Fé e esperança para o mundo: uma reflexão sócio-teológica

Autor: Ziel Machado

I- FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICO – TEOLÓGICA

1. JESUS E OS EXCLUÍDOS

1° Momento – O FOCO – A MARGEM – MC. 1:40-45

O enfoque do livro de Marcos repousa muito mais sobre as ações de Jesus, do que em seus ensinos. Vemos o Senhor em plena atividade. O Rei que serve (10:45)!

Este capítulo inicial é marcado por muitos momentos; a preparação para seu ministério, (predito pelas Escrituras, por João Batista), seu batismo, a tentação, a escolha dos discípulos, sua pregação e milagres que manifestam seu poder sinalizando o Reino de Deus.

Estamos diante de um encontro que revela que Reino não chega somente em palavras, mas com sinais concretos. Contudo este episódio nos mostra que no centro da missão do mestre, estavam aqueles que viviam fora do foco, a margem, excluídos. Os destituídos que compunham a margem da vida eram participantes do centro de preocupação do Senhor Jesus.

Quais são os nossos focos, ou onde estão? Toda nossa formação nos direciona para os centros, e não para a margem, vivemos num contexto onde fomos preparados (muitos nós), para fixarmos nosso foco nos CENTROS ( poder, fama, status).

Aqui encontramos Jesus na margem, por onde passa a história, mostrando que seu foco incluía a margem, os excluídos.

2° Momento – A TAREFA – INCLUINDO OS EXCLUÍDOS

Lepra é uma designação antiga de uma classe bastante extensa de doenças, cujos sintomas eram de natureza cutânea. Os hebreus tinham aversão devido à própria patologia, mas também porque era acompanhada por impureza cerimonial que classificava o doente como imundo.

O resultado era:
1.Banido da vida em sociedade
2.Banido da presença de Deus no templo (serviço comunitário)
3.Imundo e contagioso (profanação cerimonial [não moral])

Estamos diante de uma sociedade que marginaliza seus leprosos! Isto não difere de nossos dias! Nossa sociedade continua produzindo os seus: banidos, leprosos, excluídos; aqueles que por alguma razão trazem algum tipo de risco ou incômodo.

É muito interessante quando descobrimos que em alguns manuscritos gregos, ao invés de dizer que Jesus se encheu de compaixão, diz que Jesus se encheu de raiva! Mas porque Jesus sentiria raiva? Provavelmente por visualizar o pecado expresso numa situação onde a pureza moral /ética era preterida pela preocupação com a pureza cerimonial, uma sociedade, um sistema espiritual/social que não cura mas exclui, que não restaura mas elimina.

E hoje, quem encontramos na periferia? Nesta sociedade que define os contornos de democracia de forma muito limitada ? Enrique Dussel, esta se dedicando a produzir uma nova historiografia da América Latina a partir desta categoria do excluído, e em sua lista encontramos:
Os índios
Negros/mulatos
camponeses
Operários urbanos
mulheres
Meninos de rua
velhos

O que dizem estas vozes?
“O idoso é deixado de lado. Ninguém gosta de velho. O velho incomoda, o velho fala demais, o velho faz chantagem”. LOURENÇA SOARES 59 anos

“Thomas passava a maior parte do dia encolhido no sofá, embaixo do cobertor. Não comia nem se cuidava direito e continuava piorando. Também tinha coceiras terríveis e se arranhava tanto que chegava a sangrar. Sua vista começou a deteriorar nas semanas seguintes já não podia ler. Seis semanas mais tarde, entrou em coma e teve uma morte serena, na enfermaria. Diagnostico AIDS”.

AIDS – uma pessoa a cada 4 segundos em todo mundo é contaminada, 27 por dia no Brasil, 42% dos casos no Brasil estão entre 25 a 34 anos de idade.

Este é o nosso mundo, uma maquina de excluir: pobres, curdos, negros, servos, croatas, etíopes, aidéticos, velhos, meninos de rua, prostitutas, etc…

Mas a resposta de Cristo aos excluídos é COMPAIXÃO! Vê o homem como pode vir a ser, encara a situação com realismo (não espiritualiza), e esta compaixão se materializa:
1.fala
2.toca
3.da atenção
Estes são três elementos que, quando não são tomados com atenção, permitem a formação de um exercito de excluídos, pois não lhes damos atenção, não lhes ouvimos, não lhes tocamos. (HOMEM BARATA). Assim evitamos a proximidade com as pessoas e nos isolamos em ilhas da fantasia, fugindo das ameaças do mundo real inseguros e assustados.

