Criação e liberdade: caminhos divinos e atalhos humanos

Autor: Jonathan Menezes

INTRODUÇÃO

A liberdade é uma dádiva e também uma obra de arte, desde que nela esteja implicado o viver bem, com alegria, sabendo gozar dos prazeres e belezas inerentes à vida, aceitando-a como ela é e a nós mesmos como somos. Somos feituras que expressam a imagem da grandeza e da perfeita liberdade do Grande Artista, Deus, que é quem meticulosamente pintou todas as coisas que existem no quadro da vida terrena.
É um desafio tremendo tratar de criação e liberdade num momento em que os seres humanos se permutam entre a pobreza de criatividade e a falta de liberdade de um lado, e a carência de referenciais éticos e de solidariedade como o todo criado de outro. Esse desafio aumenta ainda mais se pensarmos que a igreja – que deveria ser foco da presença libertadora, operante e compassiva do Espírito de Deus frente à deterioração de sua criação – não tem sido capaz de suprir essa carência e suplantar essa pobreza.
Tendo dito isso, a presente pesquisa visa desmistificar a antiga crença de que Deus é inimigo da liberdade humana e de que seu interesse para com o todo criado não seria outro senão julgar, castigar e aprisionar. Isso seria uma total subversão da vocação crística para a liberdade. “Ora, a revelação de Deus manifesta que ele, que era todo-poderoso, se tornou fraco e impotente para permitir o pleno desenvolvimento da liberdade humana” (COMBLIN, 1996, p. 332). A pessoa não tem que renunciar da liberdade que recebeu do Criador para se tornar cristã. De modo nenhum! Veremos que Deus, num sopro de liberdade, deu vida aos seres humanos, vocacionando-os para uma vida em liberdade.
Num primeiro momento, apresentarei a idéia, já desenvolvida por alguns teólogos, de que Deus é sinônimo de vida, amor e liberdade, tanto que criou em perfeita liberdade, respeitando, assim, o livre desenvolvimento de sua criação. Já em segundo plano, encerro trabalhando um pouco do que essa liberdade tem representado na experiência humana, em contato direto com o restante da criação e com seu Criador.

1 – DEUS É LIBERDADE

1.1 – O Deus “Todo-Poderoso” Criador
Quando partimos do pressuposto básico de que existe um Deus, criador do universo e de todos os elementos que a esse subjazem, a idéia primária é de que Ele é Todo-Poderoso. Não só pela possível ocorrência do sobrenatural na criação, mas, sobretudo, porque a grandeza e a diversidade existentes nela exprimem uma “origem” igualmente grandiosa, conforme expõe Paulo: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim como o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas” (Rm. 1:20 – ênfase acrescida).
Paulo não só está dizendo que os atributos de Deus, bem como seu eterno poder, são perfeitamente reconhecíveis por intermédio do que foi criado (e, por isso, visto), mas também que, por meio das coisas criadas, sabemos que Ele é Deus. O apóstolo ainda afirma, num momento anterior, que o que de Deus é dado conhecer aos homens, já é manifesto entre os tais, isto é, concreto, objetivo, imanente – porque Deus, afirma o texto, lhes manifestou. Faço menção à referida passagem para argüir que não há como pensar no Deus que criou tudo isso que nos rodeia abstendo-nos da idéia de que Ele é Todo-Poderoso e Soberano. Todavia, partimos de um pressuposto equivocado quando aferimos que “soberania” é apenas poder para fazer ou deixar de fazer “grandes” e “perfeitas” coisas no universo. Corremos o risco de voltar ao caminho da metafísica  para conhecer Deus.
Por muitos séculos, desde a Idade Média, a filosofia escolástica, que incidiu tanto sobre a teologia católica como protestante, preconizou os conceitos da filosofia grega (Aristotélica), condicionando a idéia de Deus a metáforas filosóficas racionalizantes. Postulou-se Deus como o “onisciente”, imutável, “Todo-Poderoso”, “auto-suficiente”, elaborando conceitos de causa e efeito que o reduziram ao patamar de uma “substância”: racional, científica, demonstrada e indiscutível. Segundo José Comblin, a síntese dos argumentos metafísicos elabora Deus como sendo “o ponto culminante da teoria representativa do universo”. O Deus de Aristóteles, ainda conforme Comblin, “era o fornecedor de energia ao mundo inteiro, era o ponto de partida de todos os movimentos. Por conseguinte, era membro e parte do universo”. Destarte, “o Deus da Bíblia foi, pouco a pouco, recoberto pelo Deus da metafísica” (COMBLIN, 1998, p. 61, 62).
