Entendendo o Tempo Presente

Autor: Ricardo Wesley M. Borges
“Cada época tem suas grandezas e suas loucuras, suas possibilidades e suas tentações. Mas essas sempre são diferentes de época para época. Para aproveitar as oportunidades e evitar as ciladas, os cristãos deveriam estar num processo contínuo de ‘entender o tempo presente'(Rom.13:11).” Gene Edward Veith, Jr.

Introdução

Uma das características dos profetas na Bíblia é que sabiam ler os “sinais dos tempos”. Isso incluía anunciar eventos futuros. Mas, mais do que isso, sabiam ler a sua realidade presente. Possuíam um dom divino especial de discernir o que estava por trás das atitudes e posturas do povo, dos líderes religiosos e dos governantes de sua época. Sua missão consistia em denúncia e anúncio. Iam além das aparências e denunciavam as motivações erradas, traziam à luz os pecados escondidos, anunciavam as conseqüências de permanecerem em seus maus caminhos e a possibilidade de reconciliação e restauração caso houvesse a conversão para o Deus vivo. O profeta olha para passado e para o futuro prevendo as conseqüências das tendências atuais, dos sinais dos tempos da era presente. Adverte, então, baseado na revelação de Deus em sua Palavra.

Esse é um dom e um ministério a ser resgatado em nosso tempo. Examinar e perscrutar a realidade presente. Entender seus pressupostos e formas de pensar e agir. Identificar as novas tendências, percebendo que algumas não são tão novas assim. Sugerir alguns caminhos para questionamento e anúncio das verdades divinas. Esse é o propósito desse breve texto, que procura chamar a atenção para alguns “ismos” (pluralismo, relativismo, racionalismo, individualismo e misticismo), e tenta resumir, com o risco da generalização indevida, algumas de suas características e desafios que impõem à nossa missão, principalmente no que se refere ao anúncio do Evangelho de Jesus Cristo em nossa geração. Não é uma tarefa fácil. Apenas aponto pistas que surgiram, em grande parte, nos momentos de reflexão e edificação mútua no contexto do ministério da ABU. O desejo de respondermos às questões do noso tempo veio nas oficinas de capacitação, nos desafios que a prática da evangelização na Universidade nos colocava e, principalmente, naqueles encontros de quinta-feira na Casa do Estudante da ABU – Céu & Cia, em Ribeirão Preto. A eles dedico esse trabalho, orando a fim de que ele seja útil para estimular a reflexão sobre a nossa época e a nossa missão. Também orando para que, talvez como aquele teólogo que nos encorajava a segurar a Bíblia em uma mão e o jornal na outra, sejamos fiéis ao nosso Senhor e à nossa geração.

1. Viva as opções (Pluralismo)

a. Um panorama

Vivemos num mundo pluralista. Entendemos isso como “uma característica da sociedade na qual não há nenhum padrão oficialmente aprovado de crença ou conduta”1. Por pluralização então, entende-se, nas palavras de Os Guiness, “o processo pelo qual o número de opções na esfera privada da sociedade moderna se multiplica em todos os níveis, especialmente no nível das visões de mundo, fés e ideologias”2. A TV a cabo e a Internet dão uma boa idéia da globalização e da possibilidade de escolha. Escolher entre produtos diferentes que são oferecidos, mas não só isso. Também se pode escolher entre as mais variadas maneiras de se ver o mundo, as chamadas cosmovisões, cada vez mais próximas e familiares a nós.

Essa pluralidade é aprovada e desejada no mundo contemporâneo. E, de fato, possui aspectos extremamente positivos. O intercâmbio entre povos distantes, na geografia e na cultura, carrega consigo as sementes de uma melhor compreensão mútua, empatia respeitosa e convivência pacífica. Isso também enriquece e embeleza a vida, amplia a visão e coopera para evitar a estreiteza e o preconceito cultural.

Mas também há outros aspectos desse pluralismo. Aqui vamos fazer uma distinção entre pluralismo cultural e religioso3. No âmbito cultural há aspectos positivos, como os expostos acima. Ainda assim, mesmo entre os apreciadores da diversidade cultural há aqueles que reconhecem que as culturas não são moralmente neutras4. Mas também há aqueles que defendem que cada cultura se basta por si só, não devendo ser julgada por uma outra. Esses afirmam, talvez com certa ingenuidade, que não se pode efetuar juízos de valor, que não se pode dizer que tais elementos de determinada cultura são bons ou maus. Ingenuidade porque reconhecem, às vezes inconscientemente, certos valores universais que perpassam as culturas. Posso dar um exemplo. Numa certa ocasião, uma colega minha da Universidade, que pensava dessa maneira pluralista e relativista, veio ao meu encontro chorando. A causa era uma briga no Centro Acadêmico da Faculdade, onde ela tinha sido alvo de agressões verbais e quase físicas. No meio do choro e da indignação, ela disse “não é justo, isso não está certo…”, interrompeu para dizer “se bem que não existe esse negócio de certo e errado”, e depois de alguns instantes, ainda chorando, repetiu “mas isso não é justo!”. O que essa história ressalta é a verdade com a qual temos que lidar, de que em cada cultura há bons e maus elementos5. Torna-se difícil perceber como “natural”, “bom” ou mesmo “aceitável” para determinada cultura, qualquer que seja, situações como o canibalismo, a prostituição infantil ou a corrupção.

Quanto ao pluralismo religioso, tem se dado por certo que as diferenças entre as religiões não são assunto de verdade e falsidade, mas de diferentes percepções de uma mesma verdade. Não importa, então, o conteúdo que uma determinada fé sustenta, mas a sinceridade com que se crê. De acordo com essa mentalidade, tudo que aparenta ser dogmático deve ser questionado. A verdade nunca pode ser alcançada. Exalta-se a dúvida6.

A seguinte resposta a qualquer pergunta:”não sei”, é admirada como sinal de maturidade e intelectualidade. Ainda que a verdade seja maior do que o que nos é revelado e permitido compreender, a pessoa pluralista estima o que é incerto, obscuro, afirmando que a verdade nada mais é do que uma questão de percepção pessoal. Assim, opiniões diferentes, mesmo divergentes, são verdadeiras para aqueles que assim as percebem e crêem. O que se busca é o caminho das “neblinas e nuvens”, que são “generosas em suas sombras”. Prefere-se a “luz difusa”, que “sugere mistério”. Quanto à verdade, essa “mora na escuridão”, sendo “essencialmente um segredo”7.