Como resultado deste processo temos a teologia, a tecnologia da e arquitetura da exclusão: Shopping Centers, os Condomínios fechados; tudo para evitar o contato com a realidade que nos cerca, afinal “o que os olhos não vêem o coração não sente”.

O que prospera no mundo real? O que vale a pena? Como incluímos esta gente? Mitos de Inclusão do Sistema:
a) Anos 70 “Inclusão pelo Progresso”
b) Anos 80 “Década Perdida” (Darwinismo Social, Inclusão pela especialização [economia de blocos – mercosul, mercado comum europeu] ).
Será que promovemos inclusões parciais com obras de misericórdia, mas carecendo de uma leitura que ultrapassa a ética individual, que elabore uma critica do sistema ?

3° Momento: MODELOS – RESTAURANDO PELA COMPAIXÃO
Jesus restaura a saúde do leproso! É possível que este homem sofresse de outras enfermidades relacionadas a sua condição:

1.Ele era um homem banido, portanto tinha problemas RELACIONAIS.
2.Ele era um homem com uma auto imagem destruída, portanto com problemas EMOCIONAIS
3.Ele estava longe de Deus, portanto sofria de problemas ESPIRITUAIS.
4.Ele estava fora do sistema de produção, portanto sofria com a própria SUBSISTÊNCIA.

Deus ao restaurá-lo o fez de forma integral, pois:
1.Restaurou a saúde física
2.reintroduziu a vida em comunidade
3.Recupera sua auto-imagem
4.Confirma sua fé, restaurando-lhe o acesso a Deus.
5.Dá-lhe condições físicas, de maneira que lhe habilita a produzir e viabilizar sua existência
O efeito da transformação é tão grande que ele não consegue seguir a risca a recomendação de Jesus, de não divulgar o acontecido.

Falar, Tocar, Ouvir, modelos concretos de misericórdia. Como construímos nossos modelos de compaixão nesta sociedade onde nos como tantos outros optamos pela via da exclusão, não importa de que natureza for?

Uma compaixão que não se deixa enganar pelo o que vê, mas que vai alem disto, reconhecendo em cada criatura o valor de serem imagens e semelhanças de Deus; como nos diz madre Teresa de Calcutá:

“Em Cacultá, nós recolhemos muitos, milhares de leprosos. Eu posso assegurar-te que eles são admiráveis, não importa quão desfigurados eles possam parecer”.

Será que estamos dispostos a começar a partir do pequeno? Da fala, do toque, da atenção? Como lidamos com as escolhas de nossos próprios centros, e o que vemos a margem deles? O sistema exclui, e quem nossa pratica pastoral exclui? A partir de que lugar avaliamos nossa prática pastoral? Já alcançamos o entendimento de que não podemos ser profetas do Sistema, mas ainda estamos no meio do caminho entre ser profeta no Sistema e ao Sistema.

II- FUNDAMENTAÇÃO SÓCIO – POLÍTICA

Nos últimos anos as igrejas evangélicas têm despertado o interesse de vários setores da sociedade brasileira. As características de sua expansão, e as implicações decorrentes de seu crescimento têm proporcionado uma série de novas perguntas para os interessados em estudar as transformações sociais que o país vem atravessando e em saber com que novas forças o país poderá contar para a consolidação de uma sociedade democrática.

Uma destas transformações tem sido o abandono progressivo da postura tradicional evangélica em relação à sua participação política. A partir dos anos 80 o ingresso na política se intensificou, sendo as eleições para a Assembléia Constituinte um marco importante desta nova fase, uma vez que o Brasil passa a ser a primeira experiência de presença parlamentar significativa de uma minoria protestante, num país de tradição católica.

O momento de intensa politização do país, marcado por greves, surgimento de novos partidos e organizações sindicais, reformulação da Constituição, eleições diretas para todos os níveis, e o agravamento das condições sócio-econômicas, atingiu também a igreja evangélica. Esta viu surgir, dentro de suas fileiras, grupos identificados com distintos projetos de sociedade. Estes diferentes grupos, ao se organizarem, revelaram uma pluralidade ideológica, que foi motivo de surpresa para muitos, uma vez que consideravam a comunidade evangélica como possuidora de uma orientação política conservadora, portanto com um destino político definido.

