Gemidos da Criação e arrepios da Teologia: sussurros éticos nos ouvidos da Igreja

Autor: Carlos Eduardo B. Calvani

O estudo da sexualidade no cristianismo é uma difícil e constrangedora tarefa. O cristianismo nunca lidou de forma muito livre e sadia com a sexualidade. No escopo das religiões monoteístas, o cristianismo, oficialmente, é a única religião que recusa ou omite dados sobre a vida sexual de seu fundador. No judaísmo e islamismo, Abraão, Moisés e Maomé foram casados, e até onde se sabe, ao menos Abraão e Maomé tiveram várias mulheres e filhos. A teologia cristã oficial não apenas recusa vida sexual a Cristo como também a seus pais, pelo menos no ensino da Igreja Católica Romana. E no que se refere à sexualidade, protestantes e católicos sempre foram muito ecumênicos, pois ambos conseguiram, de diferentes maneiras, retirar da própria Maria, mãe de Jesus, o direito de gozar e satisfazer-se sexualmente. Somos herdeiros de uma longa tradição de desconfiança para com a sexualidade e tudo que ela envolve.

1. Sexualidade – sempre vivenciada, sempre condenada.

Boa parte da polêmica em torno da compreensão da sexualidade e da homossexualidade em nossa Comunhão Anglicana é resultado de séculos de ensino e prática dualistas que separam sexualidade e espiritualidade. A metodologia da história das idéias nos ajuda a verificar como os escritos do passado serviram para legitimar interesses sociais e criar uma certa esquizofrenia teológica em torno desse assunto. Nas últimas décadas surgiram obras tentando tratar da sexualidade de forma mais positiva, porém, certas amarras e compromissos com o passado ainda tornam tais discursos um tanto ambíguos. É o caso, por exemplo, de um livro de Norman Geisler, (Ética Cristã – alternativas e questões contemporâneas), que por ser muito lido e estudado entre os evangélicos, tornou-se um clássico na área. Nesse texto, o autor afirma: “Basicamente, a Bíblia diz três coisas acerca do sexo: 1) o sexo é bom; 2) o sexo é poderoso e, portanto, 3) o sexo precisa ser controlado” . Segundo esse autor, apesar do sexo ser essencialmente bom, precisa ser controlado, pois “ninguém em sã consciência deixaria crianças imaturas brincar com dinamite” . A ambigüidade no trato da questão é bastante evidente: por um lado apresenta-se o sexo como bênção e graça, capaz de proporcionar prazer aos que o praticam; por outro lado, afirma-se categoricamente que a sexualidade só pode ser desfrutada dentro do casamento monogâmico entre um homem e uma mulher, nunca antes do casamento por pessoas solteiras, nem fora dos limites do casamento.
Todos nós sabemos o quanto os escritos de Agostinho e outros padres da Igreja influenciaram a sexualidade ocidental. Conforme Agostinho, “nupcial e sem pecado, apenas a relação sexual necessária à procriação” . Antes de se converter ao cristianismo, Agostinho teve várias e diferentes experiências sexuais que posteriormente ele passa a deplorar como obstáculos à elevação da alma à beatitude e comunhão com Deus. Quando, por exemplo, ele se pergunta porque o homem necessita de uma mulher, a resposta mais aceitável ao teólogo é dizer que a única utilidade (sic) da mulher era a procriação, a capacidade de gerar filhos  .
No clássico, A Cidade de Deus, Agostinho chega a dizer que o ato sexual é uma espécie de espasmo, no qual todo o corpo é agitado por sobressaltos horríveis e o homem perde todo o controle sobre si mesmo. Em suas palavras, “o desejo não se contenta de tomar conta do corpo inteiro, dentro e fora, sacode o homem inteiro, unindo e misturando as paixões da alma e os apetites carnais para chegar a essa volúpia, a maior de todas entre aquelas do corpo; de maneira que, no momento em que chega a seu ápice, toda acuidade e o que poderíamos chamar a vigilância do pensamento são quase aniquiladas”.  Obviamente, o “santo” falava do orgasmo, por experiência própria. Gregório Magno, importante teólogo da Igreja antiga, ao refletir sobre o prazer sexual afirmava “não basta dizer que o prazer não é meta lícita nas relações sexuais, mas quando ocorre, há transgressão das leis do matrimônio” . O orgasmo e o prazer sexual, tão importantes para o bem estar humano foi reprovado e condenado durante séculos e, diga-se de passagem, isso não afetou apenas as classes menos educadas, mas até mesmo grandes intelectuais e pensadores. Basta lembrar a reação que muitas pessoas da bem educada elite européia tiveram na época em que Freud começou a publicar seus textos e, sobretudo quando Reich afirmou a importância e o valor do orgasmo para a sanidade humana. O resultado dessa longa herança reflete-se hoje na incapacidade que temos de lidar com assunto tão relevante, da vergonha e excesso de discrição que temos ao comentar nossos próprios dilemas sexuais ou nossas fantasias. Rubem Alves está correto quando afirma que “toda religião que, em nome de uma ordem espiritual, impõe sobre o corpo um regime de sistemática repressão, tende a produzir personalidades neuróticas”  .