Dando seguimento a uma observação mais cuidadosa dessa cosmovisão, percebe-se que o princípio do pluralismo não é universalmente aceito. Newbigin sugere que nós fazemos uma clara distinção entre um mundo que nós chamamos “valores” e um mundo que nós chamamos “fatos”8. No primeiro mundo nós somos pluralistas; valores são uma matéria de escolha pessoal. No último nós não somos; fatos são fatos, quer você goste deles ou não. Uma pergunta acerca de problemas matemáticos, ou relativa à astronomia, geografia ou mesmo história requer uma resposta objetiva e correta.
Nenhum professor se satisfará com uma resposta baseada apenas na subjetividade do aluno. Mesmo no campo da história, sujeito a leituras e interpretações diferentes, se busca ao máximo a veracidade dos fatos estudados. A Segunda Guerra Mundial é um fato, incontestável. Sobre a extensão de suas causas e conseqüências pode haver divergências. Mas quanto aos fatos, por exemplo, o holocausto dos judeus, mesmo que haja versões diferentes(semitas e anti-semitas), elas não podem ser aceitas ao mesmo tempo. O pluralismo aqui não é bem visto. A verdade do que realmente aconteceu é buscada e, através das evidências, atestada. No caso, o holocausto, infelizmente, realmente aconteceu. Mesmo que um dos grupos, os anti-semitas, continuem a acreditar em sua versão, ela não passará disso, uma versão e nunca um fato.

Por outro lado, a religião é colocada no mundo dos “valores”. Aqui o pluralismo é claramente aceito e pregado. Uma religião, qualquer que seja, não pode requerer falar mais do que simplesmente valores ou percepções pessoais e limitadas. Nenhuma pode reclamar o direito de falar a respeito de fatos e verdades. Já que são valores e não fatos, nenhuma religião pode se dar o direito de evangelizar e atrair para suas fileiras adeptos de alguma outra religião. Evangelismo torna-se sinônimo de proselitismo preconceituoso, racista e mesmo imperialista. Obviamente, ao longo da história, a Igreja Cristã praticou e ainda incorre nesses erros. Porém, a questão aqui não é de generalizações e sim de examinar a postura da mente atrás da afirmação de que não devemos evangelizar, mas sim dialogar. Importa descobrir que estrutura de pensamento sustenta a advertência segundo a qual não devemos tentar empurrar nossa religião sobre outros que já possuem suas próprias convicções. Nesse ponto, a estória de um certo elefante irá nos ajudar.

Para lembrar:

* Por pluralismo entendemos as múltiplas opções em todas as esferas da vida humana. Isso tem sido algo estimado e desejado em nossos dias.

* Há o pluralismo cultural e o pluralismo religioso. O primeiro é interessante apesar de ingênuo, quando desconsidera a existência de bons e maus elementos em cada cultura. O segundo diz que não há diferenças essenciais entre as religiões, sendo cada uma parte de uma verdade maior.

* O que qualquer religião diz é colocado no mundo dos “valores”. Ela não pode falar acerca de fatos e de verdades e, assim, não pode querer “empurrar” suas convicções sobre outros que já possuem as suas próprias.
b. Um certo elefante

Há uma famosa estória agnóstica sobre um certo elefante, homens vendados, servos e um rei, que pode nos ajudar a compreender a mentalidade pluralista. Resumindo, um rei, certo dia, mostrou aos seus servos um elefante agarrado por diversos homens que possuíam uma venda cobrindo seus olhos. Cada um representava uma religião mundial. Segurando a tromba estava um hindu, em uma perna estava um budista, em outra um muçulmano e agarrado na parte traseira um cristão. “Quem está com a verdade?”, perguntou o rei. E respondeu, “A verdade, de fato, é o elefante; cada um ‘segura’ parte da verdade, mas não conseguem abarcar a realidade inteira, a verdade toda, e por isso não entendem o que esta seja e nem se entendem entre si.” Qual é o verdadeiro ponto dessa estória? Como interpretá-la? Um agnóstico diria que cada religião é arrogante ao afirmar que possui a verdade absoluta e que a verdade é bem maior do que cada um pode compreender. Porém, prestando um pouco mais de atenção, poderia se perceber que mais arrogante é aquele que diz conhecer a verdade inteira, o rei, apontando do alto de um pedestal para a parcialidade de todas as outras religiões. Essa é uma afirmação pedante, uma crença mais absoluta e abrangente do que a de qualquer outra religião. Imagine se o rei e os servos também estivessem vendados. Como poderiam chegar às suas conclusões?

“A idéia de que haja, ou poderia haver, uma instância de onde nós poderíamos amostrar e avaliar as religiões mundiais, identificando os bons e maus elementos em cada de um ponto de vista que seria neutro, imparcial, e acima das particularidades de qualquer uma”9, pode ser uma idéia atraente, mas irreal. Todo pensamento, cosmovisão ou ideologia são culturalmente condicionados. Eles não são, por assim dizer, neutros ou imparciais. Eles possuem seus pressupostos e premissas particulares. Vamos tratar melhor disso mais adiante. Por enquanto, vale ressaltar que não há uma instância imparcial de juízo e avaliação das religiões mundiais. Alguém que busca esse ponto de vista neutro ou diz bobagem, ou acaba por criar uma nova religião sincrética universal, ou as duas coisas juntas.

O que fazer da pluralidade de cosmovisões, fés e ideologias em nosso mundo? Talvez essa pergunta ainda seja precoce. Então, o que importa por hora é combater a idéia de que a simples existência da pluralidade de opiniões(a respeito de qualquer coisa) significa que todas estejam corretas. Ou, que posso julgá-las sem envolvimento pessoal e parcialidade. Uma citação do interessante romance da história da filosofia, “O Mundo de Sofia”, pode nos ajudar aqui. O personagem Alberto, um misterioso professor de filosofia, formula questões filosóficas à Sofia, sua jovem aluna. Quem é você? De onde vem o mundo? Há vida depois da morte? Como devemos viver? Ensina-lhe que essas perguntas têm sido feitas por pessoas de todas as épocas e de variadas culturas. Diz-lhe que “a história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que estamos fazendo. É mais fácil, portanto, fazer perguntas filosóficas do que respondê-las”. Continua afirmando que “mesmo que seja difícil responder a uma pergunta, isto não significa que ela não tenha uma -e só uma- resposta certa. Ou há algum tipo de vida depois da morte, ou não”10. Pode ser difícil encontrar respostas para muitas perguntas, mas isso não quer dizer que elas não existam. E a variedade de respostas não implica necessariamente em dúvida e incerteza insolúveis. Em alguns casos, onde encontramos respostas contraditórias e excludentes, uma e somente uma deve estar certa. E essa deve ser almejada e buscada. Mas o caminho de certezas não é um caminho popular. A via da dúvida é a preferida do nosso tempo. Como foi que chegamos a isso?