Essa é uma perspectiva que não somente reduz Deus a uma categoria do pensamento humano, considerando apenas aquilo que Ele faz e não o que Ele é, como também inibe a percepção de um Deus que é vital e, por isso, sintético; que se revelou objetivamente na história e que atua concretamente na vida da criação, não como uma expressão subjetivista, mas libertadora da matéria. Deus é vida e não um conceito ou objeto. “Assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida em si mesmo” (Jo. 5:26). José Comblin ressalta que “liberdade é a capacidade de fazer surgir vida, dom de vida. Por isso Deus é liberdade perfeita, porque produz vida perfeita: o Filho e o Espírito Santo, igual a ele” (COMBLIN, 1998, p. 63).
Mas, apesar disso, ainda hoje é corrente entre as pessoas a idéia de um Deus barganhável, como inclusive pode-se notar em uma das primeiras cenas de um filme, recentemente lançado no Brasil, chamado “O Todo-Poderoso”, em que Bruce, o personagem principal, afirma que Deus é “um menino malvado e brincalhão”, que poderia dar um “jeito nas coisas” se quisesse, num simples estalar de dedos. Afinal, quem é que não quer um Deus “gênio da lâmpada”, que possa ser objeto de manipulação em nossas mãos e oferecer respostas ou soluções imediatas aos nossos problemas, desde os menores aos mais complicados? Entretanto, essas barganhas protagonizadas pelos seres humanos são uma negação sutil e esdrúxula de sua razão de ser e da natureza do Deus Criador.
Segundo Karl Barth, com a proposição: “Deus é o Criador!”, que se reporta à história do Gênesis, estamos diante de uma esfinge que tem duplo conteúdo: trata da Liberdade de Deus (ou “Santidade”) sobre e contra o mundo, e de seu Relacionamento (ou “Amor”) com o mundo (BARTH, 2003, p. 47). Apesar de ter todo o poder e primazia sobre a criação, Deus age em liberdade e em amor. Deus não simplesmente governa o mundo, mas se relaciona com ele, de modo que qualquer ingerência do Criador sobre a existência criada respeita, se assim podemos chamar, duas “leis”: a lei da liberdade (de Deus e da criação) e a lei do amor (na e pela criação).

1.2 – Auto-Suficiência e Auto-Limitação
Duas premissas aqui estão em jogo. Primeiro: Deus é o Eu Sou (Êx. 3:14), é por si mesmo e não precisava ter criado o mundo. Segundo: Deus é livre para ser o que Ele é, e a Palavra nos diz que Ele é Amor. Também diz que Ele não pode negar-se a si mesmo. Assim, seu poder maior consistiu na escolha de se auto-limitar e agir “dentro” do amor, que é a sua essência. Desse modo, Deus não pode ferir ou atrapalhar a liberdade conferida a sua criação. O Deus que é livre criou em liberdade e para a liberdade. Essas duas premissas são complementares, não obstante as diferentes apreciações a elas referentes.
Karl Barth, por exemplo, parece não abrir mão da concepção de que o princípio fundamental da formação do cosmos funda-se e finda-se num real paradoxo: Deus criou o mundo sem, no entanto, tê-lo precisado, o que não significa que ele não teve um propósito. Ele criou em amor e, por isso, o mundo e o ser humano têm seu sentido: a liberdade. Mas, não fosse o amor, Deus subsistiria perfeitamente sem o mundo. Conforme expõe Barth,
A criação do mundo não é um movimento de Deus nEle mesmo, mas uma livre opus ed extra, encontrando sua necessidade somente no amor dEle, mas de novo não lançando nenhuma dúvida na auto-suficiência dEle: o mundo não consegue existir sem Deus, mas se não fosse amor (inconcebível dessa maneira!), Ele poderia existir muito bem sem o mundo (BARTH, 2003, p. 48).
