Ele tocou a flauta e nós não dançamos (*)

Autor: Zwinglio M. Dias
(Mateus 11, 16-17)
(Notas para a formulação de um novo paradigma missionário)

“O que o homem é Cristo quis ser, para que o homem pudesse ser, o que Cristo é.” (S. Cipriano)
“O Cristianismo foi o que Jesus condenou.” (F. Nietzsche)

“Jesus nos ensinou que amar a Deus é amar os outros, todos os outros. Este amor é dom, abandono, sacrifício, despojamento..” (R. Garaudy)

“Amor, palavra que funda e que consome os seres.(…)” (M. Mendes)

Introdução

Na reflexão que segue procuraremos discutir o significado da missão cristã nestes tempos profundamente marcados por experiências religiosas as mais diversas, porém, pouco afeitos às demandas da perspectiva evangélica proclamada por Jesus.

Vivemos um momento histórico caracterizado muito mais por falências de toda ordem do que por realizações inovadoras e transformadoras da condição humana, naquilo que ela tem de mais criativo e digno. A desaforada expansão do neocapitalismo, acentuando de forma dramática o quadro de desigualdade social e econômica em que se encontra a população do planeta, mantêm e aprofunda a miséria e a fome de mais de dois terços da população mundial, tornando cada dia mais monumental a diferença entre aqueles que possuem e os que nada possuem. Como assinalam alguns indicadores socio-econômicos vinte por cento da população são 60 vezes mais ricos que os vinte por cento mais pobres. Acrescente-se ainda que apenas 400 multimilionários concentram maior riqueza que metade da população mundial! Os resultados desta injusta e desproporcional correlação podem ser vistos nos cerca de 54 conflitos bélicos que transformam em inferno a vida de milhões de pessoas por toda a parte no planeta O poderio militar, industrial e financeiro de uma única nação, com o apoio de meia dúzia de aliados, sob o pretexto de reger as relações entre os povos, em nome da justiça, da democracia e do bem para todos (discurso oficial), espalha o terror por toda a parte, mantendo a ferro e fogo seus interesses, desorganizando as economias, deturpando culturas milenares e impondo formas de conduta e perspectivas para a vida (a título de valores universais) que só servem para comprovar a tese de Plauto tão repetida por Hobbes: “homo homini lupus!”

Já se tornou moeda corrente a convicção de que a Modernidade já era… O irônico e sarcástico “approach” de Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos” já pode ser considerado, pelo menos para as gerações pós-68, como peça de museu. Vivemos na pós-Modernidade, uma expressão ambígua, sujeita às mais diferentes e contraditórias
definições.(1) Não é o caso, para os fins desta reflexão, entrar pelos meandros dessa interminável discussão. Basta-nos aqui, constatar que a mera expressão “pós-moderno”
já indica que os pressupostos epistemológicos e científico-metodológicos que caracterizaram, até aqui, “Modernidade”, parecem ter chegado ao ponto máximo de saturação e esgotamento e que , por isso, o começo de um novo período histórico já se avizinha no horizonte da experiência humana. A história nos ensina que toda mudança de paradigma só acontece depois de um período mais ou menos longo de transição caótica. Assim aconteceu quando da passagem do Mundo Antigo para a Idade Média, que foi mediada por um período de caos social, econômico , político e cultural que ficou conhecido como a Idade das Trevas. A desintegração da Idade Média, por sua vez, não deu início, de imediato, à Modernidade. Mais de dois séculos, incluindo a guerra dos 30 anos, foram necessários para a gestação da revolução industrial e do movimento do Iluminismo que consolidarão os parâmetros básicos do que veio a denominar-se Era Moderna. Assim, para acalmar nossas ansiedades e temores com relação às contradições e inseguranças com que temos de viver, atualmente, basta-nos, em princípio, compreender os tempos atuais como um período transicional, um tempo de passagem para um novo momento histórico que ainda não sabemos bem que caráter terá.

Trata-se, no entanto de um período de crises, de angústias e sofrimentos em função da incerteza do futuro. Ao mesmo tempo, porém, somos capazes de identificar tendências e linhas de força que, ainda que em tensão permanente, nos ajudam a perceber os rumos por onde caminhamos, na elaboração de novos paradigmas para o futuro. Já com certa desenvoltura falamos em economia global e vemos o mundo como uma “aldeia global”. Cada vez mais aumenta o número daqueles que “vivem em redes”, que se relacionam com mais facilidade com seus amigos(as) virtuais do que com seus parentes ou vizinhos fisicamente próximos. Caminhamos para a constituição de uma cultura transnacionalizada graças aos milagres da cibernética, da “mídia”, do marketing e sobre as bases de uma sociedade de consumo altamente sofisticada. Com isso as culturas locais e nacionais estão em crise, pois tem de enfrentar o Leviatã mercadológico do mundo ocidental em condições adversas de inferioridade material, embora continuem resistindo bravamente.

O que significa falar de missão cristã num contexto complexo e diverso como este? Será que a sedutora provocação sofrida pelas igrejas e movimentos religiosos por parte das novas tecnologias de comunicação, instrumentalizadas segundo as leis do mercado
capitalista, a que muitas tem se submetido, muitas vezes, acriticamente, não se torna em mais um fator de distração de seus compromissos evangélicos ? Na medida em que os

símbolos religiosos são pervertidos, transformando-se em produtos de consumo à disposição de todos, que sentido tem e que tarefas são exigidas dos seguidores da contra-cultura inaugurada por Jesus?.