Para lembrar:

* Não há uma instância imparcial onde alguém possa se colocar para analisar as religiões mundiais.

* A simples pluralidade de opiniões e de idéias a respeito de alguma coisa não significa que todas estejam certas. Em certas matérias, uma e apenas uma deve estar certa.

* Se há alguma verdade, esta deve ser almejada e buscada.

2. Nossas origens modernas (Racionalismo)

a. Como eu e você pensamos o que pensamos a partir de Descartes

“Penso, logo existo”. O que essa afirmação do séc. XVII tem a ver com a minha fé ou com o mundo de hoje? Qual a sua importância? Grande, se constatarmos que foi o ponto de partida e fundamento da filosofia de Descartes (considerado o pioneiro do movimento moderno de ceticismo sistemático). Ou seja, estamos diante do início do modo de pensar do mundo contemporâneo. Descartes afirmou que a verdade vem da demonstração intelectual. Todas as outras verdades estão, assim, relacionadas à própria existência do ser que pensa. Qual o referencial último? O homem e sua mente.

O pensamento cartesiano se baseia na “crença na autonomia do pensamento, a idéia de que a razão, bem dirigida, basta para encontrar a verdade, sem que precisemos confiar na tradição livresca e na autoridade dos dogmas. O espírito humano tem em si os meios de alcançar a verdade, se souber cultivar sua independência e conduzir-se com método”1. A busca desse novo referencial, o intelecto humano, ocorreu numa época de crise de certezas. Alguns sugerem que invenções como as do telescópio e do microscópio iniciaram o problema. Quando, usando esses novos instrumentos, as pessoas descobriram que as coisas não eram exatamente o que pensavam ser, as pessoas tornaram-se inseguras. Como poderiam garantir que não seriam mais enganadas pelas aparências? Muitos passaram a rejeitar as tradições e os dogmas de uma Igreja que sustentava, por exemplo, o geocentrismo2, quando as evidências mostravam o contrário.

A Idade Média foi um longo período em que todas as coisas eram vistas através de um prisma divino. As ciências naturais e a filosofia eram submetidas ao escrutínio da fé. “Durante toda a Idade Média, o ponto de partida sempre fora Deus. Os humanistas do Renascimento, ao contrário, têm como ponto de partida o próprio homem”3. Se, por um lado, ter como ponto de partida os propósitos do Deus Criador para uma humanidade criada é algo muito positivo, o dogmatismo e a intolerância da Igreja na Idade Média contribuíram decisivamente para o surgimento da nova maneira de encarar a realidade. Tendo em vista esse quadro repressivo, fica mais fácil entender a reação dos novos humanistas em sua ênfase na liberdade de pensar, na autonomia do homem e em sua fé suprema na razão. Buscou-se, a partir de então, a evidência, o visível, o palpável e o racional, tudo a partir de um “método previamente concebido”. Este consistia basicamente na dúvida. Estabeleceu-se que seria metodicamente necessário colocar tudo em dúvida4.

Jacques Ellul, um renomado teólogo desse século e crítico da modernidade, rejeitou esse pressuposto da busca do visível e do racional atacando a idolatria da evidência. “A evidência é o mal absoluto. É preciso nada aceitar da evidência, contrariamente ao que recomenda Descartes…Logo que nos deixamos invadir por esta preocupação de evidência, o discernimento da palavra se apaga, tornamo-nos insensíveis…”. Ele afirmou também que a dependência da evidência é totalmente contraditória ao conceito de fé. “A evidência, aquilo que se vê, parece afastar-nos da relação de confiança e de fidelidade”. O que importa, então, é “crer sem demonstração e sem nada para ver, porque se estabelece a relação de confiança com aquele que falou”5. O desafio é rejeitar a mentalidade de Tomé, descartar a necessidade absoluta da racionalidade e da constatação científica e engajar-se numa fé pessoal e relacional. É preciso desconfiar da dúvida. Mas o caminho oposto ao da dúvida não é o do dogma? Então, o que é dogma e quem é que está, no fim das contas, sendo dogmático?

Para lembrar:

* O pensamento da modernidade tem como referencial último o ser humano e sua mente.

* Ao dogmatismo da Idade Média sucedeu a ênfase dos tempos modernos na liberdade e na razão.

* A dependência à evidência e à racionalidade destrói a possibilidade de uma relação de fé e de confiança. A partir de então, todas as coisas passam a ser sujeitas à verificação, segundo o critério da razão.

b. O que é dogma e quem é dogmático?

Será que o dogma é uma característica única da fé cristã? Ou algo que é encontrado apenas no âmbito religioso? Um ateu ou agnóstico também podem ser considerados dogmáticos? Quando uma verdade estabelecida é criticada, de onde parte a crítica? Com certeza não parte do nada, não provêm de uma mente vazia. “Nenhum pensamento coerente é possível sem ter algumas coisas como estabelecidas…Nenhum pensamento coerente é possível sem pressuposições”6. De fato, quais os parâmetros para criticar um dogma? O questionamento só pode se construir a partir de outros pressupostos, de outras maneiras de compreender o mundo, ou seja, de outras cosmovisões. O confronto entre essas cosmovisões mostra que na realidade o que acontece é, ironicamente, um conflito entre dogmas diferentes.