John Stott, por sua vez, não trata desse assunto em termos de uma dialética auto-suficiência/auto-limitação Divinas, mas em termos de natureza Divina. Na acepção do autor, não existe liberdade absoluta, pois, se for absoluta, deixa de ser liberdade. Nem mesmo a liberdade de Deus é absoluta, no sentido de poder fazer absolutamente qualquer coisa. Ao mesmo tempo ele afirma que Deus é o único que goza da perfeita liberdade, pois Ele é livre para fazer absolutamente qualquer coisa que queira. Mas afinal, sua liberdade é “limitada” ou ilimitada? Nem uma coisa nem outra. De acordo com Stott,
A liberdade de Deus reside no fato de ser ele mesmo, assim como ele é. E o que acontece com Deus, o Criador, também acontece com todas as coisas e seres criados. Liberdade absoluta, liberdade ilimitada, é pura ilusão. Se isso é impossível para Deus (como de fato é), mais impossível ainda para a criação de Deus. A liberdade de Deus é liberdade para ser ele mesmo; nossa liberdade é liberdade para sermos nós mesmos. A liberdade de toda criatura é limitada pela natureza que Deus lhe deu (STOTT, 1998, p. 58).

1.3 – A Fraqueza de Deus
A natureza (capacidade de ser ele mesmo) de Deus a qual Stott alude é o amor. Deus é perfeitamente livre para fazer o que quiser, mas essa liberdade só é perfeita por causa do amor. Amor com o e para o qual Ele gerou a criação. Assim, os seres humanos, criados à sua imagem e semelhança, também só podem encontrar a sua verdadeira humanidade e, como tal, verdadeira liberdade, no amor. José Comblin também defende a idéia de que “se Deus é amor, a razão de ser da criação só pode ser o livre amor, a livre aceitação dos seres humanos” (COMBLIN, 1996, p. 66).
O ser humano, por seu turno, tem em suas mãos a possibilidade não somente da livre aceitação, mas também da livre rejeição a esse amor. Não tem como viver o amor sem correr riscos. No amor há o risco da desilusão, posto que, quando amamos, entregamo-nos de corpo e alma, ficamos “vulneráveis”, parafraseando C. S. Lewis. E Deus se permitiu ficar vulnerável ao decidir pelo amor como auto-essência e manifestação. Deus se fez fraco diante do ser humano livre. “Deus quis o risco do fracasso para que o êxito tivesse valor” (COMBLIN, 1996, p. 66).  
Essa idéia pode parecer um tanto quanto subversiva para aqueles que mantêm uma continuidade de pensamento com o escolasticismo. Parece ser o caso do teólogo “neo-escolasticista” Roger Olson, que, escrevendo sobre os mistérios da providência, apresenta um Deus intocável, ilimitado e, me arrisco a dizer, insensível! Para ele, na interação com os agentes livres, Deus “permanece o parceiro maior no relacionamento e nunca é frustrado” (OLSON, 2004, p. 252 – ênfase acrescida). Como explica Comblin, o Deus de Aristóteles (e dos escolásticos) “era todo-poderoso, soberano, impassível, imutável, imóvel, prisioneiro de si próprio e da sua perfeição. Não podia amar. Era inconcebível que pudesse amar porque não havia nada que pudesse ser amado por ele” (COMBLIN, 1996, p. 67).
 Segundo Olson, os seres humanos influenciam a Deus, mas “nunca o frustram”. Ora, se eles podem “influenciar”, por que então não poderiam “frustrar”? O autor parte do pressuposto de que Deus soberanamente consente com todas as coisas, sejam boas ou más. Assim, Ele tem o controle sobre os propósitos eternos, antevê a futuridade humana, por isso não pode se frustrar. Todavia, se Deus nunca pode “falhar” naquilo que esperava, tem alguma coisa errada com a bíblia. Gênesis 6:1-8 relata a corrupção do gênero humano e a frustração de Deus diante da perversidade na qual chafurdara sua criação. Ali lemos: “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração, então se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração” (v. 5, 6). Essa passagem não entra em contradição com aquelas que apontam para a imutabilidade divina  (Ml. 3:6; Tg. 1:17). Atentemos para a elucidação de João Batista Libanio:
Ao criar a liberdade humana, Deus aventurou-se por um caminho diferente. Ei-lo diante de um parceiro que não seguiria sem mais o império de sua vontade, nem traçaria o desenho com que sonhara. Deixou a caneta na mão de sua liberdade, e iniciou-se uma aventura de surpresas e de sofrimento para Deus. Calou-se sofrido diante da rebelião desse homem. Sofreu e sofre inúmeros “nãos” dessa liberdade. Apesar de infinito, sente-se impotente diante da liberdade que ele mesmo criara para amá-lo, relacionar-se com ele (LIBANIO, 2000, p. 199).