Os setores identificados com as propostas do campo democrático popular procuraram desenvolver uma dupla frente de militância: na sociedade, fortalecendo a luta por transformações que priorizassem a justiça social e, no interior de seu segmento religioso, procuraram recuperar a tradição evangélica de protesto e participação no processo de transformação social. A novidade deste movimento está no fato de professarem uma convicção teológica evangélica conservadora, denominada Teologia da Missão Integral (diferente das posturas teológicas tradicionais de outros grupos cristãos de esquerda) aliada a um discurso político progressista. Desta forma, nos anos 80, viram o surgimento de uma esquerda evangélica com fortes vínculos em suas comunidades, buscando ocupar espaços em partidos, sindicatos e participação ativa nos movimentos sociais de protesto.

Este segmento específico desta igreja é formado por intelectuais, estudantes e profissionais liberais que se identificam com as propostas políticas do campo popular democrático, formando assim uma esquerda confessante. Para eles dizer sim a Deus implica em dizer sim a vida, e o modelo de santidade que desenvolvem é, o modelo de santidade encarnacional. Este assume uma solidariedade com toda a realidade criada, não negando o mundo, mas envolvendo-se e buscando sua plena restauração.

1) SANTIDADE E CIDADANIA

“Eu, entretanto, estava mais que feliz. Enfim pela Graça de Deus, nós, os evangélicos, estávamos deixando de ser vistos como um bando de reacionários religiosos e estávamos passando a ser percebidos como um segmento que participava da vida da cidade. E isso, para mim, era um sonho de muitos anos.”
Rev. Caio Fábio1

Ainda é muito presente, na comunidade evangélica, um conceito de santidade pessoal no qual o fiel é ensinado a “deixar o mundo” e todos os seus interesses. Desta forma manterá sua pureza como filho de um Deus Santo. Esta orientação permite uma série de situações conflitivas quanto aos hábitos e interesses dos fiéis nesta tensão de uma dupla cidadania (terrestre e celeste), de maneira que cada denominação, segundo suas tradições, procura dar orientações que regulem a vida do fiel em sua conduta2. Esta preocupação em manter-se afastado do mundo permitiu o desenvolvimento de uma perspectiva ética que privilegia a moralidade pessoal, focalizando no indivíduo todo o projeto de mudança espiritual e social.

Mariz adverte que os críticos do pentecostalismo, ao verem nisto uma fonte de permanente alienação política, acabam por adotar uma visão reducionista do processo de mudança social pois partem do “falso pressuposto de que a mudança social se faz apenas no mundo da política e que o palco da história é exclusivamente o mundo público” (1996: 173). Segundo esta autora, quando buscamos entender o papel do pentecostalismo (com seu enfoque na moralidade pessoal) nas populações carentes, é necessário dar-se conta que, apesar de toda complexidade que está presente na origem da pobreza, ela é primeiramente vivida como um problema individual. Nesta situação crítica de vida, os indivíduos se encontram impossibilitados para desenvolver uma consciência social e engajamento conseqüente.

Mariz sugere que a via política não é o único meio de promover a transformação social, e que as mudanças nas vidas privadas “não somente não impedem a mudança social, como também podem ser instrumento desta mudança” (ibid: 174). Desta forma as igrejas evangélicas, que limitam sua ação a dimensão microssocial, também dão sua parcela de contribuição ao projeto de mudança da sociedade.

Esta forma de ler o pentecostalismo supera a leitura a partir da categoria de alienação e abre novas portas para compreender este fenômeno religioso, que poderá ser melhor percebido se atentarmos para o fato de que

“os pobres não são vítimas passivas e impotentes da sociedade, mas sabem o que querem e como fazer para chegar a seus objetivos. Para ajudá-los, temos de respeitar sua forma de agir e buscar conhecer melhor que estratégias adotam para enfrentar e superar a situação de privação em que vivem” ( ibid: 174).

No seio do movimento evangélico brasileiro os segmentos identificados com a Teologia da Missão Integral promovem uma forma de entender santidade que encoraja o fiel a assumir o mundo com suas limitações e ambigüidades, agindo no mesmo como
um instrumento de Deus na história 3. Este conceito de santidade é chamado de modelo encarnacional, por se propor a seguir o exemplo de Cristo (modelo de compromisso do Deus criador com sua criação rebelde).