2. Homossexualidade – Vício sodomítico ?

Em virtude de toda essa tradição não é de se espantar quando verificamos tudo o que foi e tem sido dito sobre as pessoas homossexuais no decorrer da história do cristianismo. Devemos levar em conta que o conceito de homossexualidade é relativamente recente. Os autores antigos não utilizavam essa terminologia, mas referiam-se a essa prática com expressões bastante negativas como “luxúria”, vitium sodomiticum, e peccatum contra naturam.
A maior parte dos discursos religiosos atuais, principalmente evangélicos, não é muito diferente dos discursos medievais. A atual geração de líderes evangélicos brasileiros foi formada nos anos setenta e oitenta lendo textos de autores que se especializaram em aconselhamento e que vendem aos rodos, tais como Jaime Kemp e o casal Tim e Beverly LaHaye. Os LaHaye referem-se à prática do homossexualismo como “o pecado supremo, que faz com que Deus desista do homem” , ou seja, classificam a prática homossexual como algo equivalente ao pecado contra o Espírito Santo.
Jaime Kemp, famoso autor americano radicado no Brasil há mais de 30 anos e que se especializou como consultor de sexualidade, palestrante em vários eventos ligados aos grupos evangélicos, escreveu certa vez um livro em que responde a várias perguntas a ele enviadas por jovens. Uma delas era: “por que tenho desejos homossexuais?” Kemp, sem rodeios, responde, afirmando: ‘um homossexual é doente, não porque ele tem um jeito efeminado, mas por que ele perdeu a sua identidade como ser humano” . Somente nos últimos anos é que alguns grupos evangélicos têm se disposto a lidar com essa questão de forma menos preconceituosa, mas a tendência geral continua a encarar a homossexualidade a partir de uma dessas três óticas: a) biologicamente como uma prática contra a natureza; b) psicologicamente como um desequilíbrio, anomalia ou doença que precisa de cura, e c) teologicamente como pecado de sodomia ou até mesmo como resultado de possessão demoníaca.
A expressão “sodomia” era muito comum nos discursos éticos da teologia medieval. A origem da palavra remete a um dos mitos relatados em Gênesis: a destruição de Sodoma e Gomorra. No mito, afirma-se que os habitantes de Sodoma quiseram ter relações sexuais com mensageiros enviados por Deus. O mito certamente servia como justificativa ideológica para o judaísmo condenar as pessoas homossexuais, associando-as com os habitantes de Sodoma. Some-se a isso, o fato de que Jesus, ao condenar cidades como Corazim, Betsaida e Cafarnaum, referiu-se à destruição de Sodoma e Gomorra. Parece-me, porém, necessário perguntar pelo contexto dessas palavras de Jesus. Nos lábios de Jesus, essas cidades são tomadas como padrão para condenar Cafarnaum e outras cidades de sua época, mas nenhuma menção é feita por Jesus a respeito de supostas práticas sexuais dos habitantes de Cafarnaum. O centro da condenação dessas cidades (Cafarnaum, Betsaida e Corazaim) reside no fato de que seus habitantes rejeitaram o anúncio do evangelho, a boa notícia que Jesus trazia, tal como os habitantes de Sodoma recusaram o sagrado dever cultural semita da hospitalidade, sobretudo porque naquele relato os hóspedes de Ló eram mensageiros enviados por Deus. Jesus nunca fala dos sodomitas associando seu comportamento à sexualidade, mas à rejeição da mensagem divina. Além disso, no contexto do cristianismo primitivo, era dever de todas as famílias unidas a Cristo, receber, acolher e hospedar os carismáticos itinerantes que espalhavam o evangelho, curavam e anunciavam o juízo escatológico. Sodoma torna-se no evangelho, símbolo da falta de acolhimento, da falta de hospitalidade e generosidade, da recusa a ouvir uma mensagem de renovação. Não se pode, portanto, usar o texto bíblico para falar de Sodoma e concentrar-se apenas na questão de uma estória sobre desejos de relacionamentos homossexuais. O pecado dos sodomitas foi uma combinação de arrogância, orgulho, ingratidão, falta de hospitalidade e, sobretudo, rejeição e recusa à mensagem de juízo e salvação de Deus. Infelizmente por terem se concentrado num detalhe periférico do texto, muitos teólogos da igreja passaram a utilizar a expressão “sodomia” associando-a apenas a práticas homossexuais, sem perceber que “sodomia” é, fundamentalmente, recusa a abrir-se à mensagem divina, rejeição da visitação divina, falta de hospitalidade e abertura ao outro (os visitantes) e insensibilidade para com a mensagem de juízo e salvação.
A partir daí, entendo que os homossexuais devem rejeitar vigorosamente o uso da palavra “sodomia” para referir-se a seu comportamento sexual – por ser uma palavra pejorativa e um termo teológico inadequado – e devolvê-lo corretamente aos que, como Kemp e os Lahaye, se julgam bons demais para se deixarem questionar em suas posições pré-estabelecidas. O termo “sodomita” pode muito bem ser aplicado a esses autores, não por suas práticas sexuais que a ninguém interessa, mas pelo orgulho, prepotência, falta de respeito e indisposição para acolher com dignidade os diferentes.
Peccatum contra naturam – Problemas éticos e teológicos do conceito de natureza
Outro argumento utilizado na ética cristã conservadora para condenar o homossexualismo é a afirmação de que essa era uma prática contrária à natureza (peccatum contra naturam). Até hoje esse argumento é muito utilizado pela maioria dos teólogos e pregadores que condenam o homossexualismo. Nesse caso, parece-me necessário perguntar pelo conceito de “natureza”. Trata-se do velho dilema entre natureza e cultura. O que é natural e o que é cultural ? O auxílio das ciências humanas é fundamental para tratarmos desse tema, pois a antropologia, a sociologia e a psicologia têm mostrado que muitos comportamentos que consideramos “naturais” são na verdade, culturais. Podemos destacar, no uso moderno da expressão, pelo menos três variações do conceito de natureza:
a) o significado empírico – o mundo das observações físicas e biológicas
b) o significado filosófico e teológico – a função e o propósito de um fenômeno natural
c) o significado cultural – sinônimo para a palavra “normal”