 Isso apenas deve nos lembrar que Deus criou um mundo que podia fracassar, uma ordem que poderia tornar-se desordem. “Pela liberdade, o ser humano pode tornar frustrado o amor de Deus” (COMBLIN, 1996, p. 66). Ainda de acordo com Comblin,
Deus tornou-se capaz de fracassar, capaz de sofrer. Tornou-se paciente. Aprendeu a esperar, aprendeu a desilusão. É verdade que não há liberdade humana se Deus é todo-poderoso. Porém, a partir daí não se pode concluir que a liberdade humana é pura ilusão e nem que Deus é ilusão se a liberdade existe. (…) O amor pode renunciar livremente ao poder, ao mando, à dominação, inclusive à ordem. Todo amor humano já é assim e é capaz de tal abandono. Com mais razão, Deus pode desistir do seu poder para que a liberdade exista (COMBLIN, 1996, p. 67).
Tal concepção praticamente anula a idéia de que, primeiro, Deus é puramente “Todo-Poderoso” (seguindo a visão escolástica) e, segundo, que ele pode interferir deliberadamente na história humana para que as coisas “dêem certo”. A providência não é somente onipotência, mas o poder do amor que sofre, liberta e reconcilia. O poder do amor de Jesus consistiu em esvaziar-se de si mesmo (kenosis), de seu “grande poder”, assumindo a forma de servo, humilhando-se até a morte de cruz (Cf. Fp. 2:5-11). Segundo Wander de Lara Proença, a natureza divina sempre esteve em Jesus, mas ele voluntariamente desapropriou-se de tal centelha em seu ministério terreno, dependendo apenas do poder do Espírito Santo. “Seu esvaziamento, portanto, consiste no fato de ter deixado de lado a glória, no retraimento voluntário do poder, aceitando dificuldades, o isolamento, os maus tratos, a agonia e, finalmente, a morte, que é o destino de todo ser humano” (PROENÇA, 2001, p. 45).
O cerne da compreensão da liberdade de Deus, portanto, está em sua fraqueza voluntária (COMBLIN, 1998, p. 67): a liberdade de Deus reprime o poder, torna-o fraco para que apareça a força humana, sofre muito com a dor de seu Filho Amado, mais ainda com a rebelião e a dor da humanidade, tudo isso por seu infinito amor, para que o menor dos menores também pudesse experimentar dessa liberdade em seu relacionamento com o Criador e com as demais criaturas.

2 – A LIBERDADE NA EXPERIÊNCIA HUMANA
2.1 – A liberdade na Graça de Jesus Cristo
Qual é o caminho para uma compreensão correta da liberdade humana e da vontade de Deus ao nos conceder o dom da liberdade? Não acredito que seja outro senão o caminho da Graça. A corrida da vida, pela fé, é também uma corrida em busca da liberdade, mesmo quando não se sabe ao certo a qual liberdade está-se reportando. Liberdade do pecado, dos medos, das pulsões da “carne”, das angústias da alma, da culpabilidade. Sim, foi para essas “liberdades” que Cristo nos libertou. Afinal, ninguém pode dizer que é feliz estando na condição de escravo, a não ser que seja masoquista. 
 “Vós fostes chamados à liberdade, irmãos” (Gl. 5:13). “É para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão” (Gl. 5:1).