Buscando participar de uma sociedade onde os valores do Reino de Deus (justiça e paz) sejam modelo para todas as dimensões da vida, este enfoque de santidade mantém a dimensão pessoal da ação microssocial mas exige que os fiéis assumam sua condição de seres sociais, comprometendo-se com o mundo mas rejeitando sua mundanidade4. E apesar de reconhecer os benefícios do enfoque pessoal, insiste que limitar-se a este nível é desobediência à vontade de Deus, uma opção de presença conservadora, indiferente aos problemas sociais.

Este recente movimento de participação sócio-política do segmento evangélico permitiu a visualização de uma pluralidade ideológica presente neste grupo, o que explicará a adesão aos diferentes projetos de sociedade. O segmento identificado com os setores progressistas da sociedade brasileira, abraça um projeto de cidadania5 que luta pela prioridade de uma agenda social, e que promova a superação das desigualdades entre os homens. Isto significou tomar partido, vivenciar a dimensão do enfrentamento político e ampliar seu conceito de solidariedade, o que traz para dentro do campo evangélico novas dinâmicas que permitirão o amadurecimento de seu papel
social, revelando suas fragilidades e potencialidades. Obviamente que os evangelicais não foram os primeiros, nem os únicos, a promoverem tais dinâmicas neste segmento, mas hoje, devido aos seus vínculos e penetração na comunidade evangélica, são os principais promotores destas modificações devido a intencionalidade de sua atuação e a organicidade de seus projetos.

a) Incentivo a militância

“Não creio em cristianismo que não começa com conversão e que não termine com compromisso social.”
Charles Wesley

“A tarefa do cristão é transformar o mundo.”
Charles Finney

“Aí estão os partidos, sindicatos e movimentos cívicos à nossa espera, como canais de construção histórica, enquanto nós sumimos no “Triângulo das Bermudas”: casa-trabalho-igreja.”
Robinson Cavalcanti6

Um dos principais efeitos que o surgimento desta esquerda confessante trouxe para a igreja evangélica foi o incentivo à militância. O PPS, percebendo esta dinâmica, promoveu uma campanha nacional de filiação de evangélicos e, ainda que menos organizado, o mesmo aconteceu no PT . A militância em partidos e sindicatos ainda atrai menos do que a participação em movimentos de protestos7, por três razões: o desconhecimento das dinâmicas internas destes organismos; o caráter conflitivo das disputas internas; e o desgaste de estar identificado com o conjunto das bandeiras que
partidos e sindicatos possam vir a defender e que eventualmente possa ser discordante da orientação de sua filiação religiosa-denominacional. Nos movimentos de protesto a objetividade da causa e a flexibilidade quanto ao tempo de participação tornam mais atraente a participação.

Desde o inicio da movimentação popular pró-constituinte e pró-eleições diretas, os evangélicos já estavam nas ruas, ainda que sem uma visibilidade de grupo. A partir das eleições presidenciais e sobretudo no momento do impeachment, esta visibilidade aumenta, quando os próprios evangélicos começam a protagonizar algumas marchas e manifestações. O estado do Rio de Janeiro tem sido o palco de movimentos de protesto onde a presença evangélica tem obtido maior destaque. Nesta movimentação a VINDE e AEVB, naquele momento presididas pelo pastor Caio Fábio e seguindo a orientação de seus líderes, têm sido o foco de mobilização evangélica.

As campanhas Contra Fome, Viva Rio, Reage Rio e Rio Desarme-se mobilizaram segmentos evangélicos que redescobrem (e alguns descobrem) as implicações da participação cívica, como foi descrita por seu líder falando sobre a experiência de “invasão” nos morros da cidade promovendo o Rio Desarme-se:

“Subimos e foi uma bênção. Descemos exaustos mas felizes por volta da meia-noite. O medo desapareceu e as invasões passaram a ser uma grande festa. Eram grupos que iam de 12 até mil pessoas, como foi o caso da Rocinha. Sempre fomos recebidos com extremo carinho. Íamos de casa em casa, cantávamos nas ruelas e becos, orávamos com os doentes, ensinávamos canções às crianças, dávamos as mãos aos bêbados em bares e nos confraternizávamos com eles, parávamos em lugares marcados por crimes, mortes, chacinas e sombras, e pedíamos a Deus que libertasse as pessoas de suas lembranças dolorosas e de seus fantasmas.” (1997: 368)