Esses três diferentes significados aparecem em toda linguagem teológica e em todas as discussões sobre o assunto hoje.
No primeiro caso, “natureza” é compreendida como a totalidade dos fenômenos que podem ser observados empiricamente. Nas discussões cientificas há uma tendência a limitar “natureza” a esse significado, ou seja, aos fatos naturais. A idéia de algo contrário à natureza, ou “antinatural” não pertence a essa definição, porque tudo o que é empiricamente observável pertence à natureza. Esse conceito é mais descritivo que normativo; As leis da física, por exemplo, são consideradas “naturais”. Todo corpo arremessado para o alto, após perder seu impulso inicial irá cair ao chão devido à lei natural da gravidade. Porém, devemos lembrar que no século XX, o advento da física quântica trouxe questionamentos a esse conceito, mesmo no âmbito da física e da biologia;
A compreensão filosófica e teológica está ligada ao aristotelismo e ao tomismo. Tudo aquilo que ocorre de modo contrário a um propósito ou fim previamente definido é considerado “antinatural” ou “contrário à natureza”. Nessa visão, o conceito de natureza assume sentido normativo, porque pressupõe haver leis naturais que ordenam cada criatura. Para Tomás de Aquino, Agostinho e tantos outros teólogos da igreja, a função natural da sexualidade é a procriação. Tomás de Aquino, por exemplo, classificou alguns pecados sexuais como naturais e outros como “contrários à natureza”, dando mais gravidade a esses.
Quais seriam os pecados sexuais considerados naturais? Basicamente, o adultério, a fornicação, o estupro e a prostituição, pois nesses casos há relações heterossexuais que podem resultar em gravidez. O pecado é cometido, mas as leis da natureza não são contrariadas, pois o objetivo do sexo é a procriação da espécie. Porém, para Tomás de Aquino, havia pecados “antinaturais”, como a masturbação, chamado “vício solitário” e as relações homossexuais pela impossibilidade da procriação e por terem como único objetivo o prazer. A penitência dada para o pecador arrependido dependia não tanto da gravidade do que teria causado a outra pessoa, mas dessa incômoda palavra – “natural”. Pecados “contra a natureza” (masturbação e homossexualismo eram considerados muito mais graves do que um estupro seguido por gravidez.
Essa categorização me fez lembrar de um artigo de Arnaldo Jabour, escrito na época em que se discutia a volta do ensino religioso nas escolas públicas. Jabour recorda de suas aulas de religião num colégio jesuíta. Os alunos eram obrigados a se confessar semanalmente aos padres e uma das inevitáveis perguntas de todo confessor era: “quantas vezes praticaste o vício solitário?”. Jabour lembra das explicações dadas por um dos padres para argumentar porque a masturbação era um pecado mortal, gravíssimo: “porque cada vez que você o pratica, são milhões (‘milhõesss!, ele repetia) de seres humanos que poderiam nascer e que morrem ali na vala comum do papel higiênico ou nos esgotos”. Jabour continua:
“Minha culpa era total. Além de odiado por Deus, além da humilhação de ver as meninas do colégio Jacobina passando intocadas com suas bundinhas lindas e pequenos seios, além de contemplar com desespero os primeiros biquínis em Copacabana, eu era um assassino de milhões!. Eu era uma espécie de Hitler sem grandeza, um reles criminoso covarde que, além do mais, não comia ninguém. E entre lágrimas, com a culpa na alma, matei milhões de homens, destruídos no banheiro, nações inteiras continuaram a ser exterminadas por minha mão assassina. Minha fé quase se apagava, como uma vela pobre enquanto o padre Barros berrava no púlpito: ‘Tua alma vai para o inferno queimar no fogo, por toda a eternidade!”
Ainda hoje a Igreja Católica considera a masturbação e todo ato homossexual como contrários às “leis naturais”. O problema aqui é que um sentido normativo é derivado de um sentido empírico. Uma função biológica empírica (reprodução da espécie) é tomada como critério para o que é considerado natural e moral. A partir daí afirma-se que a homossexualidade é contra a natureza porque não leva à procriação – nesse caso, uma norma moral é derivada de uma função biológica e constroem-se valores a partir da anatomia. Mas quando uma pessoa solteira ou mesmo um casal toma a decisão consciente de não procriar, isso gera grandes discussões entre os especialistas da moral teológica. Daí o fato de, até hoje, a Igreja Romana condenar o uso de anticoncepcionais, da camisinha ou de outros métodos considerados “antinaturais”. A rigor, um jovem e uma jovem que se relacionem heterossexualmente, fiel e exclusivamente um com o outro e utilizam pílula anticoncepcional, estão em situação de “pecado contra a natureza”. A crueldade dessa lógica chega a beirar o absurdo. Alguns anos atrás, aqui no Brasil, um caso chamou a atenção da imprensa: uma diocese em Minas Gerais recusou-se a autorizar a celebração do casamento entre uma mulher e o noivo paraplégico, argumentando que, por ser paraplégico, ele não poderia ter relações sexuais e desse modo, não poderia cumprir ao propósito maior do casamento: a procriação. Trata-se, sem dúvida, de uma visão bastante estreita, que reduz a sexualidade às funções dos órgãos genitais, desconsiderando o fato de que a sexualidade envolve afetividade, carinho, olhar e toques que não se restringem apenas às áreas genitais do corpo.
