muçulmanos necessitados. Outros, à distância, inundam populações inteiras com rádio e TV cristãs, com dezenas de milhares de panfletos e ofertas de cursos por correspondência, na esperança de que algumas sementes germinarão. Nos dezenas de países muçulmanos que negam vistos a trabalhadores religiosos, mais evangélicos assumem empregos seculares para entrarem furtivamente. Muitos demonstram sensibilidade, compartilhando seu Senhor apenas com pessoas com as quais conquistaram amizades íntimas.

Mas resta um contingente perturbador de tamanho indeterminado, que combina arrogância religiosa com ignorância política. Suas atividades não necessariamente causam surpresa ou reprovação nas ruas americanas: entregar fitas cassete ou folhetos, convidar transeuntes para assistir um filme sobre a vida de Jesus, falar sobre Cristo para crianças em meio à distribuição de brinquedos. Mas em sociedades na qual o Estado e a Mesquita estão intimamente interligados, e nas quais a difamação do Islã é um crime e a conversão para fora dele pode provocar violência por parte de vigilantes, os missionários mais audaciosos estão envolvidos, intencionalmente ou não, em uma provocação, e suas ações são debatidas mesmo dentro da comunidade evangélica. Alguns especialistas vêem sua inépcia como produto de seitas pequenas que carecem de recursos para programas de treinamento adequados. Outros sugerem que os culpados são aqueles que não permanecem na região tempo suficiente para testemunhar os ciclos de retribuição que seus estilos confrontadores provocam. Robert Seiple, embaixador geral da Liberdade Religiosa Internacional do Departamento de Estado até 2000 e também evangélico, disse: “Há muito mais gente boa do que ruim. As grandes seitas fazem mais coisas certas do que erradas. Mas o que descobri é que pessoas bem-intencionadas minaram em muitos, muitos casos a mensagem que estavam tentando passar por meio de metodologias inadequadas. Isto resulta em perseguições, e há horas em que você deseja que elas tivessem ficado em casa”.

A experiência de Josh

“Josh” é um novo missionário, mas não é tolo. “Eu nunca faria nada estúpido como pregação espalhafatosa na rua ou abordar alguém que não conheço e entregar literatura”, disse ele. Mas com 24 anos e após apenas oito meses nesta função, ele ocasionalmente fica impaciente. “Eu sou impaciente por natureza”, disse ele, “então talvez a expectativa seja um problema”. Filho de missionários da seita pentecostal Assembléia de Deus, ele cresceu no exterior, mas uma capital árabe ornamentada de palmeiras é seu primeiro posto solo de longo prazo. Ele percorre os bairros operários e se pergunta com quem conversará. Ele gosta de compartilhar Cristo com motoristas de taxi, em parte porque o inglês deles é melhor do que seu árabe de iniciante. Ele apontou para três homens jovens em uma marcenaria como sendo seu público alvo: “Eles são da minha idade”, disse ele. “A geração mais jovem é mais influenciada pelo Ocidente, e estão à procura”. Josh tem seus momentos de animação, como quando um menino do bairro o comprimenta, dizendo: “Você é um bom muçulmano… quero dizer, cristão”. E há vezes em que se sente “sobrecarregado. Eu sou só uma pessoa -o que posso fazer para ajudar?” Mas a cada momento ele se lembra do motivo de estar aqui. O primeiro chamado do muezim para a oração ocorre às 4 horas da manhã. E Josh reza. “Eu rezo para que as pessoas respondam”, disse ele. “Eu rezo para que, enquanto sigam para a mesquita, de alguma forma Jesus se revele a elas. Eu rezo contra aquele chamado -que ele não afete suas almas”. Ele reza para que possa ajudar a remover “esta atmosfera espiritual totalmente opressiva”.

No sentido teológico mais amplo, Josh e outros missionários de Cristo estão respondendo ao chamado de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como a Grande Missão: “Ide, portanto, e fazei discípulos todos os povos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto eu vos mandei”. Desde a Idade Média, missionários -reverenciados por alguns, vilipendiados por outros- têm estado entre os grande polinizadores do cruzamento de culturas da história.