Este incentivo à militância proporcionou uma releitura da história evangélica, onde se pode encontrar uma tradição de ativismo social8, através dos exemplos das Revoltas Camponesas do século XVI, dos niveladores e cavadores do século XVII, do abolicionista inglês William Wilberforce, da participação de batistas e pentecostais nas ligas camponesas e sindicatos rurais no nordeste, de Martin Luther King, Desmond Tutu (ambos receberam o prêmio Nobel da Paz) e do estadista holandês Abraham Kueyper. Uma questão oriunda desta descoberta foi o papel das editoras evangélicas que, na sua grande maioria, não publicaram livros que relatassem estas experiências de inserção social. Algumas até preferindo publicar parte da obra de um líder evangélico (caso das obras de Finney), “esquecendo” todo seu trabalho de dimensão social.

b) Reformulação de agendas

Esta apresentação da literatura nos permite ver uma outra influência para o segmento evangélico, oriunda deste grupo progressista: a reformulação de agendas. Uma série de temas, que até então estavam distantes da comunidade evangélica, agora se tornam temas para livros, pautas para congressos e encontros, provocando um debate interno.

Durante muitos anos a maioria das igrejas estiveram preocupadas com a ampliação do número de fiéis. Desta forma sua agenda tinha como prioridade a evangelização, missões e o surgimento de novas igrejas. Suas obras assistenciais tinham o foco mais no necessitado e não tanto na origem material das necessidades, que permitiam ou provocavam tal situação de pobreza.

À medida em que o processo de discussão sobre o que vem a ser a missão da igreja aprofunda-se, e a expansão numérica dos evangélicos se depara com pessoas vivendo em níveis de pobreza cada vez maior, outros temas passam a ser debatidos e novas perguntas surgem para a leitura do texto bíblico. Um interessante exemplo disto é o texto do pastor pentecostal Ricardo Gondim sobre batalha espiritual (ao analisar o episódio bíblico das pragas enviadas por Deus ao Egito a fim de que o faraó libertasse o povo de Israel) e suas implicações sociais:

“Na guerra espiritual deve-se levar sempre em conta a economia. As superestruturas econômicas, montadas de tal maneira que apenas uns poucos lucram e que a grande maioria permanece cativa à miséria, precisam ser desmontadas. Os detentores do poder não abrem mão dele com facilidade. Na década de 70, com o chamado milagre brasileiro, prometia-se aumentar o bolo para depois dividi-lo. Alguns pensadores da época advertiram que o modelo econômico brasileiro era perverso, pois concentrava a renda nas mãos de uma minoria. Os economistas respondiam que não havia como distribuir a pobreza. A prioridade deveria ser aumentar a riqueza e em um segundo estagio reparti-la. Esqueciam que o aumento da riqueza também aumenta o poder e quanto maior o poder, menos disposição em dividi-lo. O resultado é que Isis e Osires9 reinam na economia brasileira. Semelhantes aos judeus, milhões trabalham, quando apenas uma minoria de abastados desfrutam da riqueza produzida.” (1993: 75)

Além da concentração da renda, outros temas passam a fazer parte da agenda pastoral da igreja, como: a questão da terra10, direitos humanos11, greve e desobediência civil12,

fome13, estilo de vida simples14, consumismo e idolatria do mercado15, ecologia16. Esta reflexão abre espaço para uma outra linha editorial que luta para manter-se, uma vez que estes não são os temas favoritos da maior parte da comunidade evangélica. Entretanto esta literatura lentamente vai penetrando em centros de formação de liderança e nas escolas teológicas, o que cria a possibilidade de influenciar novas gerações de pastores e líderes.

Esta nova agenda inspirou a convocação de eventos e a elaboração de protestos organizados em nível nacional. Nos encontros organizados pela AEVB foram debatidos questões como: Ética e Violência Urbana, Análise da Conjuntura Nacional, O Combate a Seca no Sertão. Os protestos foram feitos contra o Massacre do Eldorado de Carajás, sobre o conflito de terras no Maranhão, em defesa da Vale do Rio Doce e a favor da CPI do Orçamento.

c) Abertura ao diálogo

“O diálogo do cristão com outra pessoa não significa negar o caráter único de Cristo, nem relaxar nosso próprio compromisso com Cristo, mas que a genuína aproximação do cristão a outros será humana, pessoal, relevante e humilde. No diálogo compartilhamos nossa humanidade comum, tanto nossa dignidade como nossa natureza caída, e expressamos uma preocupação comum por esta humanidade caída.”
Informe II, da 4ª Assembléia Mundial do CMI- Upsalla 1968

A preocupação por fazer a vontade de Deus e o desejo de ver toda a sociedade refletindo esta vontade, têm levado muitos grupos religiosos à uma postura de intolerância religiosa e política. Esta atitude tenta impor uma crença e um tipo padrão de comportamento.