O terceiro sentido da expressão “natural” é o mais popular, e deriva de uma combinação entre o primeiro e o segundo sentidos. Trata-se de tudo aquilo que o senso comum considera “normal”, a condição correta das coisas e que não requer argumentação, fatos que se autovalidam por si mesmos. Nesse caso, tudo o que é diferente, que traz distúrbio à ordem das coisas e quebra as normas é considerado anormal. Os critérios são baseados em tabus e acordos silenciosos entre a sociedade.
Para a ética teológica, esse significado é bastante perigoso, porque geralmente o que se considera “natural” inclui valores culturais e normas sociais prevalecentes e impostos por classes dominantes e refletem as mudanças nesses valores e normas. “Natural”, nesse caso, longe de ser “natural” é um conceito social que inclui a autoridade de regular e definir normas, internalizar tabus e a própria solidariedade inata da sociedade. Esse significado sempre foi usado na maior parte dos discursos teológicos e ainda é usado hoje, principalmente aplicados à teologia da criação e à corrupção da criação. O problema aqui é que “criação” e natureza são freqüentemente confundidos e emergem com determinismo social.
Por exemplo – A despeito de o relato eloísta situar a criação da homem e da mulher simultaneamente (Gn 1.27-28), a teologia sempre preferiu o relato javista, no qual a mulher é tirada da costela do homem e a esse está subordinada. Por muito tempo considerou-se normal e “natural” a submissão feminina. Usar o conceito “natural” nesse caso também serve para justificar e legitimar discriminações sociais e raciais. Houve época em que teólogos protestantes ligados a países que praticavam o tráfico de escravos justificaram a superioridade da raça branca sobre a negra a partir da marca de Caim ou Gn 9 – a maldição lançada por Noé a seu filho Cam. Hoje, isso tudo nos soa bastante absurdo e desumano, mas não nos esqueçamos que esses argumentos foram por muito tempo considerados válidos e que a submissão dos negros aos brancos já foi considerada “normal” na ordem da criação e na antropologia cristã. De repente, quando fizeram contato com os europeus, os africanos descobriram que eram “negros” e muitos receberam ensinamentos de pastores e missionários protestantes e alguns chegaram mesmo a internalizar esses conceitos da ética e teologia ocidentais do arcabouço conceitual europeu. A história do conceito de homossexu
alidade, a meu ver, segue passos muito semelhantes, senão iguais – um grupo de pessoas foi patologizado pela medicina e a psicologia européias , e a partir daí, foi marginalizado com alegações bíblicas da ordem da criação.
Observamos então, ser muito problemático, do ponto de vista da ética, usar o conceito “natureza” de modo apressado.  A periculosidade dessa abstração sempre atende a determinados interesses de classe e gênero. Um exemplo é a distinção feita entre os papéis sexuais ativos e passivos numa relação sexual, seja hetero ou homossexual. De modo inconsciente ou declarado, sempre aparece a pergunta: “quem está por cima?”. “quem domina a relação?” Ao fazer essa pergunta, revelamos que o sexo está intimamente ligado ao poder e ao machismo da cultura androcêntrica. O pressuposto básico é de que o homem, o macho deve sempre dominar o ato sexual, tomar as iniciativas e nunca submeter-se. Quando o macho assume papel passivo, é como se estivesse contrariando sua “natureza” de dominador. O pressuposto de que o homem é o elemento sempre ativo e a mulher, o passivo serviu muito à sociedade européia no final da idade média. Uma questão tão íntima e privada como as posições que um casal assume em sua intimidade sexual refletem as relações sociais. As pessoas que usam indiscriminadamente o conceito de “natureza” pressupõem que em uma relação sexual “natural”, sempre alguém tem que dominar o outro, e o elemento ativo deve ser sempre o macho. Se um homem assume papel passivo, ele contraria sua “natural (?) condição de dominador”. Uma mulher que assume a parte ativa acaba sendo um ato transgressor das regras sociais, seja na relação hetero ou homossexual. A iniciativa sexual daquelas de quem se espera submissão acaba sendo intolerável e imoral – “contrária à natureza”, porque a ordem natural das coisas exige sua submissão. Uma mulher em um papel ativo numa relação hetero ou homossexual passa a ser algo ofensivo a esse tipo de moral porque trata-se de uma pessoa sem sêmen ou pênis.
Estou lançando essas idéias apenas para verificarmos que devemos ser mais cuidadosos antes de aplicar o conceito de “natureza” a questões tão sérias como a ética sexual, devido à mutabilidade das normas sociais. E isso se aplica também às pessoas homossexuais que se servem desse conceito para justificar seus impulsos e atrações por pessoas do mesmo sexo. A meu ver, insistir no conceito de “natureza” para defender a “naturalidade” da prática homossexual afirmando “eu nasci assim… sempre fui assim, etc”, é tão problemático quanto o uso do conceito para condena-la. A discussão deve buscar outros paradigmas, pois insisto em dizer: muito do que consideramos “natural” é resultado de séculos de ensinos e práticas culturais ligadas ao poder, como bem demonstrou Foucault e outros.