No século passado, à medida que os protestantes e a Igreja Católica Romana nos Estados Unidos adotavam um evangelho mais social que acentuava a ajuda aos pobres acima da pregação aos incultos, a evangelização no seu sentido mais puro coube aos evangélicos. Rara é a igreja protestante conservadora que não tenha enviado seus adolescentes em viagens missionárias curtas ou para atuarem como anfitriões de missionários em casa, com suas histórias cheias de lugares exóticos e conversões. Apesar de nunca admitirem, aqueles que retornam são modelos de evangelização, tornando sua filosofia de pregação incansável o trabalho de suas vidas. Beth Streeter, uma consultora de atendimento de saúde de Moraga, Califórnia, que partiu em uma curta viagem missionária ao Egito com seu marido e dois filhos pequenos após 11 de setembro, disse: “Quando você acredita no seu íntimo que o amor de Jesus Cristo é realmente o melhor presente para a humanidade, você deseja encontrar formas e lugares para que as pessoas possam ouvir isto. Às vezes isto nos leva a lugares que podem ser difíceis e desconfortáveis”.

Outros destinos

Nos anos 70, os grandes campos missionários eram na América Latina, onde o protestantismo conservador disputava com o catolicismo os corações dos pobres, e (para os mais audaciosos) nos países da África e da Cortina de Ferro. Mas o foco gradualmente mudou. Um estrategista de missões chamado Ralph Winter sugeriu em 1974 que os cristãos mudassem sua atenção de áreas já expostas a Cristo para “grupos não atingidos”, que nunca ouviram o Evangelho. O plano tinha atrativo especial para aqueles que lêem literalmente outro verso de Mateus, sugerindo que quando todas as nações forem alcançadas, o muito aguardado final dos tempos poderia começar. Em 1989, um evangelizador de origem argentina, Luis Bush, apontou que 97% dos não evangelizados viviam em uma “janela” entre as latitudes 10a. e 40a. Esta imensa faixa global, ele explicou, era desproporcionalmente pobre; a maioria de seus habitantes eram “escravizados” pelo Islã, hinduísmo e budismo e, portanto, por Satã.

Em um documento posterior, Bush convocou os cristãos a vestirem “a armadura de Deus e combater com as armas da guerra espiritual”. (Ele enfatizou para a Time que não falava em ação militar.) Sobre o Islã especificamente, ele escreveu: “De seu centro na Janela 10/40, o Islã está se expandindo energicamente para todas as partes do mundo; em uma estratégia semelhante, nós devemos penetrar em seu coração com a verdade libertadora do Evangelho”. Muitos partiram para a Janela.

Rebanho desgarrado

Apenas para encontrá-la fechada. Das três religiões abraâmicas, o Islã é a que mais ferozmente se opõe ao desgarrar do rebanho. A lei shari’a pede pena de morte para aqueles que se convertem a outras religiões, e apesar da lei não ser aplicada na maioria dos países de maioria muçulmana, a perseguição é comum. Isto por si só não impediria o trabalho missionário. A maioria dos evangelizadores a aceitam como um custo da difusão da fé. O que conteve seus esforços foi uma medida mais prosaica: a eliminação gradual na maioria dos países muçulmanos dos vistos profissionais de “trabalhador religioso”. Organizações estabelecidas construídas em torno de missionários assalariados se viram incapacitadas.

Então foram suplementadas por algo mais maleável. A abordagem foi chamada de “tentmaking” (fazer tendas), imitando o Apóstolo Paulo, que se mantinha praticando tal ofício enquanto divulgava a palavra de Cristo pelo Mediterrâneo. Como Paulo, os novos missionários não montam um escritório de evangelização. Eles assumem empregos diurnos -freqüentemente em ajuda humanitária, desenvolvimento ou outras áreas na qual o país anfitrião careça de especialistas- e pregam não oficialmente. As possibilidades são infinitas -sites evangélicos na Internet apresentam referências para engenheiros mecânicos em “uma grande cidade árabe”, vendas de computador em “um país islâmico” e aulas de comércio e administração no Quirguistão- e seminários de recrutamento de missionários podem acabar soando como feiras de empregos. Em uma pequena igreja do Tennessee, um facilitador de missões garantiu aos seus ouvintes que “se você fala inglês de nascença e pode embaçar um espelho, então você é capaz de ensinar” inglês no exterior. Ele projetou um desenho em uma tela para mostrar as vantagens de não ser oficial: um homem vestindo um turbante e portando uma adaga pára um missionário padrão, carregando pasta, em uma barreira, enquanto outro ocidental carregando uma caixa de ferramentas atravessa tranqüilamente, seguindo na direção de uma mesquita que fica no caminho.