Para ficar mais claro, observemos a definição de dogma. Essa palavra se refere a “aquilo que é dado com autoridade e recebido com fé”7. Toda tradição, quer seja uma tradição religiosa ou mesmo a tradição científica possui pressupostos de fé, ou se preferir, dogmas. Por exemplo, a Ciência trabalha com o pressuposto de que há uma ordem na natureza e de que essa ordem pode ser captada e compreendida pelo homem. Essa racionalidade do universo não pode ser provada de maneira absoluta, mas é aceita como pressuposto e impulso dos esforços científicos. Mesmo a idéia agnóstica de que tudo precisa ser provado é outra premissa, também dogmática. Ela presume que todas as coisas precisam passar por certos critérios de prova para serem aceitas como reais e verdadeiras. Mas por que? Certamente, esses critérios são outros pensamentos previamente dados como certos. Vejamos se alguns exemplos nos ajudam.

Um aluno assiste uma aula de seu professor e lê um livro indicado por ele. Esse estudante pode aceitar como certo o que o professor e o livro lhe disseram. Ou pode não aceitar e duvidar. Mas, e esse ponto é importante, ele apenas pode questionar baseado em outra informação ou tradição que ele aprendeu de outra fonte. Ele apenas pode duvidar se acreditar em alguma outra coisa que possui premissas diferentes.

Uma discussão sobre a existência de Deus também mostra algo interessante. Um ateu convicto crê na sua não-existência. Necessita de uma boa dose de fé, já que não pode provar isso. Por outro lado, não se pode provar (no sentido preciso do termo) a sua existência. Muitas cristãos, ao longo da história, caíram em armadilhas filosóficas ou racionalistas tentando fazê-lo. Então, um agnóstico, que não sabe se Deus existe ou não pois não se pode provar, estaria com a razão? Sim, se a prova racional e a evidência visível fossem critérios absolutos e necessários. Mas não são. A sua necessidade e presença em nosso tempo apenas mostram como nossa mentalidade foi moldada a partir da modernidade.

Com relação à essa exaltação da dúvida, Newbigin nos sugere que devemos realizar a “crítica da dúvida”8. Nos apresenta o seguinte:

a. Eu só posso duvidar da verdade de uma afirmação baseado em outras coisas – geralmente uma grande quantidade de outras coisas – as quais eu acredito serem verdades. Ou seja, sou capaz de duvidar somente por causa de coisas que acredito sem duvidar.

b. O método crítico destrói ele mesmo. A afirmação que todo dogma precisa ser questionado é por si só um dogma que deve ser questionado. Em que base o método se sustenta? O criticismo, como tudo que é humano, é culturalmente condicionado.

c. Aprendizado começa com um ato de fé. Fé no que os olhos vêem, no que os ouvidos ouvem, no que os professores nos ensinam, no que lemos nos livros. Depois torna-se necessário revisar e questionar o que primeiro aceitamos. Mas quando duvidamos, isso ocorre sempre por causa de outras coisas que aprendemos do mesmo modo, submetendo-nos a uma tradição. Acreditar, então, é sempre primário, enquanto que duvidar é secundário. A idéia de que a dúvida é mais honesta que a fé é um preconceito irracional.

Aqui deixamos que a crítica final seja feita por um professor de História da Filosofia quando expõe o pensamento de Descartes. Ele diz que “resta então à subjetividade uma espécie de estado nômade: percorrer todas as certezas estabelecidas pelo homem mas sem estabelecer-se, por sua vez, em nenhuma delas. Não há um ponto de apoio, não há um lugar de partida nem um objetivo a que se chegar. Esse percurso incessante caracteriza a supremacia da dúvida sobre a certeza”9. A fragmentação e a instabilidade são as conseqüências desse fundamento moderno.

Para lembrar:

* Uma crítica nunca vem de uma mente vazia. Sempre é baseada em outras crenças que a pessoa já possui.

* A necessidade de que algo seja racional para ser aceito é uma herança da modernidade.

* É um preconceito a idéia de que a dúvida é mais honesta do que a fé.
Cap. 3 – “Cada um na sua” (Individualismo)

a. A era do lenço de papel

Apesar do relativamente recente ressurgimento do misticismo, a maior parte desse século foi marcada pela secularização. Por secularização entende-se “o processo pelo qual, do centro para fora, sucessivos setores da sociedade e da cultura se libertaram da influência decisiva das idéias e instituições religiosas”1. Aceita-se então como plausível aquilo que é racional, de acordo com a razão moderna forjada pelo Iluminismo. Quaisquer conceitos, instituições e movimentos que possam ser classificados como religiosos são colocados à margem, sem importância fundamental.. Esse foi um processo que ocorreu ao longo do tempo.

Qual a importância de se definir a secularização como um processo e não como uma filosofia2? Uma filosofia possui suas fraquezas e também depende de convencimento intelectual, de um esforço aplicado para arrebanhar adeptos. A argumentação no nível das idéias atinge uma pequena minoria. Quando, ao contrário, ocorre um processo ao longo do tempo, uma sociedade é transformada, surgindo uma nova “estrutura de plausibilidade”. Esta é definida como sendo “o grupo ou comunidade que provê o apoio psicológico e social a uma crença”3. Fica mais fácil crer naquilo que minha família, meus amigos ou mesmo todo mundo crê. Por outro lado, “crer naquilo que não é crença de todos (como era o cristianismo na Idade Média) é ser ‘herético’, colocar-se fora dos limites da ‘estrutura plausível’ do mundo moderno”4. Assim, o modo de pensar secular, que exclui as religiões tradicionais (incluindo a fé cristã) da centralidade da vida, torna-se a estrutura reinante.

Uma das consequências da secularização tem a ver com a privatização. Por privatização entendemos “o processo pelo qual a modernização produz uma separação entre a esfera pública e a privada e se centra na esfera privada como área especial para a expressão da liberdade e da realização do indivíduo”5. Você pode ser religioso, sem dúvida, desde que limite isso à sua vida particular. Valores religiosos podem ser cultivados no âmbito individual, familiar e até mesmo dominicalmente em sua comunidade cristã. Porém esses referenciais não podem ultrapassar a área privada. Propor mudanças à sociedade a partir de uma cosmovisão cristã e apresentar às pessoas e instituições alternativas cristãs que apontam para um determinado procedimento e ação soa como arrogante e fora de propósito.