Outro exemplo histórico pode nos auxiliar a compreender os vínculos entre sexualidade e poder:: todos sabemos que durante toda a Idade Média, as mulheres eram consideradas perigosas devido à sua volúpia sexual. Servindo-se do texto de Gênesis em que Eva desobedece a Deus antes de Adão e o induz a comer do fruto proibido, era comum atribuir às mulheres o peso maior de culpa no episódio da queda. A ética cristã medieval sempre considerou as mulheres “naturalmente” maliciosas, voluptuosas e mais propensas ao sexo que os homens. Eram elas que induziam os padres à tentação e ao vício solitário.
Porém, no fim do século XVIII, por força e obra do movimento puritano surgiu na Inglaterra, a idéia de que os homens eram mais fortes em seus desejos sensuais que as mulheres. Foi construído um padrão de virtude feminina – a mulher confinada no lar, cuidando do marido e da família burguesa. As mulheres se tornaram o sustentáculo da civilização e da cultura moral; e os homens, o sustentáculo da energia, da vitalidade e da sexualidade.
Edmund Leites estudou a fundo essa mudança num livro intitulado “A consciência puritana e a sexualidade moderna”. Ele observa que essa foi uma mudança radical em relação à perspectiva da Idade Média, em que dominava a idéia de que as mulheres eram mais luxuriosas do que os homens, e de que estes eram o sustentáculo da cultura e da moralidade. Na idade média, a mulher era uma ameaça sexual para o homem. Em torno do século XVIII ocorreu o que ele chama “grande inversão”: as mulheres foram consideradas mais puras e sem um forte impulso sexual (e isso foi constantemente incutido nelas e incentivado na educação burguesa). Os homens, por sua vez, passaram a ser tomados como “naturalmente” superiores às mulheres devido à sua força, energia, pulsão e vigor físico e na vontade de dominar e comandar. Mas tudo isso necessitava de um certo freio para evitar arroubos animalescos, pois o homem é considerado como um touro: poderoso e dominador. Mas essa vontade de poder e o desejo de prazeres animalescos poderiam afastar os homens do caminho da moralidade. A superioridade física dos homens, portanto, implica seu complemento, que seria a superioridade “espiritual” da mulher. Gradativamente foi sendo construindo, nos século XVI e XVII, durante o período de ascensão da burguesia, a idéia de que a mulher tem menos vitalidade e menor vontade de poder, e que podiam essas se dedicar às virtudes morais e ser o elemento agregador e educativo da moral familiar. Nos lares protestantes, em geral, as mulheres é que eram incentivadas a liderar os cultos domésticos e são muitos os exemplos de mulheres tidas como “virtuosas” devido ao seu recato, discrição e vida de oração, tal como Suzana, mãe de Wesley, a quem muitos consideravam “um anjo de pureza” – fardo pesado demais para ser carregado, pois implicitamente roubava-lhe toda e qualquer possibilidade de iniciativas sexuais e fantasias eróticas.
A mudança na atitude ocidental em relação à força da sexualidade nos homens e mulheres pode ser atribuída às mudanças em ambas as concepções e tratamento das capacidades morais das mulheres. Quando estas são tratadas com menos respeito moral, são encaradas como estando mais sujeitas às demandas da sexualidade. No mundo medieval, geralmente, elas eram encaradas como criaturas moralmente inferiores e, portanto, mais lascivas. Os puritanos as tratavam como seres em que a moralidade e a espiritualidade se encarnavam de forma mais fortes que a sexualidade. Isso para os homens foi muito cômodo: representou para o gênero masculino a libertação de um peso: o de serem eles os responsáveis primeiros pela manutenção da ordem moral – aos homens era perdoado o adultério com mais facilidade, por levarem em conta a reconstrução do conceito da “natureza” masculina mais propensa ao sexo. Já as mulheres, culturalmente reprimidas e que interiorizavam a ideologia de que não têm fortes impulsos sexuais, era inimaginável manifestar fantasias sexuais, gemer de prazer na cama ou ter relações extra-conjugais como os homens, pois isso seria imperdoável aos sustentáculos morais da sociedade.
Um dos romances da cultura inglesa que mais fortaleceu essa idéia foi “Pamela, a virtude recompensada”, de Samuel Richardson, publicado em 1740 e que se tornou um best-seller da época. O romance incorporou inteiramente as novas idéias de masculino e feminino e fez muito para promove-las tanto na Inglaterra como na Europa continental. Comentando esse livro, Leites observa que, na visão da época, “o que torna a mulher moralmente pura não é a sua observância integral e submissão às exigências de uma moralidade externa que vêm de uma fonte divina. Ela é pura por causa do poder de sua própria consciência moral dentro de sua mente e coração; essa consciência é tão predominante que bloqueia até mesmo o reconhecimento de seu próprio desejo sexual” 