Missão: dando notícias do Reino…

Ao olharmos para a história da igreja percebemos que, desde seus primeiros tempos, se fala e se escreve sobre sua natureza e missão. A comunidade cristã, começando com os discípulos, tem vivido num processo permanente de reconstrução de sua auto-compreensão e do sentido e significado de sua presença no meio da história humana, em função da tarefa que lhe foi designada quando do gesto do envio dos discípulos por parte do Jesus ressuscitado, ou seja, o testemunho vivo do Deus vivo. Este o leitmotiv, a razão precípua de sua existência.

Nesta observação da história dos povos, particularmente no Ocidente, percebemos que nos diferentes momentos de crise, de transformações profundas e revoluções de todo tipo que se foram sucedendo no transcorrer da aventura humana, as comunidades cristãs, nas concreções históricas em que se foram, sucessivamente, se transformando, se viram obrigadas a repensar e reformular seus modelos de presença e atuação nas diferentes sociedades e culturas onde aconteciam. Isto porque, desde os seus inícios, estas comunidades se viram envolvidas numa polêmica decisiva acerca de Jesus. De um lado, aqueles que o inscreviam na linhagem tradicional dos deuses imperiais, poderosos, exteriores às realidades humanas e mais afeitos às glórias do poder, dirigindo os destinos dos humanos e legitimando as dominações na terra e, de outro, os que, rompendo com uma certa interpretação da teologia messiânica do Antigo Testamento, o viam como alguém que anunciava a manifestação de um Reino outro, caracterizado pela presença permanente de Deus entre suas criaturas como a expressão mais íntima da vida de cada um. Para esses cristãos Jesus se constituiu no sinal maior de ruptura com tudo aquilo que denota os limites da experiência humana, especialmente sua auto-afirmação. Sua vida e mensagem se caracterizaram por ser um convite ao abandono das pretensões pessoais e à entrega total às exigências desse Reino. Como assinalou R. Garaudy “O Reino já está onde o homem realiza esse despojamento total. Se ele “ainda não” está, é porque essa relação com o mundo não foi percebida por todos. Esta tensão entre o “já aí” do despertar pessoal para a vida do todo e o “ainda não” do alerta a todos da vida do todo, é a tragédia otimista do alerta, (acerca do Reino que é chegado) pois cada um de nós é responsável pelo despertar de todos.” (2)

Este processo de revisão permanente de seu devir histórico, em função da razão de sua existência, antevisto e formulado pelos Reformadores do século XVI (ecclesia reformata et semper reformanda), tem sido fonte, desde as páginas do Novo testamento, de não poucos conflitos no interior das estruturas eclesiásticas. Pois, como expressou com precisão Rudolf Weth “ a comunidade cristã se constitui numa minoria exemplar e crítica que tem a função de fermento para a utopia universal do Reino de Deus e não está interessada em aumentar o seu poder, mas em preparar os filhos para o Reino. “ (3)

Se a missão é parte constitutiva essencial da comunidade cristã, ou o coração da Igreja, como a descreve Eberhard Jüngel, ou seja, sua razão de ser e existir, ela não é, entretanto, algo que lhe pertença e que dela dependa de forma exclusiva. O Novo Testamento quando se refere a missão dos seguidores de Jesus se refere, basicamente, à ação do Pai em meio a sua criação para dar forma e preservar a vida que se originou de sua criação amorosa. É Deus, “a quem pertencemos, existimos e nos movemos” (At 17,28) quem está desde sempre em missão, através de seu Espírito. O Novo Testamento nos alerta, então, para a missio Dei na qual a comunidade dos discípulos de Jesus está sempre sendo chamada a se insertar. Recordando uma expressão de S. Irineu, José Comblin escreve que “o Pai age pelas suas duas mãos: o Verbo e o Espírito Santo. As duas mãos são iguais em força e valor. As duas mãos agem em conjunto. Não são idênticas. Cada uma produz uma operação diferente, mas ambas se complementam, e delas procede um resultado final.”(4)

Importa assinalar, no entanto, que a missio Dei não transcorre no vazio e nem está limitada às fronteiras da comunidade cristã. Da perspectiva dos Evangelhos a missio Dei acontece no interior da missio humanitatis, a missão da humanidade, como pontúa o missiólogo indiano M. Thomas Thangaraj. Porque somos todos auto-conscientes, historicamente marcados e ecologicamente interdependentes, afirma este autor, temos uma tarefa comum de sustentação e promoção da vida. A missio humanitatis a que todos os humanos são chamados a partilhar consiste “num ato de assumir responsavelmente (a vida) de maneira solidária e com um espírito de mutualidade” (5)