Muitas das atitudes do mundo evangélico, que eram (ou são) lidas pela sociedade como sinais de intolerância, são consideradas internamente como zelo religioso. Como está em questão a legitimidade e competência de quem “entende” a vontade de Deus, a disposição para ouvir e dialogar é regulada por sua compreensão sobre quem tem realmente o que dizer e quem deve ouvir.

Uma das maiores influências para o diálogo, dentro do movimento evangelical, é associada à trajetória de um de seus principais líderes: John Stott. Ele é pastor anglicano, reitor emérito da Paroquia de All Souls Church em Londres, capelão honorário da rainha da Inglaterra, autor de 34 livros, expositor bíblico de maior renome entre os evangélicos, presidente do London Institute for Contemporary Christianity e redator do Pacto de Lausanne.

Devido às suas habilidades de liderança e às teses que desenvolve em seus livros e palestras, ele tem tido um papel fundamental no diálogo entre as várias tradições cristãs. No Brasil sua influência chega por meio da ABUB, através da publicação de seus livros e a participação em encontros estudantis. No final da década de oitenta, Stott amplia esta influência por meio da VINDE, em seus congressos nacionais para

pastores, e por ter um livro publicado pela maior editora pentecostal. 17

Segundo Stott, a experiência do diálogo evita duas tendências nocivas, a saber, a imposição e a indiferença. E uma vez que os evangélicos estejam conscientes de sua base de convicção na Escritura Sagrada, quanto à verdade do Evangelho e o compromisso pessoal com Cristo (elementos que regulam a abertura ao diálogo em termos de fé), deve haver uma postura dialogal.

“Es cierto que una buena predicacion cristiana es siempre dialogal, en el sentido de que capta la atencion de los oyentes y les habla con relevancia. Pero no es cierto que todo monólogo sea manifestacion de orgulho. El evangelista que proclama el evangelio no afirma que lo sabe todo, sino unicamente que le ha sido confiado el evangelio. Debemos estar dispuestos también, creo yo,… a entrar en diálogo. Al hacerlo aprendemos de la otra persona tanto acerca de sus creencias como (escuchando su reacción crítica al cristianismo) acerca de ciertos aspectos de las nuestras. Pero no deberíamos cultivar una apertura total en la que suspendemos hasta nuestras convicciones respecto a la verdad del evangelio y a nuestro compromisso personal con Jesuscristo.” (1977: 79-80)

Resguardando a dimensão da convicção religiosa, ele encoraja o diálogo porque este permite:

a) uma relação de autenticidade: pois valoriza as relações pessoais que permitem conhecer e ser conhecido;
b) humildade: aumentando o respeito mútuo e permitindo verificar se sua discordância da perspectiva crista é fruto de uma caricatura de Cristo, da qual a igreja seja responsável;
c) integridade: ouvir permite desfazer as falsas imagens em relação aos outros, perceber os problemas reais e conhecer suas convicções;
d) crescer em sensibilidade: conduzindo a uma postura de escuta com o real interesse de entender o outro.

Afirma que devido à perspectiva evangélica tradicional sobre Deus (que se revela a suas criaturas) e sobre o ser humano (ser livre e consciente), tanto a indiferença quanto a imposição devem ser rejeitadas em favor da persuasão que se apoia na argumentação baseada na Bíblia (na evangelização) e no exemplo de serviço comprometido com os necessitados (na ação social e política).

“The living God of the biblical revelation, who created and sustains the universe, intended the human beings he made to live in loving community. Moreover his righteousness is a essential expression of his love. He loves justice and hates oppression. He champions the cause of the poor, the alien, the widow and the orphan. He feedes the hungry, clothes the naked, heals the sick, finds the lost. He wants all humankind to be saved and to come to know the truth in his Son Jesus Christ. Now this biblical vision of God profoundly affects our attitude to society, since God’s concerns inevitably become his people’s too. We also will respect men and womem made in God’s image, seek justice, hate injustice, care for the needy, guard the dignity of work, recognize the necessity of rest, maintain the sanctity of marriage, be zealous for the honor of Jesus Christ, and long that every knee will do homage to him and every tongue confess him. Why? Because all these are God’s concerns. How can we acquiesce in things which passionately displease him, or affect nonchalance about things he is strongly committed to?” (1984: 50)

A esta orientação para o diálogo, deve somar-se à contribuição de outro autor evangelical, Francis Schaeffer, autor que se torna conhecido no Brasil através de seus livros publicados por diferentes editoras evangélicas (com pioneirismo para Editora da ABUB em co-edição com a Editora Fiel), e que também teve grande influência no Congresso de Lausanne. Schaeffer reforça no meio evangélico brasileiro o conceito de co-beligerância18, que significa trabalhar em cooperação com qualquer grupo, pessoa, instituição, organização ou movimento com que se tenha uma convergência de valores, valores estes que promovam a vida e a justiça.