3. Homossexualidade – um desafio à alteridade

No senso comum, o homossexual é considerado um pervertido sobre o qual recaem as mais duras críticas e condenações, uma espécie de câncer social, algo vergonhoso e humilhante para a cultura e para uma família. Seus praticantes são alvo de piadas e ironias. Muitos até temem manter relações de amizade com alguma pessoa homossexual, por medo de serem identificados como homossexuais também. A despeito disso, a própria psicologia nos ensina que os heterossexuais também podem apresentar com bastante freqüência uma dimensão homófila em proporções diferentes, embora ela não se transforme no componente mais forte e pronunciado, da mesma forma que o homossexual também apresenta um potencial heterófilo, que igualmente não é dominante. Conforme Jung, a psique humana é andrógina. Ela está habilitada com características masculinas e femininas. As estruturas e riquezas de ambas as naturezas estão presentes nas pessoas atuando conjuntamente.
Quando projetamos sobre os homossexuais nossa agressividade, isso pode produzir em nós um sentimento de auto-afirmação ou de medo de lidar com nosso próprio potencial homófilo. Quem se comporta assim pode estar querendo provar a si mesmo que tem uma personalidade que ele quer considerar “sadia”. Certas linhas psicanalíticas têm afirmado que quanto maior o fanatismo e a repugnância em relação ao homossexualismo, provavelmente existe também uma maior necessidade de ocultar a sua existência ou uma plena recusa a reconciliar-se com sua própria verdade. É o mesmo caso do racismo. Na base de todo racismo existe um medo de perder a segurança própria diante daquilo que é diferente, estranho e desconhecido. A Ku-Klux-Klan surgiu no sul dos Estados Unidos na mesma época em que a escravidão foi abolida e o medo dos grupos brancos perderem a hegemonia resultou na criação dessa violenta sociedade secreta. Do mesmo modo, em nossos tempos, o aumento das imigrações de povos do hemisfério sul para a Europa tem acentuado cada vez mais o ressurgimento do nazismo, que agora se estende não apenas contra judeus, mas inclui também africanos, asiáticos e latino-americanos.
De nada vale, apelar para generalizações negativas, atribuindo aos homossexuais comportamentos condenáveis como a pedofilia ou a promiscuidade, pois esse comportamento é muito típico de heterossexuais também. A maioria dos casos de pedofilia registrados em boletins de ocorrência no Brasil é de homens heterossexuais que abusam de meninas. É mais fácil para muitos enfatizar quando isso em homossexuais devido à visibilidade. Reforça a moral. Mas do ponto de vista psicológico, seja qual for a tendência da libido, é possível vivê-la de forma madura ou imatura. Isso deve ficar claro na legislação e também nos códigos de disciplina eclesiástica. Ninguém pode ser condenado ou disciplinado por um ato errado pelo simples fato de ser homossexual, assim como também ninguém é condenado por ser heterossexual. A maldade não reside no fato de se apresentar uma ou outra tendência, mas sim na orientação prática que se dê a qualquer uma delas. A violência sexual, a perversão de menores, o escândalo público não constituem patrimônios exclusivos de uma determinada tendência homo ou heteroerótica. Leis profiláticas para evitar a periculosidade social ou a promiscuidade na Igreja não devem se reduzir ao que as pessoas são, mas sim ao que as pessoas fazem. Por isso a Câmara dos bispos da Inglaterra agiu corretamente ao solicitar que não se perguntassem aos postulantes à ordenação por sua orientação sexual . A honestidade, o respeito pelo próximo, a educação e a sensibilidade encontram-se em proporções idênticas nos seres humanos, bem como o promiscuidade, a infidelidade e o desrespeito ao próximo. A simples razão de apresentar uma tendência homossexual ou ser homossexual não é motivo para justificar a negação de certos direitos a essas pessoas. O que dois indivíduos fazem no âmbito de sua intimidade e privacidade não tem por que ser punido, da mesma forma que a lei não penetra na vida privada de pessoas heterossexuais para fiscalizar o modo como fazem amor.