Ora, se a sustentação e promoção da vida é uma tarefa que repousa sobre a responsabilidade de todos os humanos (ainda que nem sempre entendida e realizada por todos) isto quer dizer que não cabe aos seguidores de Jesus nenhuma pretensão de hegemonia e, muito menos, de imposição da sua perspectiva no esforço comum de percepção e construção da vida. Mas, é óbvio, que para a visão cristã, a missio humanitatis se torna qualificada e plenificada pela missio Dei conforme esta se manifestou na vida e na obra de Jesus. Esta afirmação da especificidade da comunidade cristã resguarda os seguidores de Jesus do relativismo empobrecedor e do ecletismo desmobilizador, abrindo-a à experiência da diversidade e à riqueza inesgotável das múltiplas manifestações de Deus vivenciadas pelos humanos em suas diferentes expressões culturais. Ao mesmo tempo preserva a comunidade cristã da petulância triunfalista, da auto-suficiência, muitas vezes etnocêntrica e universalista, que termina por negar a transcendência. Como escreveu Karl Barth, “ tudo que digo de Deus, é um homem que diz”. É neste sentido que, no Novo Testamento, Mateus e Marcos se referem à continuidade do Discipulado ao registrarem o Envio dos discípulos, por parte do Ressuscitado, como testemunhas da Boa Notícia (Mt 28, 18-20; Mc 16, 15-18). Ou seja , a comunidade dos seguidores de Jesus é chamada à existência, pela inflexão do Espírito Santo, para co-missionar com Deus no mundo. A Evangelização, isto é, a proclamação que dá testemunho da Boa Notícia, não é mais que dar continuação ao trabalho missionário de Deus, a revelação de sua intimidade com suas criaturas, fato que teve sua culminação na vida de Jesus, proclamando um Reino ao qual se tem acesso não pela conquista mas pela privação da posse. É desse homem perfeito, porque foi homem até o fim, que seus seguidores receberam o poder inspirador de seu Espírito e a tarefa que justificam sua existência comunitária no mundo. Como muito bem o expressou o Bispo Leslie Newbigin:”… o privilégio da vida cristã não pode ser visto separado de suas responsabilidades. O mesmo Cristo que disse ‘venham a mim todos vocês que estão cansados de carregar suas pesadas cargas e eu lhes darei descanso’ (Mt 11,28) também disse àqueles mesmos discípulos “assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês’ (Jo 20,21) e lhes mostrou as marcas de suas batalhas contra os governantes deste mundo.” (6) Donde se pode concluir que realizar a missão de Deus no mundo, pelo influxo do Espírito de Jesus, significa para a comunidade cristã, a ecclesia, aperfeiçoar continuamente sua relação com Deus, a fonte inesgotável da vida. O compromisso missionário, portanto, implica a busca de Deus no outro diferente de nós e a quem garantimos o direito de ser e permanecer o diferente que ele/ela é. Pois Deus, por ser a expressão daquilo que transcende a nossa experiência limitada e parcial não é apenas o Deus de nossa tradição cultural. Ele é o Deus da história, a alma de todos os esforços dos humanos, em todo o tempo, para descobrir e realizar o sentido de suas vidas. Reduzi-lo às dimensões de nossa cultura, de nossa maneira de concebê-lo, é o início da idolatria que Jesus combateu .

A morte lenta do modelo missionário de mão-única…

O movimento missionário, de raiz protestante, que se desenvolveu a partir do século XVII e alcançou sua culminação expansionista nos séculos XIX e XX, foi responsável pela difusão destas formas eclesiológicas do Cristianismo por quase todo o mundo. Marcadamente caracterizado por uma postura etnocêntrica, também partilhada pelo Catolicismo, que identificava as realizações da cultura ocidental com o Cristianismo, o movimento missionário, ao ser articulado no interior do mundo norte-europeu e norte-americano, tornou-se caudatário do projeto histórico que esta região do mundo se propunha a desenvolver: a consolidação do mundo burguês capitalista. Como exemplarmente descreveu Miguez Bonino, este projeto histórico “ é totalizador, uma vontade de ocupação da oikoumene; mais ainda, de unificação da terra dos homens numa só oikoumene, unificada pela economia e penetrada pela democracia e a cultura ocidentais. Seu primeiro instrumento é a conquista e a colonização.” (…) “… a terra se torna humana, se torna oikoumene, quando o homem ocidental a habita e dela se apossa. As igrejas cristãs seguem aqui a lógica da igreja primitiva. Como os horizontes se estenderam a geografia, a história e a missão devem de novo encontrar-se. O grande movimento missionário que culmina no século XIX é a epopéia que realiza esta intenção. Seguindo maiormente a linha da expansão colonial, as igrejas se ‘estendem’ aos territórios anexados à oikoumene pelas diversas nações.”(7)