“Henry” e “Sarah” praticam um tipo de evangelização que pode agradar ao mais ferrenho agnóstico. No início dos anos 80, eles chegaram a um país no Norte da África onde atuam como líderes de equipes missionárias. “Nós não queríamos uma passagem rápida, cumprir nosso ofício e pregar”, disse Sarah. “Nós queríamos viver”. Eles fundaram uma empresa de turismo de aventura e fizeram amizades. Eles conversavam sobre esportes, impostos e filhos com seus vizinhos, iam acampar com eles e se juntavam a eles nos dias sagrados muçulmanos. Eles não escondiam sua fé, mas não a forçavam sobre os outros, assim, quando o amigo de um amigo, que fez um curso de cristianismo por correspondência, os abordou em nome de sua família, eles compartilharam Cristo segundo seus termos. “Eles nos procuraram”, insistiu Henry. Os dois clãs se tornaram próximos e ainda são; eventualmente vários dos muçulmanos abraçaram Cristo. Para os teóricos do “tentmaking”, isto se chama “evangelismo de relacionamento”. Henry preferiu falar da diferença da conotação entre duas palavras árabes, “tansir” e “tabshir”. “‘Tansir’ significa coagir pessoas a mudar sua religião”, ele explicou. “‘Tabshir’ significa compartilhar, ser testemunha”.

Em sua forma mais sutil, o “tentmaking” incorpora as palavras de São Francisco: “Pregue o evangelho o tempo todo; quando necessário, use palavras”. (“Seja o amigo de alguém, não um vendedor da Amway”, parafraseou um veterano.) Mas às vezes o status clandestino pode gerar maus hábitos. As proibições de visto tornam muitos evangélicos, geralmente exageradamente honestos, em distorcedores da verdade, mesmo que apenas no balcão da alfândega. Eles usam e-mails encriptados e códigos de palavras, e fazem contrabando de Bíblias. “Alguns parecem se inspirar no Livro de James, versículo 007”, disse um pastor cristão no Marrocos. Não é realmente culpa deles, disse o líder de uma missão, argumentando: “Não deveria ser perigoso para uma pessoa mudar para um país diferente e, usando as palavras da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, ‘manifestar sua crença em ensino, prática, adoração e cerimônia'”. Mas uma cena de sala de aula na Universidade Internacional de Columbia na Carolina do Sul, relatada no ano passado pela revista “Mother Jones”, demonstra uma elasticidade ética enervante. “Jesus já mentiu?” perguntou o conferencista. Sua turma respondeu, “Não”. “Mas Jesus já levantou a mão e disse: ‘Eu juro dizer a verdade, toda a verdade e nada além da verdade?'” Novamente, as 20 vozes responderam, “Não!” (O instrutor confirma a citação mas disse que ela foi tirada do contexto.)

Mesquitas de Jesus

E há as aparentes tentativas de alguns missionários de camuflar sua fé como um tipo de Islã: convidando convertidos potenciais às “mesquitas de Jesus”, recitando publicamente o credo muçulmano, “Não há outro deus senão Deus, e Maomé é seu Profeta”; ou se permitindo serem considerados como muçulmanos místicos, ou sufis. Tais técnicas são racionalizadas como parte da “contextualização”, a necessária apresentação de novas idéias em um idioma familiar. Mas Ibrahim Hooper, do grupo de defesa de Washington, Conselho de Relações Americanas-Islâmicas, alegou: “Eles sabem que não adianta apenas dizer, ‘eu quero que você se torne cristão, e este é o motivo’. Então eles têm que fingir ser muçulmanos”. Alguns evangélicos também estão preocupados. A mesquita de Jesus “confunde a questão”, disse um missionário na Jordânia. “Se os muçulmanos vierem para Cristo, eles realmente precisam saber para o que estão vindo”.