Essas inibições na esfera social limitam a fé cristã. A promessa de liberdade individual não se realiza. Você é livre, mas apenas na área privada. Isso não é liberdade. Pelo contrário, trata-se de um tipo de totalitarismo que limita. Apenas é levado em consideração aquilo que está de acordo com o pensamento racional moderno, ou seja, aquilo que é “plausível” com a mentalidade consolidada nos últimos 300 anos. Trata-se de outras premissas, uma outra cosmovisão, que te empurram à margem.

Vivemos nesse mundo onde a religião é reduzida à esfera individual, um mundo secularizado e pluralista. Isso nos leva a uma imagem utilizada por um autor para descrever o nosso tempo6. Ele pede que imaginemos uma pessoa que possua um lenço de seda herdado de seus antepassados. Essa pessoa tem orgulho do que possui. Ele é belo, não fazem mais como antigamente e, é claro, traz associações e sentimentos especiais de pertencer a uma família e uma tradição. Se ela o perde, com certeza isso a aborrece e provavelmente irá dispender um bom tempo procurando-o.

Aconteceria o mesmo se fosse um lenço de papel? Nessa situação, gastar tempo procurando-o, caso o perdesse, seria mesmo absurdo. Ora, o lenço de papel é descartável. É feito para ser jogado fora. “Compromisso e continuidade são inteiramente estranhos à noção de um lenço de papel”. A maior parte das pessoas modernas baseiam suas escolhas e decisões no modelo do lenço descartável. Chegamos a um estágio onde nos tornamos “viciados em escolha e mudança”. A fé cristã torna-se simplesmente mais uma opção no mundo dos valores. Assim, “fatos da vida dissolvem-se em modas do momento”. Compromisso, continuidade e convicção são substituídos por superficialidade, transitoriedade e consumo7.

Para lembrar:

* Com a secularização, qualquer idéia considerada religiosa passou a ter importância secundária.

* Considera-se, então, que a religião tem seu lugar apenas na esfera particular e pessoal de cada indivíduo.

* A fé cristã torna-se apenas mais uma opção. Além disso, descartável.

b. Misticismo de consumo.

O sagrado voltou! Ou talvez nunca tenha ido embora. O fato é que a razão entrou em crise nesse fim de século e de milênio. O subjetivo e o místico aparecem com força, mesmo na esfera científica, onde os guardiães da razão lutam contra os que advogam a supremacia da intuição8. Com o que se parece essa religiosidade e por que ela ressurge nesse momento?

Paul Freston relata algumas causas desse ressurgimento da religiosidade. Ele afirma que “o mundo criado pela secularização é muito exigente”. A coerência e fidelidade do ateísta à sua crença requer uma força de vontade demasiado grande. Também “a religião não desaparece porque o mundo secularizado, para muitos, carece de uma coisa fundamental: um sentido”. Além disso, no Brasil, temos “a presença da herança afro-ameríndia”9.

Outras possíveis causas têm a ver com o que a Ciência e o racionalismo não puderam evitar ou até mesmo provocaram em nosso século (além dos benefícios do avanço das técnicas e descobertas): duas terríveis guerras mundiais, armamentos nucleares, a poluição e degradação ambiental e o fracasso das promessas de igualdade e progresso para toda a humanidade10. Assim, “cristãos, membros de outras fés e secularistas, todos reconhecem que o conjunto inteiro da vida não pode ser incluído em uma interpretação materialista ou científica. O protesto contra o reducionismo é bem difundido”11.

Quando se examina de perto essa “nova” religiosidade percebe-se que ela obedece à uma lógica de mercado. Os novos religiosos, em sua maioria, consomem os objetos, as técnicas, as bençãos, as rezas, de acordo com seu interesse e conveniência. Não há o que podemos chamar de valorização da fidelidade à uma religião ou crença. Tudo vale, desde que eu possa tirar algum proveito. “O religioso alternativo brasileiro é também um andarilho… Nada mais coerente, portanto, que a inconstância e a volubilidade”12. Vivemos a era de Riobaldo Tatarana, personagem do Grande Sertão:Veredas:

“Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles…
Olhe: tem uma preta, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês – encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale.”13

Além da mentalidade consumista, ou talvez como uma conseqüência desta, a religiosidade passa a possuir um caráter relativista e sincrético. Como um produto para consumo, essa espiritualidade pós-moderna se torna instável, transitória, superficial e limitada à esfera privada14. Alguém pode achar interessante e proveitosa essa sede do sagrado em nosso tempo. Uma abertura assim facilitaria a proclamação da fé cristã. Porém, essa “vantagem” vem acompanhada de uma mudança de postura com relação à esfera religiosa. É preciso lembrar que “é verdade que a pós-modernidade é mais aberta às grandes narrativas religiosas do que foi a doutrina moderna, mas o preço de tal abertura demanda que essas grandes narrativas abandonem suas requisições de verdade única e transcendente”15.

A religião e o místico possuem, de fato, uma nova força e fôlego nesse fim de milênio. Mas talvez essa força não possua tanto fôlego e esse fôlego não tenha tanta força assim. Acontece isso devido à sua inserção no mundo, restrita à esfera privada, e ao relativismo e sincretismo, que pode descaracterizar por completo uma determinada religião, acabando por transformá-la em outra totalmente diferente. Vamos a um exemplo que um antropólogo relata: “talvez a maior conseqüência, para o cristianismo,…resida no fato de que começa a surgir um deslocamento da figura de Jesus Cristo, à medida que crescem as propostas de diálogo inter-religioso: o Cristo passa a ser entendido como um princípio divino (como a natureza búdica, o Ishwara) e Jesus como uma encarnação, um avatar, uma manifestação histórica da divindade, equivalente a Budha Shakya Muni, a Krishna, a Zoroastro, a Maomé, etc”16. Alguém pode pregar a integração religiosa e um ecumenismo sem restrições. Mas, ao fazer isso, desfigura e acaba com uma determinada fé, no caso, o cristianismo, retirando ou modificando seus conteúdos específicos e exclusivos, para criar uma nova salada cósmica mundial. Se alguém pode fazer isso? É óbvio que sim. Porém, que fique claro que o que está havendo é uma alteração nos conteúdos básicos de uma fé particular e exclusiva em nome da tolerância e de uma “religião universal” que julga poder abarcar e reunir todas as crenças em um único credo. Nesse novo tempo, parece não haver espaço para exclusividade e evangelização. Como fica, então, a missão que a Igreja de Cristo é chamada a realizar?