A teologia que vai dar forma e conteúdo ao empuxe missionário, no contexto da expansão capitalista do mundo do Atlântico-norte, tem suas raízes nos movimentos evangelicais reavivalistas que começam a acontecer tanto na Inglaterra como nas colônias inglesas da América do Norte. Um primeiro grande despertar religioso, que vai durar cerca de 50 anos, se inicia entre os imigrantes reformados de origem holandesa em 1726. Este movimento atravessa as fronteiras denominacionais e vai notabilizar algumas figuras em seus respectivos grupos eclesiásticos, como o congregacional Jonathan Edwards, os anglicanos Georg Whitefield, Charles e John Wesley e os presbiterianos Gilbert Tennent e Samuel Davies, dentre muitos outros. A religiosidade característica desse despertar espiritual estava relacionada com as difíceis condições de sobrevivência enfrentadas tanto pela maioria pobre e oprimida na Inglaterra, como pelos imigrantes europeus que buscavam, nas colônias da América do Norte, escapar da miséria e das atrocidades das ‘guerras de religião’ a que estavam condenados no velho continente. A ocupação de um território imenso, o choque com as populações nativas, o contínuo deslocamento de milhares de imigrantes que não cessavam de chegar mais a ausência das instituições religiosas já consolidadas, que não tinham condições, ou não sabiam como enfrentar essa nova situação – e que por isso ficaram de fora desse grande processo de ajustamento/refazimento das igrejas livres vindas da Inglaterra e outros países do norte europeu no bojo da imigração ou, então, nascidas já na nova sociedade em formação – deram origem a um novo campo religioso multifacetado e complexo. Com isso, o antigo modelo de vivência religiosa foi sendo, pouco a pouco, substituído por novas formas de apreensão e experiência do Sagrado, na medida em que a religião passou a ser o eixo estruturador e a fonte de sentido para a massa anômica de imigrantes no interior de uma sociedade em processo de formação.

Este primeiro grande despertar religioso teve, por um lado, como ênfase teológica central, a afirmação da necessidade de uma experiência direta com o Sagrado, por meio da exacerbação das experiências místico-emocionais, e, por outro, a rejeição da religiosidade formal e doutrinária das igrejas estabelecidas.. Esta experiência de transformação pessoal foi entendida, em termos do biblicismo reinante, como conversão, e levou a atitudes radicais de revolta e rejeição do institucionalismo eclesiástico amparado no poder civil.

Mas foi o segundo grande reavivamento, ocorrido já no século XIX que deitou as bases para o desenvolvimento do movimento missionário moderno, do qual o protestantismo latino-americano é uma conseqüência direta. Á semelhança do Pietismo, –um movimento similar que se desenvolveu a partir do século XVII no interior do luteranismo na Europa continental, em reação ao formalismo e ao intelectualismo das igrejas estatais, dando ênfase ao estudo bíblico e à experiência religiosa pessoal – o Evangelicalismo vai se caracterizar pela forte ênfase na conversão individual como a marca do verdadeiro Cristianismo. Os estudiosos desse movimento são acordes em destacar que a conversão pessoal se constitui na principal e definidora característica do evangelicalismo, sendo as outras o biblicismo acrítico, o anti-intelectualismo e o compromisso com evangelismo (proselitismo).

Foi esta concepção de uma religião introspectiva e individualista que tomou as rédeas do movimento missionário moderno. A conversão, que originalmente era considerada um fenômeno intra-eclesiástico, instrumento de manutenção e renovação da fé dos fiéis, e, portanto, a principal ênfase pastoral do movimento reavivalista, foi extrapolada para o contexto inter-religioso tornando-se o motor principal do movimento missionário. Para William Carey, missionário batista, pioneiro das missões inglesas na India, e considerado o “pai do movimento missionário moderno,” o objetivo da missão é a “conversão dos pagãos”! Esta ideologia missionária reduziu as relações dos humanos com a transcendência às formas religiosas desenvolvidas no Ocidente, que, então, passaram ser consideradas as únicas verdadeiras e necessárias para a plena realização da vida. A concepção de Igreja seguiu na mesma trilha, identificando de maneira absoluta as estruturas eclesiásticas de origem protestante ( as chamadas ‘igrejas evangélicas’) com o modelo ideal extraído das várias experiências relatadas no Novo testamento.

No que se refere à América Latina vamos encontrar a aplicação direta desse modelo sem nenhum tipo de mediação. O Catolicismo vai ser identificado com o paganismo e tratado como tal. As divergências havidas entre as sociedades missionárias das diferentes igrejas do espectro protestante, apenas reforçaram a continuidade da implementação desse modelo. Tais divergências vão surgir, especialmente, entre as sociedades missionárias européias que, para o final do século XIX, já começavam a dar-se conta que o modelo de missão, até então proposto, não era de todo teologicamente convincente, iniciando-se, então, um processo de discussão de seus fundamentos, que vai culminar na Conferência Missionária de Edimburgo, em l910, considerada como o ponto de partida do movimento ecumênico . Para esta conferência os missionários atuantes na América Latina não foram convidados, pois, para os protestantes europeus, América Latina não era vista como um continente pagão, uma vez que fora cristianizada pela Igreja Católica. Na sua esmagadora maioria norte-americanos, estes missionários vão rejeitar esta posição e convocar uma reunião em contraposição à Edimburgo, o Congresso do Panamá, realizado em l916.

E´ esta postura que vai fazer com que o esforço missionário, em nosso continente, tenha sido marcado, principalmente, pela luta contra o Catolicismo e a pastoral das igrejas, dele resultante, voltada, exclusivamente, para a ênfase conversionista, Assim se foi criando um ambiente de permanente polêmica (do grego polemos, guerra !) anti-católica que não permite, até hoje, (com poucas exceções) o desenvolvimento pleno das propostas dialógicas do movimento ecumênico.