Diálogo e co-beligerância, duas proposições que orientam a ação progressista evangélica. Ao invés de auto-proclamar-se como resposta, este segmento se lança, juntamente com outros setores da sociedade em busca e na construção de respostas que garantam os direitos civis, políticos e econômicos dos cidadãos brasileiros. Como exemplo deste processo já vimos os esforços nos comitês eleitorais, nos Fóruns do MEP, encontros do MEPS. E além disso, vale lembrar: o surgimento da Casa da Paz em Vigário Geral no Rio de Janeiro19; o Diálogo Evangélico Brasileiro, encontro entre evangélicos e candidatos à presidência da republica20; o 1° Encontro Evangélico de Consciência Negra de Osasco e Região- SP21; o encontro sobre Ética Evangélica e Violência Urbana22; campanhas pelo desarmamento da população e contra a fome; o SOS Desaparecidos (organizado pelo vereador batista Betinho Duarte- PT de Belo Horizonte); o seminário “Neoliberalismo e Missão”23 que reuniu representantes dos movimentos evangelical e ecumênicos; e nas surpresas provocadas pela campanha do Desarme-se Rio, conforme relata Caio Fabio sobre a subida no morro do Borel:

“Chegamos, enfim, ao lugar onde as freiras católicas moravam. Cantamos hinos evangélicos e acordamos as irmãs. Elas saíram e nos abraçaram. Oramos juntos e celebramos algo que tínhamos em comum muito mais forte que nossas diferenças religiosas: nosso amor à paz e nosso desejo sagrado de pacificar o Rio.” (1997: 376)

Este momento de ampliação de solidariedade, onde segmentos do mundo evangélico procuram dialogar para fora de seu círculo, pode ser evidenciado por esta sintonia com a problemática nacional, pelo incentivo à militância, pela reformulação de agendas e abertura ao diálogo. Este novo perfil de igreja, que encontra na luta pela cidadania uma sintonia com seu chamado à santidade, dá um sentido coletivo àquilo que até então era uma força de transformação individual.

III- CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crescimento da comunidade evangélica está contribuindo no Brasil para a ampliação da sociedade organizada. Tem sido acompanhado por uma maior sensibilização social da igreja, provocando, entre outras coisas, a transformação política da mesma. A opção tradicional do não envolvimento vem sendo gradativamente substituída pela participação, seja através do debate de temas nacionais ou, de forma mais evidente, pela maior presença na política partidária.

A partir dos anos 80 esta presença se fortaleceu, chegando a um momento de destaque na Assembléia Nacional Constituinte, por meio da formação da bancada evangélica. A orientação política desta bancada estimulou uma reação por parte daqueles que, sendo evangélicos, não se viam representados pela mesma e, ainda mais, discordavam das posturas tomadas por esta bancada em nome da comunidade evangélica. Este segmento descontente, ao se organizar, permite a visualização de um pluralismo ideológico que abre várias possibilidades quanto ao futuro político desta comunidade.

Ao se organizar, este grupo se conecta com a tradição, minoritária, mas presente, da esquerda evangélica brasileira, e introduz nesta tradição novos elementos que são constitutivos de sua identidade. Possuem uma perspectiva teológica conservadora, mantendo as ênfases tradicionais do mundo evangélico na Bíblia, na oração, na conversão pessoal, na preocupação missionária. São politicamente articulados e estão plenamente integrados em suas igrejas, de forma que se propõem uma dupla militância: na igreja e na sociedade (por meio dos partidos e movimentos sociais).

A origem desta esquerda confessante está vinculada a instituições que agregam profissionais liberais, estudantes, intelectuais e uma parte do clero evangélico, todos identificados com o Movimento de Lausanne. Este segmento recebeu a denominação de Movimento Evangelical, sendo a Aliança Bíblica Universitária do Brasil e a Fraternidade Teológica Latino Americana os pontos de origem deste movimento no país. Posteriormente o movimento teve sua influência ampliada por meio de outras organizações, sendo a Visão Mundial, a Comissão Brasileira de Evangelização e a Visão Nacional de Evangelização as mais importantes.