Para lembrar:

* A religião volta com força devido à crise da razão.

* O consumismo e a volubilidade são características dessa nova religiosidade.

* O relativismo e sincretismo descaracterizam qualquer crença que requer ser particular e exclusiva.
4 – Sobre a Missão

a. A redescoberta da persuasão

Parece que estamos chegando a uma encruzilhada no que diz respeito à proclamação da mensagem do cristianismo em nosso tempo. A fé cristã enfrenta os desafios colocados pelo pluralismo, que a transforma em apenas mais uma opção; pelo relativismo, que afirma que ela fala somente de valores e não de fatos; pelo racionalismo, que não aceita as suas declarações de fé que fogem ao domínio da razão; pelo individualismo, que limita a religiosidade à esfera estritamente pessoal e pelo novo misticismo, que transforma o seu conteúdo em algo que possa ser consumível e mais universalmente aceito, mesmo que deturpado.

A mensagem cristã corre o risco de sucumbir e se conformar com este mundo e com o espírito desse século. Pode querer se defender usando as próprias ferramentas e mentalidade dessa época, procurando apresentar Jesus como um produto, com estratégias de “marketing” voltadas para a satisfação total do consumidor. Assumir a lógica do mercado, apresentar a Cristo como a “a melhor opção”, aquela que garante a solução de todos os problemas. Basta experimentar e, se não gostar, pode devolver a “mercadoria” em até 15 dias e terá seu dinheiro de volta. Dinheiro, aliás, é o que não faltará, bençãos de todo o tipo irão rechear sua vida se fizer como repete insistentemente o refrão de certa música, “venha pra Jesus e tudo vai dar certo”. Todos concordamos que Jesus de fato é a solução. Mas, essa ênfase apenas nas “bençãos”, nos benefícios, em tudo que se recebe e se alcança para si mesmo é um sintoma da mentalidade mercadológica influenciando e deturpando a mensagem. Deturpa porque elimina ou reduz ao mínimo elementos centrais da proclamação do evangelho, como o convite à fé e ao arrependimento, a necessidade de renúncia, mudança de vida, compromisso e sacrifício. Como essa parte da mensagem não atrai muito as pessoas e a concorrência é grande ela é “esquecida” e relegada a um segundo plano.

Por outro lado, a Igreja cristã, com medo da incerteza e da relatividade dos valores de um mundo pluralista, pode também querer agir em outra direção. Voltar à era pré-moderna, da imposição daquilo que crê ser verdade e da intolerância e perseguição aos diferentes. Querer, através do poder do Estado e da Lei, disseminar e instaurar sua fé e seu credo. “Se chegarmos ao poder, se tivermos os meios certos(o Estado, as leis do país, a mídia, os recursos) em nossos mãos, a nossa nação e o mundo serão do Senhor Jesus”, é o que pregam. Para o bem de todos, é claro. Porém, ao fazer isso discriminam, desrespeitam, usam recursos não tão lícitos assim e impõem aquilo que deveria ser aceito e vivido pela fé. Como, então, deve ser a missão da Igreja, no que diz respeito à proclamação de sua fé?

Talvez seja um terceiro caminho, que passa pela redescoberta da persuasão. Michael Green, expondo como era a pregação cristã no Novo Testamento, disse:

“Estavam preparados para o debate, podiam sustentar sua posição tanto em campo neutro como hostil. Davam testemunho, referiam- se constantemente aos fatos do Evangelho e ao ensino do Velho Testamento (palavras como sunzetein e sumbibazein indicam essa séria procura das Escrituras). Algumas vezes isso levava um dia, ou mesmo uma semana. Algumas vezes voltavam a atacar seguidamente. Mas, do conteúdo intelectual da proclamação dos primeiros dias, não pode haver nenhuma dúvida. Sem essa apologética, não teriam ido a parte alguma… …a verdade é tão simples que uma criança pode entender e, ao mesmo tempo, é tão profunda que nenhum intelectual jamais seria capaz de vasculhar suas profundezas. É, verdade, naturalmente, que nenhum raciocínio, por mais esclarecedor que seja, fará quem quer que seja entrar no Reino de Deus. Fato é que muitas pessoas jamais encararão o desafio pessoal de Cristo sobre suas vidas enquanto: (1) não virem uma apresentação intelectual aceitável para que possam crer e, (2) não tiverem suas rotas de fuga intelectual destruídas por uma apologética cristã paciente, eficaz e persuasiva.”1

Verbos como “dialogar”, “pregar”, “explicar”, “discutir”, “arrazoar” e “procurar convencer” são freqüentes na narrativa da expansão da fé cristã no Novo Testamento. Obviamente não é simplesmente pelo raciocínio e pelo convencimento intelectual que as pessoas chegam à fé e ao arrependimento. Somente o Espírito de Deus é quem traz convencimento “do pecado, da justiça e do juízo”2. Ao mesmo tempo, os instrumentos para a pregação e expansão do Reino de Deus são aqueles que Jesus incumbiu, os seus discípulos3. E a redescoberta da persuasão apenas nos mostra algo sobre como deve ser essa evangelização. Combater a idéia largamente difundida de que “religião, futebol e política não se discutem”. Reaprender a conversar sobre os valores e os fatos que nossas crenças reivindicam. Ser humilde para ouvir e respeitar a tradição de cada pessoa. Do mesmo modo ser honesto em comunicar aquilo que creio ser verdade. E por falar em verdade…

Para lembrar:

* O cristianismo pode sucumbir a uma estratégia de mercado e assim deturpar o conteúdo de sua fé.

* Também pode voltar à era pré-moderna e querer, pela intolerância e perseguição, impor sua fé.