Parte do segredo pode ser desnecessário. David English, diretor-executivo de uma agência de ajuda a “tentmaking” chamada Global Opportunities, apontou que mesmo na Arábia Saudita, um dos países de maioria muçulmana mais restritivos, “foi esclarecido que se no curso normal do seu trabalho as pessoas perguntarem sobre sua fé, você é perfeitamente livre para falar a respeito e explicá-la. Não há lei contra a conversão -eles ainda não jogam de forma justa- mas isto já está bom”. Outros especialistas dizem que os líderes locais freqüentemente toleram pregação informal como o preço para contar com a perícia ocidental em outros campos. Daryl Anderson da Igreja Evangélica Livre da América, cujos missionários atuam inicialmente em áreas de saúde e tecnologia da informação, disse: “Nós somos criativos para encontrar onde coça no governo, para que possamos coçá-lo. E dependendo da pureza ideológica da agência do governo, nós temos uma certa liberdade para falarmos abertamente sobre nossa fé”.

Mas tal aceitação informal pode evaporar quando um regime reprime ou um missionário se torna mais assertivo. Em agosto de 2001, o Taleban do Afeganistão prendeu Heather Mercer, 24 anos, e Dayna Curry, 29 anos, que viajaram de uma igreja no Texas para trabalhar para um grupo chamado Abrigo Alemanha em Cabul. Nos três meses que passaram presas, resgate subseqüente e visita ao presidente Bush no Jardim das Rosas, a imprensa se referiu a elas como “trabalhadoras cristãs de ajuda humanitária”, deixando implícito que estavam apenas envolvidas em ajuda humanitária, e que a alegação de seus encarceradores de que estavam tentando converter muçulmanos era falsa.

Mas no livro delas, “Prisioners of Hope” (prisioneiras da esperança), Mercer e Curry escreveram que começaram a praticar orações cristãs com os muçulmanos, os convocando a escutarem as transmissões de rádio evangelizadoras (em um caso fornecendo o rádio) e mostrando a pelo menos duas famílias um filme sobre Jesus. “Nós sabíamos que o Taleban proibia não-muçulmanos de compartilharem sua religião com os afegãos”, declarou a mulher. Mas elas alegaram que isto violava as normas internacionais, e escreveram: “Nós acreditamos que os afegãos -como todos os povos- devem ao menos ter a oportunidade de ouvir sobre os ensinamentos de Cristo se assim quiserem”. Para a Time, Mercer disse: “Eu aguardo ansiosamente o dia em que o povo do Afeganistão, e de nações como aquela, terá liberdade para escolher a quem seguir -liberdade de religião e consciência”.

Tais sentimentos são bastante nobres. Mas os atos das mulheres foram impopulares com uma grande quantidade de grupos de ajuda humanitária de Cabul, desde trabalhadores seculares até outros evangélicos. “Elas violaram todas as regras do livro”, disse Seiple, o ex-embaixador da liberdade de religião do Departamento de Estado. “Elas eram mulheres em uma sociedade patriarcal, não sabiam (bem) a língua, não conheciam a cultura e foram aconselhadas a não fazerem aquilo por outros cristãos”. “Kay”, uma veterana de 13 anos em missões evangélicas em outra capital muçulmana e que disse que o incidente eventualmente interferiu em seu próprio trabalho, disse: “Eu lamento o fato delas terem sofrido, mas elas não pensaram. Elas não mediram as conseqüências mais distantes de seu idealismo”.