A influência do Movimento de Lausanne (por meio destas organizações, congressos e literatura) provocou uma revisão no conceito de missão da igreja evangélica brasileira. Ao sustentar a necessidade de incorporar as dimensões sociais da fé, desenvolvendo assim uma Teologia da Missão Integral, estimulou um novo acercamento à sociedade, resgatando o sentido de responsabilidade pela mesma. Embora não tivesse uma proposição política partidária, intencionalmente desbloqueou o tabu em torno da tomada de posição neste campo e encorajou o diálogo com as diferentes propostas de sociedade que surgiam no Brasil dos anos 80.

Redemocratização, ampliação dos níveis de pobreza, uma missiologia e espiritualidade encarnacional, a resdescoberta da tradição evangélica de protesto, tudo isso aproximou parte do movimento evangelical brasileiro as propostas do campo popular democrático. Esta aproximação se efetivou por meio da participação nas campanhas políticas, na formação de grupos de discussão, na filiação e lançamento de candidaturas em partidos de esquerda, e na participação em movimentos sociais de protesto.

Esta politização religiosa não aconteceu sem tensão, uma vez que ela exigiu uma redefinição de espiritualidade, ou seja: entre fé e ação política, igreja e sociedade, ação individual e ação coletiva. Esta tensão encontrou guarida no seio da própria igreja, onde outros modelos de missão estavam (e estão) vigentes, e também teve uma vertente na política partidária onde estes novos atores sociais encontraram uma cultura política que suspeita dos limites e conteúdos deste progressismo evangélico.

Considerando este processo como um fortalecimento da organização da sociedade brasileira, acreditamos que este modelo de espiritualidade encarnacional, que permitiu esta aproximação e participação, de evangélicos no campo democrático popular potencialmente implica em:

a) nos partidos
ampliar os quadros de militantes;
contribuir para atenuar a desconfiança mútua entre esquerda e evangélicos;
fortalecer a tradição de fiscalização ética dos poderes públicos;
poder trazer uma contribuição neste momento de revisão teórica de paradígmas.

b) na sociedade
fortalecer a organização da sociedade civil;
fortalecer os movimentos sociais ampliando seus quadros e trazendo para estes movimentos a experiência evangélica de trabalho humanitário.

c) na igreja evangélica
reformular agendas;
resgatar a dimensão do diálogo;
aprofundar o debate sobre as mediações sócio-analíticas;
ampliar seu conceito de solidariedade;
difundir uma cultura política de caráter participativo preocupada com a cidadania;
rever concepções teológicas sedimentadas.

Toledo (1994) afirma que as esquerdas redescobriram a democracia, considerando-a como um valor no processo de construção do socialismo, buscando projetos que levem a uma democracia de maioria, que priorize a liberdade e igualdade social, com o Estado sob o controle popular. Os evangélicos estão redescobrindo tanto a democracia como a cidadania. Os processos políticos dentro e fora do mundo evangélico nos anos 80, o avanço da Teologia da Missão Integral, o processo de revisão das esquerdas, que procuram afastar-se do perfil de perseguidora da igreja e se mostram mais abertas a considerar as bases sociais evangélicas, a projeção de políticos evangélicos vinculados a partidos de esquerda e o crescimento da miséria do país, impulsionam esta redescoberta.
O esforço organizativo desta esquerda confessante demonstra uma superação do progressismo limitado à esfera eclesial, conduzindo ao exercício e aprendizado do diálogo num contexto plural e conflitivo. Contudo, as candidaturas aos cargos eletivos oriundas deste movimento fogem do perfil do evangélico bem votado. São encabeçadas por pessoas sem grande expressão neste segmento, sem associação com a mídia e que não representam projetos corporativos de grandes igrejas.
Toda esta realidade mostra que há muito chão a ser percorrido neste processo de fortalecimento dos grupos preocupados em reverter às prioridades neste país, garantindo assim os direitos políticos, sociais e econômicos daqueles que estão à margem da história, superando assim as desigualdades entre todos os que igualmente nascem e morrem. De toda forma, ao relacionar santidade e cidadania, e ver as implicações de uma espiritualidade encarnacional, os evangélicos se dão conta de que eles também devem fazer parte daqueles que constróem, aqui e agora, um mundo melhor para si e para todos os demais.

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