A partir da segunda metade do século XX, com a independência e a afirmação nacionalista das nações colonizadas e, por isso mesmo, o ressurgimento no plano mundial das grandes e antigas religiões, começou a tornar-se evidente, para muitos cristãos e igrejas envolvidas na empresa missionária que o modelo ocidental de missão, de mão-única e de afirmação do modo religioso de ser do Ocidente, não mais devia prevalecer. A própria moralidade do esforço missionário começou a ser posta em dúvida em função de sua identificação com os interesses políticos e econômicos das nações até então colonialistas. Por outro lado, o conceito de conversão começou a receber severas críticas por sua estreiteza, tanto cultural-antropológica quanto bíblico-teológica. Foi nesse contexto que o CMI, por meio de seu Depto para Leigos, nos anos sessenta, iniciou um processo de estudo acerca do significado da conversão no contexto das novas realidades socio-políticas e culturais emergentes, que culminou com sua publicação como material preparatório para a Assembléia do CMI em Uppsala, Suécia, em l968. Previamente a esta assembléia a Conferência sobre Missão realizada no México em l966 vai ter como mote principal a afirmação da “Missão aos seis continentes”, eliminando assim o sentido de mão-única ao incluir as nações ocidentais com territórios de missão.
Por mais de uma década o teólogo luterano Paul Löffler foi o responsável, no contexto do movimento ecumênico, pelo processo de enquadramento teológico e pastoral do sentido do conceito de conversão no interior da concepção cristã de missão. O documento produzido por esse estudo levou o título de “Conversão a Deus e Serviço ao Homem” e representou, por quase duas décadas, a posição oficial do CMI sobre o tema.. Nesse texto se procura corrigir a estreiteza da visão evangelical, ampliando o significado da expressão e relacionando-a com a proclamação do Reino de Deus, e não mais considerando-a ou como a adesão a uma igreja particular ou como a livre decisão de um indivíduo por uma determinada formulação da revelação bíblica. Como assinalou Löffler “… a conversão sempre significa uma reorientação de vida, ao mesmo tempo para Deus e para os outros.” (8)

Posteriormente, no final dos anos setenta e nos oitenta, o tema da conversão volta a se fazer presente no mundo ecumênico sob a inspiração de Emílio Castro, então secretário-geral e ex-diretor da sub-unidade de Missão e Evangelismo. Acolhendo as reservas dos setores evangelicais das igrejas-membro, frente aos setores mais liberais e progresistas que detinham grande influência na definição dos rumos do CMI, especialmente, depois da Assembléia de Nairobi, em 1975, e profundamente inclinados à relativização da proposta conversionista, o CMI produziu um outro documento sobre Missão, publicado em 1982, onde trata de forma específica o tema da conversão: “Missão e Evangelismo: Uma Afirmação Ecumênica”. Neste texto, fazendo eco às declarações de l968, fica explicitado o entendimento ecumênico da conversão como “… a aceitação pessoal do chamado ao discipulado e a uma vida de serviço.” “…a proclamação do evangelho inclui um convite ao reconhecimento e à aceitação, numa decisão pessoal, do senhorio salvador de Cristo.”

O movimento ecumênico, como se pode observar, tratou de redefinir o conceito de conversão partindo do exame de suas raízes bíblicas. Neste esforço recuperou as palavras bíblicas subh, do hebraico, usada no sentido de ‘volta,’ “retorno”, no Antigo Testamento e sua equivalente grega, “epistrephein,’ mais a expressão “metanoia” (também possuindo o mesmo significado) no Novo Testamento. Em ambos casos se trata de expressões que apontam para Deus como a direção da conversão. Assim os documentos do CMI vão dar ênfase à conversão a Deus (a volta para Deus) e não ao trânsito de uma comunidade religiosa para outra. Trata-se, então, de compreender a conversão como a resposta positiva dos humanos ao amor de Deus. Neste caso o autor da conversão é o próprio Deus. Ou como expressou Agostinho, o Pai “ mais interior em mim do que eu mesmo..” Ou seja, a conversão é conseqüência da missio Dei no interior da missio humanitatis. . .

Esta reconfiguração do entendimento da conversão infelizmente, ainda não ganhou a força necessária para a reordenação dos esforços missionários de grande parte das Igrejas. O antigo paradigma ainda permanece solidamente assentado no imaginário religioso da maior parte da membresia das Igrejas. E, de modo particular, no mundo

eclesiástico dito evangélico, da América Latina. A presente emergência de novas vitalidades eclesiásticas, articuladas pelos movimentos pentecostais-caristmáticos, nas suas mais variadas expressões, e onde a experiência pessoal do Sagrado é posta em relevo, a conversão, em seu sentido mais estreito, continua a ser a idéia-força da ação missionária da maioria das igrejas, com todas as conseqüências negativas já experimentadas na história do movimento missionário.

A missão na ótica do Proscrito….