Missionários em risco

Uma recriminação intercristã também surgiu após a morte chocante em novembro passado de Bonnie Witherall, uma assistente de enfermagem de 31 anos da clínica pré-natal da Aliança Cristã e Missionária em Sidon, Líbano, uma instalação fundada em parte pela organização Samaritan’s Purse (Bolsa do Samaritano) de Franklin Graham. Certa manhã, quando ela chegou para abrir a clínica, um agressor desconhecido disparou três vezes contra ela na cabeça. O assassinato dela pode ter sido simples antiamericanismo, já que ocorreu após um dos editais belicosos de Osama Bin Laden. Mas o New York Times noticiou que membros da Aliança -que ostentam uma bandeira que diz em árabe, “E Jesus disse para eles: Eu sou o pão da vida, e quem vier a mim não terá mais fome”- tinham recebido ameaças após imãs locais os terem denunciado por entregarem literatura cristã e terem evangelizado jovens muçulmanos.

Isto é legal no Líbano, mas é considerado tanto por muçulmanos quanto por alguns líderes cristãos como uma ameaça à frágil paz entre as seitas do país. Assim o arcebispo católico local, ao mesmo tempo em que condenava o crime, sentiu que era necessário anunciar: “Nós não aceitamos este tipo de pregação. Nós a rejeitamos totalmente”.

“Sam”, de 46 anos, lembra do dia em que soldados israelenses avistaram sua van Citroen branca no acostamento de uma estrada vicinal nos arredores da cidade de Nablus, na Cisjordânia, e ao ouvirem o murmurinho atrás de suas cortinas fechadas, concluíram que tinham encontrado um ninho de homens-bomba suicidas. Os americanos deixaram o veículo com armas apontadas para eles e explicaram que os seis palestinos que os acompanhavam eram um grupo cristão clandestino de estudo da Bíblia, que estava evitando os olhares dos vizinhos. “Eles estão correndo risco de serem mortos”, ele disse aos soldados desconcertados. Sam alega ter levado mais de 100 palestinos para Cristo, mas disse que são eles que são heróicos, não ele. Alguns dos convertidos, disseram seus companheiros de seita e diplomatas locais, pagaram por sua fé com prisões, surras e tortura nas mãos das forças palestinas. As mesmas fontes informam que um homem foi entregue para os milicianos do Fatah, que o mataram.

Paul Marshall, do grupo de direitos humanos Freedom House, disse que apesar da conversão ser um crime em alguns países de maioria muçulmana, “o maior problema é que outra pessoa, um familiar ou vigilante local, matará você, e o Estado não intervirá”. Um estudo de 2001 preparado para a Junta de Missão Internacional da Convenção Batista do Sul por um coordenador de estratégia para “grupos de pessoas não atingidos” no Chifre da África, descreve sua experiência em um país onde, ele alega, “a maioria dos crentes em Jesus Cristo foram sistematicamente perseguidos e martirizados”. Tais riscos apóiam o argumento missionário de que alguns muçulmanos permanecem na religião menos por fé e mais por temor. Mas a perseguição representa para os evangelizadores um problema adicional e potencialmente embaraçoso de risco relativo, dado que (apesar das quatro mortes recentes) os convertidos estão em risco muito maior do que aqueles que os conduzem até Cristo.

Conversão

A conversão é um ato de livre arbítrio, e os muçulmanos sabem dos riscos. Mas é preciso compartilhar da fé de Wally Rieke, candidato a coordenador da agência Serving in Mission (servindo em missão), para aceitar sua observação de que “a segurança e o cuidado dos convertidos cabe ao Senhor, não a nós. Se dependesse de nós, nós teríamos muitas pessoas em risco”. De forma semelhante, o resultado do relatório batista diz que “os missionários necessitam de resistência espiritual, para que quando for exigido que os frutos de seu testemunho caminhem pelo fogo, o missionário não fique automaticamente tentado a resgatá-los”. Ele continua: “Evitar perseguição significa impedir o crescimento do reino de Deus”. Os missionários também enfrentam acusações de indiferença negligente em relação às represálias que eles às vezes atraem para as igrejas cristãs já existentes e aos grupos de ajuda humanitária não evangelizadores. Lamin Sanneh, um muçulmano convertido ao catolicismo que ensina história do mundo em Yale, disse: “Eles chegam, não informam as igrejas locais, mexem no vespeiro e então desaparecem quando a situação fica difícil. Por que começar uma controvérsia quando você não vai estar lá para enfrentar o impacto dela?” Seiple disse que após a prisão de Curry e Mercer no Afeganistão, “todas as outras organizações cristãs foram expulsas até a queda do Taleban”.