Paulo, porém, deseja mostrar um tipo de liberdade com alcance muito mais global: a liberdade de consciência. Não há cárcere mais aprisionador que nossa própria consciência. Viver mentalmente encarcerado, ou com a consciência “pesada”, é estar alijado do processo de libertação, significa decair da Graça, conforme Paulo. O apóstolo perseguido, açoitado, humilhado, difamado: não estaria ele pregando a libertinagem e levando o povo a viver uma vida dissoluta? Não seria a circuncisão uma solução mais sedutora que a própria liberdade pela Graça?
Quantas acusações infundadas, dúvidas geradas, erros cometidos por causa dessa depreciação da Graça, por aqueles que, muito antes, haviam sido instruídos a viverem conforme a mesma. Equívocos históricos ainda são correntes entre nós, cristãos, que, por enquanto, apenas ensaiamos vivenciar a liberdade para qual Cristo nos libertou. Custamos compreender que “a liberdade é o caráter que atinge a totalidade do modo de ser do discípulo de Jesus” (COMBLIN, 1996, p. 56). Ainda hoje, pode-se ouvir vozes dissonantes em relação a Paulo, ressonâncias judaizantes, pregando um “outro evangelho”, acrescentando artifícios à fé, cedendo à tentação da autojustificação: “Livres sois, pois, mediante a lei, por esforço pessoal, e isto provém de vós, para vossa própria salvação”. Não seria este o outro “evangelho” que se tem pregado em muitas sinagogas judaicas modernas disfarçadas de templos evangélicos? 
Na verdade, em tantos casos, não se prega mais a Palavra, mas julga-se “tomar posse” dela, a tal ponto de poder mudá-la “um pouquinho”, como uma síndrome judaizante. É por isso que a Graça fere tanto e é por isso que é tão escandalosa, apesar de ser a mais essencial das pregações. Ao mesmo tempo em que ela livra das prisões e cadeias do ser, ainda torna nulas as tentativas de se viver uma fé “capenga”, que, por um lado, incita a uma “liberdade” combinada com individualismo e que se confunde com licenciosidade, e, por outro lado, produz o que chamo de responsabilidade excessiva, do legalismo e do mérito pessoal. Em todo caso, não há como vivenciar a liberdade sem riscos à fé cristã, conforme lembra J. B. Libanio:
A fé possui… sempre um elemento de compromisso, de engajamento, de liberdade. Em toda decisão pessoal, onde entram a liberdade, a escolha, há uma dose de risco. Quando esse outro parceiro é Deus, o invisível, o imperceptível, somente captado na fé, o risco atinge as raias do inaudito. Mais: aquilo que se compromete com Deus, pela fé, não são coisas da nossa vida, mas a totalidade da nossa existência. É jogo de tudo ou nada. Então o risco é total. Pois não se trata de uma liberdade de anjo, mas de ser humano histórico, sempre ameaçado (LIBANIO, 2000, p. 201).
A liberdade para a qual Cristo nos libertou, por outro lado, só pode ser vivida em amor. “Porque toda lei se cumpre num só preceito, a saber: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl. 5:14). Deus nos aceita por sua infinita graça, mas isto não significa que a lei foi totalmente anulada. A lei foi dada como princípios morais e deveres sociais e é, portanto, pedagógica. Ensina o ser humano sobre a natureza do pecado e dá princípios para a vida; mas nela não habita a justificação para a salvação, por isso ela pode escravizar e, dessarte, o ser humano necessita incondicionalmente da graça.
De acordo com Dietrich Bonhoeffer, “a graça é graça sobretudo por Deus não ter achado que seu Filho fosse preço demasiado caro a pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus” (BONHOEFFER, 2002, p. 10). A lei deixou de ter utilidade à medida que o amor entrou em vigência na cotidianidade da vida humana. Foi para a liberdade que Cristo nos libertou, mas foi para o amor que ele nos criou, e só através do amor somos verdadeiramente livres.
Na percepção de Leonardo Boff, essa libertação de Jesus, num sentido mais amplo, assume um duplo aspecto: “por um lado proclama uma libertação total de toda a história e não apenas de um segmento dela; por outro, antecipa a totalidade em um processo que se concretiza em libertações parciais sempre abertas à totalidade” (BOFF, 1997, p. 28). 