* Mas pode também redescobrir a importância do diálogo respeitoso e da persuasão.
b. Verdade, exclusividade e tolerância

Uma nova linguagem, que procura falar além das toscas categorias do bem e do mal, da verdade e da mentira, domina o nosso tempo. Já citei o caso de uma colega da universidade que, ao ser agredida, dizia que não era certo o que fizeram com ela, “se bem que não existe esse negócio de certo e errado”! É bom lembrar que há aqueles que se consideram “donos absolutos da verdade”, demonstrando em suas atitudes muito de preconceito, superioridade e arrogância. Por isso, é natural a reação de quem proclama não haver absolutos em nenhuma esfera da vida. Esses defendem que não há algo a ser chamado de bom, normal ou verdadeiro. Entram em contradição ou em crise quando advogam certos valores morais (rejeitam a violência, o estupro, a discriminação, a injustiça social). Isso nos leva ao ponto em que mesmo que tenhamos que rejeitar a intolerância do domínio absoluto de uma verdade, reconhecemos que, se ela existe, deve ser buscada e admirada. Chegamos no momento de admitir que “a verdadeira abertura acompanha o desejo de saber, ou seja, tem a consciência da ignorância. Negar a possibilidade de conhecer o bem e o mal corresponde a suprimir a verdadeira abertura”4. Devo ser aberto às opções, inclusive àquela que afirma haver um propósito para a humanidade revelado pelo Deus Criador na narrativa bíblica, culminando com os eventos relacionados à pessoa e obra de Jesus Cristo.

Os cristãos não podem se considerar simplesmente os “donos da verdade”. Não podem afirmar que tudo o que provêm de outras fontes além da tradição cristã é falso e demoníaco. Precisamos aprender a viver sob a tensão de um mundo pluralista, examinando e respeitando as tradições religiosas e não-religiosas do mundo inteiro. Ao mesmo tempo, devemos resgatar a necessidade de que sejamos todos, cristãos e não-cristãos, “perseguidores da verdade”. Quanto à verdade, não a detenho de modo absoluto e fechado, mas, se ela existe, deve ser buscada e considerada5. Nessa postura se encaixa a importância da evangelização, da persuasão. Também a necessidade de enfatizar a singularidade e exclusividade do cristianismo. Nesse sentido, as observações de Paul Freston irão nos ajudar:

“A historicidade da religião bíblica está intimamente relacionada com a sua exclusividade…
O centro do Evangelho não são conceitos abstratos e verdades eternas que independem de qualquer acontecimento. São fatos históricos – ou aconteceram, ou não. Se não, o cristianismo não é verdadeiro. Mas se aconteceram de fato, então ocorreram num determinado tempo e determinado lugar (e não em qualquer outro), dentro de uma determinada tradição religiosa (e não de qualquer outra), na história de um determinado povo (e não de qualquer outro), e foram narrados num determinado livro sagrado (e não em qualquer outro)…
Daí a singularidade do cristianismo. Deus estava em Cristo, reconciliando o mundo consigo, e ele fez essa obra de reconciliação somente lá, e não em qualquer outro lugar e pessoa. Daí o exclusivismo. Daí a singularidade da Bíblia. Não que outras religiões não tenham ideais nobres e verdades morais e algumas percepções corretas a respeito de Deus. Mas a historicidade implica em limitação de tempo e espaço, em singularidade. O cristianismo que se esqueceu de sua singularidade perdeu a sua razão de ser”.6

Mas se eu afirmar a exclusividade e singularidade de uma fé não haverá intolerância e desrespeito com relação a outras? Creio que essas duas palavras-chave, tolerância e respeito estão sendo mal compreendidas. É muito importante enfatizar que qualquer fé, de qualquer pessoa, precisa ser respeitada e tolerada, desde que não faça mal às pessoas e à sociedade, por exemplo, sacrificando vidas humanas em seus rituais (se bem que há uma boa dose de dúvida, nos dias de hoje, sobre o que deve ou não ser tolerado). A tolerância é um valor estimado, e deve ser assim. Mesmo os cristãos, que crêem num Deus que criou o ser humano com liberdade para seguir qualquer caminho, devem assim tolerar aqueles que decidem tomar caminhos diferentes do seu próprio. Ainda assim, a tolerância não deve ser levada a um extremo em que não se tolera mais qualquer religião que faz afirmações singulares e exclusivistas. Essas afirmações, como “eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim”7, e “não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”8, devem ser examinadas honestamente por todas as pessoas. Não se pode proibir ou coibir sua pregação em nome da tolerância. Isso é confundir as coisas. É possível respeitar a crença do outro e ao mesmo tempo ser coerente com as verdades em que eu acredito, comunicando-as e expôndo-as à análise e possível aceitação da pessoas. Se não aceitarem o que eu digo, continuo amando-as e defendendo seus direitos de pensarem de modo diferente. Mas devo assegurar meu direito de compartilhar o que creio com elas e de procurar convencê-las a respeito das verdades da fé cristã.

Para lembrar:

* A verdade é algo a ser buscado e almejado.

* A fé cristã é singular e exclusiva.

* Devo tolerar outras crenças, ao mesmo tempo em que compartilho aquilo que creio ser verdade.
c. “Rumo ao noroeste”

Nós falamos sobre o perigo de esvaziar o conteúdo da fé cristã, conformando-a ao nosso século. Nesse sentido, ou talvez um pouco mais além, há o risco de conformar a apresentação do Evangelho aos pressupostos do nosso tempo. Por exemplo, quando eu procuro basear minha pregação somente na racionalidade da fé, nas evidências históricas e nas “provas” da existência de Deus. Posso atrair a atenção de muitos intelectuais, deleitar-me em discussões profundas, usar sofismas e raciocínios complexos, mas também posso cair em uma armadilha. E essa consiste na necessidade de apresentar cada vez mais dados, provas e evidências, numa “necessidade” absurda que me leva a desvalorizar a fé. Afinal de contas, “é impossível deixar de acreditar em Deus; não é um passo de fé que você precisa tomar, e sim reconhecer que foi convencido intelectualmente”! É claro que não posso deixar de lado o intelecto, nossa mente criada por Deus. Quando se dá um passo de fé, esse deve ser feito como naquela velha estória do alpinista preso numa montanha nevada. Um guia, em algum lugar atrás da neblina grita para que ele pule. Assim, cairá numa plataforma mais abaixo de onde terá oportunidade de deixar a montanha antes que morra congelado. Ele tenta ver essa plataforma abaixo de si, mas a névoa densa não permite. Será um passo de fé pular no vazio, acreditando que assim salvará sua vida. Mas não será um passo cego, pois há uma revelação, uma orientação de alguém que alegadamente possui autoridade para lhe dizer o que fazer. Aqui as pistas e as evidências caminham de mãos dadas com a fé.