Para “Robert”, os dias de espera pareceram ter acabado. Por meses o evangelista vagamundo se manteve discreto, aguardando a abertura de seu mais recente campo de missão escolhido, o Iraque. Ele viveu discretamente em uma capital próxima, se referindo ao Iraque em código. Mas após a libertação de Bagdá, Robert estava pronto para agir. Ele planejava entrar no Iraque com uma equipe secular de ajuda humanitária -uma espécie de “tentmaking”- mas presumiu que seus trabalhadores poderiam se virar sozinhos posteriormente, imprimindo antecipadamente panfletos em árabe. Nem todos os missionários apoiaram a guerra no Iraque, mas Robert se identificava com George W. Bush. “Algo que você precisa entender é que diplomacia não funciona com Satã”, disse Robert por e-mail. Ele compreende que inserir um evangelho intransigente em um local e momento tão sensíveis pode provocar hostilidade. Mas ele vê isto como uma conseqüência inevitável. “Se a armadura de Satã for perfurada, então a fissura será violentamente contestada em cada ponto”, ele escreveu. Ele previu que quando Cristo for proclamado no Iraque, haverá “tumultos”. Afinal, ele explicou, seu mandato “é virar o mundo de cabeça para baixo”.

Mas vale a pena perguntar se este é um mandato com o qual os americanos em geral gostam de ser identificados. Os missionários geralmente reclamam do sofrimento com a percepção muçulmana em geral dos americanos como sendo fornecedores de cultura “trash” e libertinagem. Mas com a nova onda agressiva de evangélicos e a situação sensível no Oriente Médio, o sapato pode estar no outro pé: os missionários podem afetar a forma como o mundo muçulmano vê os Estados Unidos.

Muito foi feito pelo estranho papel triplo de Franklin Graham como crítico do Islã (“uma religião muito maligna e doente”), favorito do governo Bush (ele rezou na missa de Sexta-Feira Santa no Pentágono) e suposto fornecedor de ajuda humanitária e Evangelho ao país recém-libertado. Mas Graham é apenas uma parte da onda missionária no Iraque, composta não apenas de caridades não-proselitizadoras, mas também de grupos evangélicos como o dele. Alguns oferecem apenas ajuda material; outros ajuda somada às Boas Novas. Outros como a Sociedade Internacional da Bíblia e a Discipling a Whole Nation (Dawn, tornando todo um país apóstolo) se concentram apenas na divulgação da palavra de Deus. Por décadas a evangelização não desfrutava de tamanha cabeça de ponte no Iraque. Rich Haynie do Dawn disse que até a ponto do bombardeio aliado ter induzido os muçulmanos a questionar seu deus, “nós podemos dizer que a guerra foi um momento de amadurecimento”.

Este tipo de linguagem perturba Kimball da Wake Forest (floresta desperta), que recentemente escreveu um livro, “When Religion Becomes Evil” (quando a religião se torna maligna). “Esta é uma área que vive com uma história de cruzadas e na sombra do colonialismo”, disse ele. “A imagem da invasão de uma poderosa potência militar já provoca profundo questionamento quanto as intenções dos Estados Unidos. Se você adicionar uma agressiva presença missionária, será fácil ver isto como uma espécie de triunfalismo cristão americano”. Azzam Tamimi, diretor do Instituto do Pensamento Político Islâmico com sede em Londres, disse: “Onde quer que eu vou, as pessoas dizem, ‘você soube que missionários americanos na Jordânia estão esperando para entrar no Iraque?’ Estas são pessoas cultas; sob circunstâncias normais, os missionários não seriam grande coisa, mas agora as pessoas acham difícil acreditar que isto não é uma cruzada contra o Islã por parte do governo Bush”.