Mesmo antes de separar-se do grupo de seguidores de João Batista e constituir sua própria comunidade, Jesus já se entendia como um dissidente vivendo na condição de um excluído, de um proscrito no meio de seu próprio povo. E esta condição não só lhe foi imposta por seus adversários – os que administravam o poder político-religioso simbolizado pela autoridade do Templo e da Torah – como foi, acima de tudo, assumida conscientemente por ele mesmo. Recuperando e reinterpretando a tradição profética afirmou sua condição de dissidente ao não aceitar o reducionismo formalista e religioso monitorado pelos grupos que detinham o poder na esfera do sagrado no meio do povo. Trabalhando com os mesmos símbolos que davam sentido e orientação para seus contemporâneos Jesus ofereceu, entretanto, uma interpretação diferente, que recuperava a autenticidade da tradição israelita, conspurcada e pervertida pela manipulação interesseira dos que detinham o poder. Procurou mostrar, nas mais diferentes situações que o locus do poder e da presença de Deus não é constituído pelas estruturas que conformam o culto, nem pelo corpo de doutrinas, nem pelos lugares ditos sagrados, mas se encontra nas próprias pessoas. Com isso provocou uma inversão total no estilo da vida religiosa da época. Não que ele, como bom judeu, não desse importância ao Templo e à Lei, mas procurava mostrar que tudo isso só tinha sentido e razão de ser se contribuísse para a humanização da vida de todos.

Recolhendo estudos de outros autores, Andre Dumas nos indica que, em grego, a palavra christos, usada para a tradução do messiah hebraico, designa, ao mesmo tempo, aquilo que está por cima da matéria e o que é subsistente por si mesmo, no sentido de estar separado, escolhido para, posto de lado para uma ação ou função específica.(9) Salta à vista nos evangelhos e, particularmente, nas cartas de Paulo, que Jesus de Nazaré recebeu o título de Cristo advindo da tradição israelita do Messiah, o escolhido ou ungido de Deus para sua revelação na história. Assim, a partir dos relatos dos evangelistas, podemos inferir que Jesus foi feito Cristo na medida em que recusou a visão de mundo e a maneira de viver, com seus valores, perspectivas, projetos e normas comportamentais, características de seus contemporâneos, fazendo-as passar pelo crivo dos valores fundamentais do Reino de Deus, mensagem central e eixo estruturante de sua compreensão da vida. Esta a razão por que foi proscrito da comunidade dos ‘religiosamente corretos” e dos “politicamente afinados” com as estruturas de dominação do império, pois, a natureza de sua mensagem implicava nesse tipo de reação. Assim o Jesus dos evangelhos, e não aquele consagrado pelo institucionalismo eclesiástico que o sucedeu, não se considerou Deus; não se considerou melhor do que ninguém, nunca se colocou em evidência e jamais se deixou servir por qualquer pessoa, assim como não dispunha de forças milagrosas, capazes de funcionarem em qualquer momento, lugar e hora. Narram os evangelhos que em Nazaré, onde ninguém acreditava nele, não conseguiu fazer milagres (Mc 6,5). Crer em Deus e aceitar as tarefas derivadas dessa fé foi tão difícil para ele como o é para nós hoje (Mc 14,33-38; 15, 33-34).

O surpreendente do relato evangélico é que, em Jesus, Deus se fez presente em e na condição humana, de uma forma insólita e estranha para as tradições religiosas de todos os tempos, especialmente aquelas do entorno mediterrâneo: apresentou-se como um fraco e impotente! Segundo o apóstolo Paulo “ sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2, 6-8). Daí a exclamação de
R. Garaudy: “Pela primeira vez, homens, ao verem morrer um homem, um dos mais despojados dentre eles, puderam pensar: ele é Deus! E o primeiro e verdadeiro Deus, pois não tem poder. Diferente de todos os antigos deuses, lançadores de raios ou ‘deus dos exércitos’, que sua imaginação projetava no céu para compensar sua fragilidade e sua limitação.” (10)

Entendemos que a condição humana retratada na experiência do filho do carpinteiro de Nazaré, com suas limitações, suas angústias, seus dramas, temores e perguntas sem respostas (cf. por exemplo Mc 14,33-34) mas, também, seus sonhos, utopias e esperanças (ver, por exemplo Mt 11,25-30; Mc 4,3032), configura um ponto de convergência, um locus tanto existencial quanto sociológico, que reflete a realidade dos humanos, o qual deve se constituir no ponto de partida para a construção de um novo paradigma missionário. Infelizmente, grande parte das Cristologias das Igrejas, quase sempre produzidas a partir de uma posição de poder ou de aliança com o poder reinante, ou ainda, do interior das lutas pelo poder, por menor e limitado que seja este e, ainda, influenciadas pelas tramas dos interesses em jogo nas sociedades, não podem jamais aceitar que o Transcendente se revele e se expresse na vida desse homem de Nazaré. Por isso mesmo o transformaram em herói, salvador, rei, vencedor, deus todo-poderoso, descendente da coroa de Davi, mensageiro do todo-poderoso ‘deus dos exércitos,’ que um dia retornará com seus anjos em poder e glória! Ou seja, o contrário de tudo aquilo que ele professou em vida. Como destaca Dorothee Sölle: “ Não necessitamos de outro vencedor, juiz ou herói. E também não necessito de um salvador, se esta palavra significa que um ser superior me transfere de uma situação miserável para um mundo diferente, bom, intacto, sem a minha participação” (…) Na Bíblia, salvar significa libertar ou curar. Cristo não é o super-herói que extingue por um passe de mágica ou anula subitamente, o câncer ou a energia atômica. Mas ele nos liberta do terror da obsessão do mal e cura, tirando de nós o medo que bloqueia nossa força curadora.”(11)