Não se pode, então, ir em direção ao outro extremo. Esse seria aquele em que você resume toda a apresentação do Evangelho a comentários subjetivos, como “Jesus me dá muita paz”, “é bom viver com Jesus no coração”, “minha vida não é mais a mesma depois que ele me transformou”. Isso é importante, bonito e comove. Mas talvez não provoque mais do que isso, comoção. Quando um chamado à fé é feito apenas em argumentos pessoais, é um convite a que a pessoa duvide da universalidade da sua eficácia e transformação, talvez respondendo assim: “acho legal o que aconteceu com você, é algo que admiro e que me emociona, mas é apenas a sua experiência e eu preciso ter a minha própria, do meu jeito e do meu modo”. Ainda que o testemunho pessoal seja importante, ele sozinho não basta. Quando não há uma apresentação objetiva da fé cristã, a pessoa pode se converter, mas estará se convertendo a quê? Como René Padilla já disse, uma evangelização fajuta conduz a uma conversão fajuta.

Conciliar os elementos objetivos e subjetivos da fé cristã e apresentá-los com clareza e honestidade é um desafio. Devemos evitar a polarização entre a objetividade e a subjetividade. Essa discussão está criando um abismo de separação e incompreensão no mundo acadêmico e científico hoje. O cristianismo não pode se aliar a um desses extremos. A história já mostrou consequências por demais negativas quando a Cristandade se aliou e se confundiu com sistemas filosóficos de certas épocas e contextos. Não se deve construir outra base que não seja a revelação de Deus nas Escrituras culminando com os eventos a respeito de Jesus Cristo. A historicidade do cristianismo(objetiva) deve ser proclamada juntamente com um chamado ao compromisso pessoal(subjetivo), ao arrependimento e à fé.

Juan Mackay fez uma preciosa distinção entre duas atitudes: a do observador e a do peregrino9. O observador, de sua sacada, de sua poltrona, observa o mundo passar. Tem sede de conhecimento, porém um conhecimento que não produz efeito concreto em sua vida, daquele tipo que pode conhecer coisas a respeito de Deus sem conhecer de fato a Deus. Acomodado e temeroso dos compromissos fortes e das decisões radicais, procura “colocar-se acima de todos os pontos de vista parciais, e não descer jamais de sua torre de marfim para comprometer-se irreparavelmente com qualquer verdade, causa ou lema dos homens”. O peregrino é diferente. Sabe que é no caminho que se pode conhecer a Deus. Sabe que a vida cristã é uma vida de relações e decisões pessoais. Tem sede da verdade, mas não só isso. Quer persegui-la e se comprometer com ela. Quer mudar a sua vida, busca sentido e propósito. Sabe que apenas com entrega e adesão pode experimentar a vida nova que as Escrituras lhe prometem. Tem fé e assume o risco.

Longa obediência num mesmo caminho, eis uma boa definição de perseverança. Persistência que precisamos possuir se queremos enfrentar os desafios que o tempo presente nos impõe. Perseverança e persistência porque as respostas não são fáceis e diretas. Há névoa e empecilhos no meio do caminho. Mas a virtude de prosseguir, reputando como de maior valor a fidelidade que o “sucesso”, nos levará a experimentar gozo na chegada, assim como em meio do caminho. Essas qualidades enriquecerão então o nosso currículo de vida, assim como enriqueceu o do explorador Henry Hudson10. Que elas nos inspirem em nossa grande caminhada que temos pela frente:

“Toda a sua vida Hudson havia ambicionado encontrar um estreito na região setentrional da América, que uniria os oceanos Atlântico e Pacífico. O casco de seu navio sulcava as águas da baía que leva seu nome, quando os marinheiros se amotinaram e, abandonando em seu pequeno bote a Hudson, ao filhinho deste e a um velho piloto, John King, que seguia fiel ao seu capitão, voltaram a proa em direção ao porto de saída. Achando-se assim, em situação desesperada, abandonado e sem recursos, em meio da penúria, Hudson não se entregou; mas dirigindo-se a King, que manejava o leme, lhe disse…
‘Rumo ao noroeste, manteremos a honra de um propósito constante, em meio dos perigos de caminhos desconhecidos, rumo ao noroeste, deixando a Deus a nossa sorte’.”

Notas

Cap. 1 – Viva as opções (Pluralismo e Relativismo)

1 – Lesslie Newbigin, The Gospel in a Pluralist Society, Michigan, Grand Rapids, 1989, p.1.
2 – Os Guiness, The Gravedigger File, Downers Grove, IVP, 1983, p. 93
3 – Ver L. Newbigin, Op. cit., cap. 1 e 3.
4 – O próprio conceito de moral e as noções do que é certo e do que é errado em cada cultura indicam o que é da natureza ou da essência do homem, que é estabelecer limites, regras e juízos de valor. As diferenças nesses conceitos entre uma cultura e outra e dentro de uma mesma cultura ao longo do tempo não indicam necessariamente que não haja valores universalmente válidos. Apenas mostra a dinâmica da construção e evolução desses valores em cada cultura.
5 – Segundo Allan Bloom, O Declínio da Cultura Ocidental, São Paulo, Best Seller, 1989, pg.48, “as diferenças de opinião parecem mais levantar a questão quanto ao que é verdadeiro ou correto do que eliminá-la. A reação natural consiste em tentar resolver a diferença, examinando as reivindicações e as razões de cada opinião”.
6 – L. Newbigin, Op. Cit., pp. 14 e ss.
7 – Rubem Alves, O Poeta, O Guerreiro, O Profeta, Petrópolis, Vozes, 1991, pp. 27-31.
8 – L. Newbigin, Op. Cit., pp. 7-15.
9 – L. Newbigin, Truth to Tell, Michigan, Grand Rapids, 1991, p. 51.
10 – Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 25.

Cap. 2 – Nossas origens modernas (Racionalismo)

1 – Franklin Leopoldo e Silva, Descartes, A Metafísica da Modernidade, São Paulo, Moderna, 1993, p.19.
2 – “A contestação do geocentrismo inaugura uma crise na concepção da posição do homem no universo, pois o retira de sua posição central e o torna um ser relativo, entre muitos outros”, F. Leopoldo e Silva, Op. Cit., p. 23.
3 – J. Gaarder, Op. Cit., p. 218.
4 – F. Leopoldo e Silva, Op. Cit., pp.32-44.
5 – Jacques Ellul, A Palavra Humilhada

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