Mensagem de amor

Os evangélicos afirmam repetidas vezes que sua mensagem se baseia no amor. Eles estão muito melhor informados e mais ativamente preocupados do que o cidadão americano comum sobre as necessidades materiais do mundo islâmico, e seu desejo de compartilhar Cristo nasce principalmente de um impulso generoso semelhante. As alegações de que os grupos de ajuda humanitária cristãos praticam caridade como “cobertura” para a conversão presta um desserviço aos esforços humanitários, muitas vezes heróicos, de trabalhadores que acreditam que os cristãos deveriam prestar atenção não apenas à mensagem de salvação de Jesus, mas também ao seu exemplo como alimentador e curandeiro. Mas não há dúvida de que apesar da maioria dos missionários evangélicos amarem os muçulmanos, eles esperam substituir o Islã. Alguns se encolhem diante da descrição “maligna e doente” de Graham, mas sua crítica é mais contra o tom do que quanto ao conteúdo. Uns poucos sugerem que apenas partes do Islã, e não o seu todo, são desencaminhadas. Mas a maioria assina embaixo a generalização de Luis Bush sobre o Islã, budismo e hinduísmo: “Satã deseja manter as pessoas na condição mais miserável possível pelo maior tempo possível”.

Claramente, esta ideologia é conflitante com as declarações do presidente Bush de que o Islã é uma religião de paz, com sua visita a uma mesquita em Washington, D.C., e seu convite a muçulmanos proeminentes a encerrarem seu jejum do Ramadã na Casa Branca. Suficientemente amplificada, isto também poderia complicar os esforços americanos para incentivar os moderados do Islã no Oriente Médio. Mas o governo não vê desta forma. Os funcionários do governo admitem a existências de uns poucos “caubóis”, mas na maioria, disse um, os missionários “geralmente ajudam as pessoas, e não apenas porque desejam convertê-las”, e os muçulmanos estão felizes com a ajuda. Durante a discussão do papel de Graham no Iraque, uma porta-voz da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos destacou para um repórter do site Beliefnet que o governo não pode controlar as organizações de caridade privadas. E um alto funcionário do governo disse à Time que dado os laços estreitos do presidente com a direita cristã e seu apoio ao trabalho de caridade baseado na fé, há pouca chance da Casa Branca desencorajar as organizações de ajuda humanitária cristãs de irem ao Iraque.

O debate nacional em torno dos missionários no Iraque tem provocado um discurso paralelo na comunidade evangélica, ou melhor, um novo capítulo no diálogo em andamento sobre como melhor divulgar a palavra de Deus. Em um encontro convocado no mês passado pelo Centro de Ética e Política Pública, um centro de estudos de Washington, fervor e autocrítica se misturaram ao senso de que a introdução dos muçulmanos ao cristianismo pode estar entrando em um estágio crítico. “Se não fizermos isto corretamente desta vez, nós poderemos nos tornar irrelevantes”, se preocupou um participante. Outro, Serge Duss, da caridade cristã World Vision International, afirmou que a atual controvérsia é apenas um “mero ‘blip’ na tela do radar”. O valor das missões cristãs não será julgado segundo os últimos meses, mas segundo o último meio século, durante o qual, “por amarmos Deus e amarmos o próximo”, elas estiveram “na vanguarda do fornecimento não apenas de ajuda humanitária, mas desenvolvimento, atendimento médico para crianças, saneamento e comunicações”. Em alguns momentos, disse Duss, “nós pudemos ser mais abertos quanto à nossa fé cristã, e em alguns momentos não. E este”, ele acrescentou, “é o momento em que precisamos ser mais sábios”.

E no final, a sabedoria vem do alto. O muezim chamou mais duas vezes, e Josh, o missionário de primeira viagem, olhou pela sua janela para uma velha encurvada em um manto ondulante, subindo uma colina vizinha. A visão ativa algum tipo de sinapse no local de convergência entre sua ansiedade juvenil, seu desejo de compartilhar, o impulso de se intrometer e a convicção de que a providência de Deus resolverá tudo. “Eu vejo pessoas como ela, e me pergunto, qual é a história dela?” disse ele. “O que posso fazer para ajudá-la? Quando sinto o chamado em meu coração, eu não vejo como é possível estar aqui e não querer poder me dirigir às pessoas, amá-las, conhecê-las. Todo dia eu digo para Deus: me use. Me diga o que fazer. Me diga o que dizer”.

Tradução: George El Khouri Andolfato

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