Por trás dos títulos e das fórmulas com que a tradição procurou representar a figura de Jesus, como o Cristo de Deus, nos lembra ainda D. Sölle, estava a intenção de repelir a cristolatria por um lado e o docetismo, por outro, e formular o segredo da vida desse homem que faz com que ele nunca seja eliminado. Este segredo diz ela “é o mesmo

segredo que habita os corações dos sofredores, dos humilhados e empobrecidos, dos sem terra e sem trabalho”. Por sua vez R. Garaudy pontúa que, “com Jesus, pela primeira vez, a transcendência divina se revela no despojamento de todo poder em um homem que compartilha a vida dos homens, primeiramente, a dos mais carentes, e revelando, por sua vida e morte, a divindade da vida e da morte.” (12)

Ao assumir sua condição como a de um proscrito Jesus promove e dignifica a condição de vida experimentada pela maioria dos humanos em seu tempo e em todos os tempos. O proscrito é o que foi posto fora, colocado à margem, rejeitado, desconsiderado e tratado como um objeto. Segundo o direito romano trata-se da categoria do “homo sacer”, (13) aquele que podia ser morto com impunidade, já que sua morte não possuía valor sacrificial, conforme nos relata o filósofo italiano Giorgio Agamben que, em livro recente recupera esta categorização da jurisprudência da Antigüidade para aplicá-la aos excluídos do capitalismo contemporâneo.(14) É nesta condição que Jesus se torna destinatário do amor redentor de Deus e revelador de sua presença na história. Assumir conscientemente esta condição significa negar-lhe legitimidade e denunciar sua desumanidade. Assim, ao se apresentar como “uma pessoa-para-as-outras-pessoas” (Bonhoeffer), ) Jesus oferece uma nova chave hermenêutica que denuncia a idolatria das formas sócio-culturais e econômicas vigentes, para tornar possível a apreensão do sentido pleno da vida humana. Neste sentido as igrejas estão sendo chamadas a repensar suas relações com as formas de convivência características da cultura ocidental. A compreensão individualista da vida e da salvação, a ideologia de mercado ( que receita agressividade, competência e concorrência como ‘valores’ a serem cultivados), o culto à tecnocracia, a banalização da violência, o desrespeito à natureza, o desprezo à dignidade da vida humana e a discriminação do diferente não podem, evidentemente, fazer parte de uma proposta eclesiológica que se afirma como cristã. O anúncio do Reino de Deus é a negação do reino egolátrico dos humanos assim desumanizados. Como bem o expressou Paulo “… Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes. E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele.” (I Cor 1, 27-29)

Esta compreensão de Jesus como proscrito, no qual se revela o Cristo de Deus, e Cristo entendido aqui não na expressão individualista e heróica definida pela instituição eclesiástica e profundamente enraizada no imaginário coletivo da cultura ocidental, mas enquanto pessoa coletiva que representa a presença de Deus entre os humanos e estes junto a Deus, nos oferece uma significativa porta de entrada para a apreensão dos dilemas e enigmas que homens e mulheres, em nosso tempo e lugar, tem experimentado em suas variadas buscas pelo sentido fundamental de suas vidas. Nas atuais circunstâncias da vida no planeta isto significa, para as Igrejas, que se pretendem continuadoras da proposta anti-sistêmica iniciada pelo profeta de Nazaré, um esforço incessante para se articularem, enquanto membros do ‘corpo de Cristo’ (I Cor 12), numa perspectiva de complementariedade e íntima cooperação, para o desenvolvimento de uma cultura de solidariedade e de afirmação dos direitos sociais e humanos em meio aos escombros da crise civilizacional que experimentamos. É nesta direção que tem caminhado, não sem dificuldades, o movimento ecumênico. Este esforço de renovação de prioridades e critérios para a revitalização de sua vocação missionária é que tornará possível à comunidade dos seguidores de Jesus testemunhar, em meio às contradições, sofrimentos, sonhos e esperanças dos humanos o novo estilo de vida que ele exemplificou. Ou como o expressou com profundidade e poesia Garaudy: “Viver sua vida, seu despojamento, cria um novo olhar, profético, um olhar que não se apega ao parcial, mas que nele descobre o todo e o futuro que aponta.” (…) Ver a borboleta na larva, a santa na prostituta, a águia no ovo, o irmão em meu próximo e em meu distante, e, no sorriso efêmero do jasmim, a ressurreição eterna da primavera. Tal é olhar de Jesus sobre o mundo. Mas “ele tocou a flauta e nós não dançamos.! (Mt 11, 16-17)” (15)

Pautas para um novo paradigma missionário

As Igrejas, com suas variadas agências de auto-propagação, auto-preservação e de serviços à sociedade, que se constituem e se expressam nos diferentes organismos ecumênicos, nas entidades ecumênicas de serviço e nas múltiplas agências de cooperação, estão sendo desafiadas a assumir, com humildade e perseverança, a implementação de um novo modelo de discipulado, de modo a tornar seu testemunho do Reino pertinente às novas condições históricas que atravessamos. Os tempos são confusos e as visões que nos suscitam são, as mais das vezes, difusas. Como seguidores d’Aquele que nos desafia a ver o invisível, a plenitude da vida nas parcialidades que nos sensibilizam, somos convidados à ousadia de desenvolver novas formas de convivência, de cooperação e de serviço na contra-corrente dos anti-valores que caracterizam nossas sociedades.