O que Boff está dizendo, em outras palavras, é que a utopia de um fim “total” e glorioso, sem uma antecipação histórica em manifestações concretas de libertação, não passaria de “fantasmagoria” humana sem nenhuma credibilidade. Por sua vez, um processo histórico de libertações objetivas e parciais sem perspectivas de totalidade e devir libertários, seria mero “imediatismo inconsciente”.

2.2 – A liberdade como serviço e comunhão
A libertação crística e o Reino de Deus encarnam um poder que lhes é peculiar e paradoxal aos ditames do mundo secularizado, que é o poder da sujeição serviçal:
Não é um poder de dominação das liberdades, mas de oferecimento e apelo à liberdade e a sua obra que é o amor. O Reino apresenta-se assim como proposição e não como imposição. Por isso nas condições históricas o Reino de Deus não vem se o homem não aceita nem entra em um processo de conversão/ libertação (BOFF, 1997, p. 31).
 Segundo Jürgen Moltmann, aquele que é livre “é amável, é prestativo, aberto, alegre e serviçal” (MOLTMANN, 1998, p. 118). Em Gálatas lemos: “não useis da liberdade como pretexto para a carne; antes, sede servos uns dos outros pelo amor” (Gl. 5:13-b). Os processos parciais de libertação passam necessariamente pela via do serviço. Se o segredo maior da liberdade de Deus está na sujeição e no enfraquecimento voluntário em prol do outro, como vimos no capítulo anterior, muito mais a liberdade humana deve ser aliada a sujeição aos seus semelhantes no temor de Cristo (Cf. Ef. 5:21).  Somente através do serviço sacrificial é que a liberdade aparece como liberdade e não como dominação. A verdadeira liberdade, na opinião de John Stott, “é a libertação do meu tolo e diminuto ego, a fim de viver responsavelmente em amor a Deus e aos outros” (STOTT, 1998, p. 60). E mais:
A verdadeira liberdade é a liberdade para ser eu mesmo, assim como Deus me fez e como ele pretendia que eu fosse. E Deus me fez para amar. Mas amar é dar, é autodoação. Portanto, para ser eu mesmo, eu tenho que negar-me a mim mesmo e doar-me. Para ser livre eu tenho que servir. (STOTT, 1998, p. 60).
Liberdade não é, por assim dizer, afastamento nem tampouco dominação. Na acepção de Jürgen Moltmann, “quem entende a liberdade como dominação, na verdade só conhece a si mesmo e sua propriedade” (MOLTMANN, 1998, p. 117). É uma grande incoerência chamar de liberdade o que, para outros, só é opressão: a liberdade-riqueza que torna outras pessoas pobres; o livre exercício de um poder que apenas escraviza os seus “súditos” – homens, mulheres e crianças. A liberdade, por sua vez, só acontece quando reconhecemos os outros e somos reconhecidos por eles. Essa é a liberdade como comunhão. Segundo Moltmann, “sou verdadeiramente livre quando abro a minha vida aos outros e com eles compartilho, e quando os outros abrem a sua vida para mim e compartilham comigo” (MOLTMANN, 1998, p. 118).
A liberdade como dominação é a liberdade que pretensamente se “conquista”, seja por meio da disputa e do embate aberto com o outro, ou por intermédio da fuga para dentro de si mesmo (egocentrismo). Mas liberdade, num sentido mais profundo, não é conquista, mas é recebida como dom de Deus (LIBANIO, 2000, p. 194). Assim como há somente um único Deus, o qual nos concede o dom da liberdade, logo há também uma única via de liberdade, que é a que procede desse Deus. Existem possibilidades de interpretação, tematização e compreensão dessa liberdade, por meio de diversas fontes. Contudo, ela se une com aquele que a gerou.
Também não existe liberdade genuína para o ser humano fora da relação com Deus. Se a liberdade humana não está centrada em Deus, perde seu foco, sua essência, passando a ser propiciação autocentrada, isto é, o “eu” é quem comanda a liberdade de si e para fora de si mesmo. E, ao invés de liberdade, tem-se uma das piores formas de dominação, orientada para o ego (libertinagem). Libanio afirma que “vive mais profundamente a liberdade cristã um ateu que orienta sua vida para a comunhão com os irmãos, sacramento da união com Deus, mesmo sem disso ter consciência reflexa, que um cristão que vive a liberdade na solidão do egoísmo, rompendo a comunhão com os irmãos e com Deus” (LIBANIO, 2000, p. 196).