É claro que devemos deixar em aberto uma polêmica questão: o direito à mudança de orientação sexual. Se uma pessoa homossexual sente-se muito incomodada com essa prática (não interessam aqui os motivos) e procura auxílio para desenvolver apenas relacionamentos heterossexuais, esse é um direito que lhe assiste, e a Igreja deve apoiá-la nessa decisão. A meu ver, a atitude de certos grupos GLS de hostilizar todas as iniciativas nesse sentido é tão preconceituosa quanto a da moral tradicional. Quando alguns grupos GLS recusam-se a dialogar com pessoas que buscam mudar suas práticas sexuais, acabam por revelar também a mesma indisposição ao diálogo manifestada por pessoas homofóbicas.
A essa altura vocês já devem ter percebido que todo meu discurso está pautado no paradigma ético da alteridade, defendido entre outros por Emanuel Lévinas. Esforçando-se por buscar sólidos fundamentos ontológicos para a ética contemporânea, Lévinas observa que a ontologia tradicional desenvolveu o que ele chama “alergia à alteridade”. Para ele, no ato de conhecer, o outro, o diferente, sempre é neutralizado por conceitos genéricos e universais. As divergências são submetidas em unidades cada vez mais abrangentes, nada deixando de fora, nem mesmo o próprio pensador. A partir daí é fácil, por exemplo, afirmar genericamente que “todo homossexual é um pecador depravado”. Quando se toma isoladamente o caso de uma pessoa homossexual que abusa de crianças, por exemplo, e, a partir daí dizer que todo homossexual é pedófilo e, portanto, um perigo em potencial para nossos filhos, estamos manifestando nossa alergia à alteridade e fechando nossos olhos ao fato de que a maioria dos casos de abuso sexual contra crianças é cometido por pais, padrastos, vizinhos ou parentes heterossexuais. Além disso, trata-se de uma atitude tremendamente medíocre e eticamente covarde, por tentar se auto-justificar e se fortalecer moralmente a partir das fraquezas identificadas em outras pessoas.
Uma ética cristã compatível aos nossos tempos não pode ser orientada por categorias ontológicas impessoais e arbitrárias, pois é peculiar ao “eu” não perder sua identidade própria ao lidar com as coisas. Pelo contrário, são essas que vão se tornando familiares e amáveis ao eu. A ontologia tradicional representa a teoria dessa prática neutralizadora da alteridade. O grande desafio hoje é falar de ética e ontologia atendendo às exigências de cada setor. Dessa forma, ética significa, em primeiro lugar, obrigação perante o outro. Na outra pessoa sempre se anuncia algo incapaz de ser captado totalmente nas malhas do saber ontológico genérico, tradicional e excludente.
As infinitas metamorfoses do agir humano e a diversidade que hoje se reconhece em todas as culturas exigem de nós a coragem de encarar também aquilo que chamo nossa “alergia teológica à alteridade”, manifesta nas expressões litúrgicas, na espiritualidade pessoal ou na organização dos próprios conceitos teológicos de cada grupo. Essa postura faz vistas grossas a pelo menos três indiscutíveis qualidades da vida humana:
a) o fato de que a natureza humana é extremamente mutável em sua esfera criativa;
b) a singularidade da pessoa humana, irredutível à pura universalidade (um dos conceitos básicos da Declaração Universal dos Direitos Humanos);
c) a temporalidade – ao fato de que a vida se desenvolve num tempo que é presente, mas já é passado e tem em mente o “não-presente”, o futuro, a meta, a finalidade. A vida humana é uma corda estendida entre o que é o que ainda não é. Tudo isso sugere uma fluidez inagarrável, cheia de surpresas, e a impossibilidade de uma fixidez normativa de parâmetros.
A partir daí, faz-se necessário transpor os limites da ontologia e da ética tradicionais, fixados em épocas remotas quando o ritmo da vida ocidental vislumbrava as alteridades
como “acidentes” que solicitavam ações rápidas de reafirmação do que já estava estabelecido. O próprio conceito de “acidente” já sugere alguma anomalia, algo que ocorre ao “ente” e que o afeta. Porém, com o tempo, os “acidentes” passaram a ser mais freqüentes, gerando comunidades cada vez maiores, destoantes em relação ao padrão aceito. Em nossos dias, se já não é possível fazer vistas grossas ao grande número de pessoas que assumem sua homossexualidade e que desejam apenas ser respeitadas e que lhes seja permitido amar a quem quiserem e do modo como quiserem.