Repensar a missão dos seguidores de Jesus, nestes tempos de pós-Cristandade, isto é, de fim da vigência hegemônica do Cristianismo, e de transição para um novo período histórico ainda não claramente definido, implica que levemos em consideração, com urgência e seriedade, alguns dilemas cruciais:

aComo reconhecer e manter as riquezas humanizadoras de nossa tradição cristã?
b)Como celebrar a diversidade, se fomos treinados a considerar o diferente como ameaça e perigo?
c)Como resistir à dominação se as estruturas de sentido, nossos símbolos mais fundamentais, projetam valores anti-libertários ?

Fazer frente a tais questões exige de nós um esforço coletivo para a elaboração de novos parâmetros para a missão, a partir do modelo ético-existencial plasmado pelo Jesus dos evangelhos. Entendo que, em base a tudo o que tentamos explicitar, não existem receitas prontas para o agir missionário da comunidade dos seguidores de Jesus. Contudo, as indicações axiológicas até aqui desenvolvidas, mais os exemplos

concretos registrados pela história, sugerem algumas linhas de força que, já explicitadas em alguns colóquios ecumênicos e, de modo especial, na “Conferência sobre Justiça Paz e Integridade da Criação” patrocinada pelo Conselho Mundial de Igrejas em Seoul, Coréia, em l992, podem dar corpo a uma nova proposta missionária:

1. A busca da justiça do Reino é o fundamento primeiro da missão dos seguidores de Jesus. As flagrantes e escandalosas expressões da injustiça que permeiam e sustentam as relações entre os humanos de forma alguma podem ser aceitas e muito menos toleradas pela comunidade cristã;

2. A missão, para ser fiel ao espírito de Jesus, deve basear-se no diálogo com as outras manifestações religiosas, partindo da dura realidade dos que sofrem as conseqüências das estruturas de dominação;

3. Se a missão é entendida como serviço aos outros e não como conquista e dominação, deve acolher o diferente com admiração respeito, pois nele o Deus de Jesus se faz presente;

4. A mensagem do Reino que Jesus apregoa tem uma dimensão cósmica, não se destina apenas aos humanos, mas à totalidade da criação que está sempre sob os cuidados do Pai. Assim, é missão dos seguidores de Jesus cuidar da terra como o lar comum da humanidade,

5. Se na perspectiva cristã Deus se ocupa dos humanos com compaixão e amor, é parte essencial da missão o cuidado com as necessidades físicas de todos, especialmente as dos famintos;

6. A não-violência e a promoção da paz, do shalom de Deus, assim como o perdão, a reconciliação e o amor aos inimigos constituem elementos decisivos da agenda ética de Jesus. A missão de seus seguidores implica no exercício pleno destes valores, ou seja, ou é cruciforme, ou não é missão.

A flauta continua a tocar…. por que continuamos sentados?

(*) Paráfrase do texto bíblico cunhada por Garaudy. Cf. Garaudy, R., Deus é necessário?, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, l955. P. 117.
(**) Professor no Programa de Pós-Gradução em Ciência da Religião da Univ. Federal de Juiz de Fora, MG. Pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e colaborador de “KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço”.
(1) Cf. dentre outros, Rouanet, Sergio P. & Maffesoli, Michel, Moderno e Pós-Moderno, Rio de Janeiro, UERJ, Dpto. Cultural, 1994.
(2) Garaudy, R., op. cit. P. 97.
(3) Weth R., apud Segundo J.L., Masas y Minorias en la dialéctica divina de la liberación, Buenos Aires, La Aurora, 1973. P. 55 (trad. do autor)
(4) Comblin, J., O Espírito Santo e a Libertação, Petrópolis, Vozes, l987. P. 178
(5) Thangaraj, M. T., The Common Task: a Theology of Christian Mission, Nashville, Abingdon Press, l999.. P. 53.
(6) Newbigin, L., Foolishness to the Greeks, Gran Rapids, WCC-Missions-Series, eerdmans Pub. Co. l986, P. 123 (Trad. Do autor)
(7) Miguez Bonino, J., Conflicto y Unidad en la Iglesia, in Vida y Pensamiento, vol.11, nº 2, San José, l991. P. 40
(8) Löffler, P. “Conversion”, in Dictionnary of the Ecumenical Movement. N. Lossky et al., Genebra, WCC Publications. P. 229
(9) Dumas, A., Una teologia de la Realidad – D. Bonhoeffer, Bilbao, Desclée de Brouwer, l971.P. 7
(10) Garaudy, R., Rumo a uma Guerra Santa?, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1995. P. 74
(11) Sölle, D., Deve haver algo mais: reflexões sobre Deus. Petrópolis, Vozes, 1999, P. 79-80
(12) Garaudy, R., Deus é necessário? Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., l995. P. 20
(13) Cf. Zizek, S., A biopolítica humanitária, in Caderno mais!, nº 536, Folha de São Paulo, 19/05/2002 pg. 18
(14) Agamben, G., “Homo Sacer”, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002.
(15) Garaudy, R., op.cit. P. 117.

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