4. Trindade, alteridade e bênção original

Ao chegarmos ao final dessas considerações, quero voltar à teologia e sugerir que devemos nos aprofundar em pelo menos duas áreas da Teologia Sistemática em nosso trabalho pastoral: a teologia da criação reorientada a partir da compreensão de que ela revela o que Mathew Fox chama “a bênção original” , e a doutrina da Trindade como um sólido aparato conceitual para tratarmos da alteridade.
Mathew Fox, famoso teólogo anglicano tem enfatizado já há alguns anos a necessidade de reconstruirmos a teologia cristã a partir de uma via positiva, pois segundo ele toda a teologia cristã está contaminada pelo negativismo e desconfiança em relação ao prazer, à vida mística, às artes, aos aspectos emocionais, ao elemento feminino e à sensibilidade. Fox observa que um dos maiores problemas da teologia cristã foi o fato de edificar-se a partir do conceito de “pecado original”, esquecendo-se que, antes do pecado, Deus havia prometido bênçãos prazerosas à criação. Para ele, portanto, o originalmente legítimo não é o pecado, mas a benção. De fato, é bom não esquecermos que ao criar o homem e a mulher, Deus lhes doou o corpo com todos seu potencial à sensibilidade e ao prazer, e o primeiro mandamento dado por Deus no livro de Gênesis – o de crescer e multiplicar-se a ponto de povoar a terra – nunca precisou de ameaças para ser cumprido. Acho que é o único mandamento bíblico que a maioria das pessoas cumpre – ou pelo menos deseja cumprir – com prazer e sem reclamar.
Quando formos capazes de avaliar a experiência humana a partir de uma via positiva, sem nos fixarmos rigorosamente no fantasma do pecado original, talvez consigamos ser mais sensíveis à legítima busca de prazer que as pessoas tem e à necessidade de garantir-lhes a liberdade para desfrutar das bênçãos outorgadas a nós pelo Criador, o Deus artista, que se compraz na alegria de ver sua criação desfrutar de forma criativa das infinitas possibilidades de prazer a nós outorgadas. Ouso até mesmo dizer que deveríamos utilizar em português um sugestivo sinônimo para a palavra Criador e aplicá-lo a Deus. É o sinônimo “artesão”, pelas possibilidades lingüísticas que a palavra nos oferece. Ar lembra “pneuma”, “ruach”, “espírito”, vitalidade, energia, força, pulsão. “Tesão” lembra “tesão mesmo”, excitação e prazer sexuais e eróticos. Se algum dia eu escrever um livro de Teologia Sistemática, certamente estará incluído esse tópico: “Deus, Ar-tesão”.
A doutrina da Trindade, por sua vez, parece-me bastante rica e fecunda em sua reserva de sentido porque o símbolo da Trindade, pelo qual expressamos nossa compreensão de Deus, favorece a singularidade e a diversidade. O mistério da fé afirma que no único Deus convivem diferentes “pessoas”, numa espécie de “triângulo amoroso”, uma relação entre três pessoas, marcada pelo amor e pela auto-doação. Podemos afirmar que na própria vida intra-trinitária existe “alteridade” (cada pessoa é, ao mesmo tempo, singular e, no entanto se doa, em amor, à outra) e que a manifestação histórica dessa alteridade é a própria criação, em sua bio-diversidade orgânica e cultural. Assim, a vida é plural porque Deus também o é. Um dos modos da teologia favorecer a reorientação da ontologia no pensamento contemporâneo é mudar o foco de sua atenção: da unicidade de Deus à diversidade de Deus, enfatizando os diferentes que compõem a Trindade: os “outros” do Pai são o Filho e o Espírito; os “outros” do Filho são o Pai e o Espírito; os “outros” do Espírito são o Filho e o Pai. E todos, no entanto, conjugam esforços em prol da salvação e libertação de “outros” e “outras”: cada ser humano em sua singularidade e também em suas expressões coletivas: as culturas.
A conseqüência ética dessa compreensão da alteridade intra-trinitária e a união interna dos diferentes em prol da vida humana une inseparavelmente o Ser divino em sua diversidade ao valor maior que permite a revelação desse mistério: a vida em sua plenitude (cosmos, criação, natureza, ser humano, a  bio-diversidade, enfim). 
Sempre é bom lembrar que a ética crista deve ser pautada pelo amor. Talvez isso possa soar como uma frase piegas e vazia, mas Cristo nos ensinou que devemos amar aos outros, mesmo quando não aprovarmos seus estilos de vida. Na prática, porém, a aplicação dessa regra é problemática. Isso, porém, não exclui o amor como o principio central para a ética cristã, ainda hoje. O Novo Testamento enfaticamente assevera, tanto em Jesus e Paulo, que a lei inteira depende do mandamento do amor que cumpre toda a lei e que aquele que ama cumpre a lei (Mt 22.-34-40; Rm 13.8-10; Gl 5.14). Quanto mais eu leio e ouço os exaltados discursos contrários às pessoas cuja orientação sexual difere daquela considerada normal e vejo o tom preconceituoso, fanático, insensível e agressivo como tratam desse assunto, negando a gays e lésbicas o exercício de direitos garantidos a todos os/as cristãos e cristãs, mais aumenta minha desconfiança de que o que está faltando nesses discursos é o amor de Cristo. E tremo quando esses discursos se fundamentam na defesa da pureza do Evangelho de Cristo ou em nome do amor a Deus. Em primeiro lugar, não somos nós que defendemos o Cristo; é ele quem nos defende e nos sustenta; em segundo lugar, esses discursos me incomodam porque quando precisamos discriminar alguém para provar nossa fé em Deus estamos a um passo do fanatismo religioso, capaz de torturar e matar outras pessoas a fim de provar o amor que se tem a Deus.

Conclusão

Quero deixar algumas considerações: É muito relevante perguntar porque a orientação pessoal de alguém nos incomoda tanto. As pessoas deveriam começar, perguntando: “Por que isso é um problema para mim e para minha sociedade? O que temo? O que estou querendo preservar ou ocultar?” E ainda: “por que a Igreja insiste em dar palpite num assunto tão íntimo e privado como a prática sexual?” Talvez antes de ficarmos discutindo eternamente a ordenação de homossexuais, deveríamos primeiro discutir os limites da interferência da Igreja na vida privada. O que é “res” (coisa) pública (que interessa a todos) e o que é coisa privada?
E, por fim, uma palavra de apoio a todas as pessoas que vivem a experiência homossexual, que nela se realizam e que a partir dela também complementam a outra pessoa na troca sadia e afetuosa de carinho e amor: sabemos que muitos de vocês se sentem cansados, sobrecarregados e exaustos pelo pesado fardo que já carregam, o de serem alvo de tantos preconceitos e discriminações na sociedade. Muitos de vocês esperam que a Igreja os acolha e se comporte de maneira mais evangélica, como Cristo certamente faria e fez. Não se revoltem apressadamente com a Igreja. Ela também está crescendo no conhecimento e amor de Cristo. A Igreja ainda não alcançou sua plenitude espiritual, e caminha aos trancos e barrancos tentando fazer o melhor possível. E, apesar de às vezes a Igreja fazer pronunciamentos e emitir declarações preconceituosas, o poder de Cristo ainda está nela e pode transforma-la. Por isso, procurem ouvir a voz de Cristo, confiar em sua graça, alimentar-se de seu corpo e sangue e seguir seu caminho. Desse modo, encontrarão descanso para suas vidas e se alegrarão com o fardo leve do seu amor.

Carlos Eduardo B. Calvani
Padre anglicano, Professor de Teologia na UNIFIL (Universidade Filadélfia de Londrina) e Coordenador do Centro de Estudos Anglicanos (CEA).
Email: ccalvani@hotmail.com

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