Ora, se não existe lugar para a libertação genuína fora da relação ser-criado-livre e Livre-Ser-Criador, o mesmo não haverá senão entre seres-criados-livres em relação mútua e interdependente. Em outras palavras, o ser humano precisa dos relacionamentos para vivenciar inteiramente a experiência de liberdade. Precisa de comunidade, pois em comunidade a liberdade pessoal é aperfeiçoada. O livre encontro com o Criador, por sua vez, depende do livre encontro com a comunidade da fé. A isso podemos chamar de dialética da liberdade cristã, cujo cerne está na ênfase joanina sobre a liberdade. O reformador Martinho Lutero disse que “um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém”, mas que, ao mesmo tempo, “é servidor de todas as coisas e sujeito a todos” (LUTERO, 1979, p. 09). 
De acordo com Comblin, a captação mais precisa da liberdade não se realiza por um ato único, isolado dos demais, individualista. Segundo ele:
A liberdade somente existe numa grande diversidade de “liberdades” e cada uma é objeto de longas, repetidas, cansativas operações de conquista: liberdade das forças de dominação da natureza física do inconsciente, liberdade das forças políticas e econômicas múltiplas que procedem de uma história complexa e de relações mútuas entre indivíduos e grupos (…) Nossa liberdade existe nas liberdades conquistadas entre essas múltiplas relações com os outros seres humanos e com o conjunto do mundo material (COMBLIN, 1996, p. 70,71).
Portanto, o ato singular e genuíno de liberdade está no encontro com outras liberdades, de Deus e do próximo, conforme a relação de mútua dependência e de liberdade que há entre as três pessoas da Trindade: Pai, Filho e Espírito, refletindo a união eterna do Deus da Comunhão. Não sou livre para me acomodar com os enganos do conformismo e do conforto individualista, de achar que liberdade é para fazer o que eu quero e como eu quero, mas para abdicar da zona de conforto e me encontrar com o outro, pois encontrando o outro estarei indo de encontro a mim mesmo e ao Espírito do Deus que nos criou. “Onde está o Espírito do Senhor, há liberdade” (2Co. 3:17).
                                                                   
CONCLUSÃO
Vimos que Deus é liberdade e que ele criou o ser humano em e para a liberdade; esse é o seu chamado, a sua vocação maior. Por seu turno, o ser humano é livre para responder positivamente ou negativamente a esse chamado. Porém, uma resposta que ignora o amor e a providência Divina, conseqüentemente, negligencia o propósito para o qual fomos criados, sublimando, assim, a verdadeira liberdade e o verdadeiro amor.
Neste ponto, para concluir, quero voltar ao apóstolo Paulo. É dado para aqueles que conhecem a Deus, a opção de responder ao seu livre amor com liberdade e é isso que nos torna próximos dele. Mas isso pode ser também o que nos afasta. Se Paulo afirma lá no primeiro capítulo da carta aos Romanos que o que de Deus se pode conhecer é, por ele, manifesto, então existe algo da essência de Deus que podemos conhecer. Ele prossegue dizendo: “tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Rm. 1:20-21 – ênfase acrescida).
Partindo da mente paulina, pode-se concluir que o propósito maior da criação do mundo e, por conseguinte, da existência humana em amor e liberdade gratuitos, é a glória de seu Criador. Fora disso, todos os louvores, devoções, raciocínios e liberdades se autonulificam. “Segue-se que o significado e o fim do mundo, da criação dele, não é par
a ser almejado em si mesmo”, mas “apenas para servir a Deus como seu Criador e, na verdade, servi-lo como o ‘teatro de sua glória” (BARTH, 2003, p. 48).
Quero encerrar com uma singela oração:
Pai, ajuda-nos a viver esta liberdade para qual o Senhor nos criou e vocacionou, sem reservas, sem medo, mas em amor e responsabilidade. Livra-nos da tentação do mérito e da justiça própria e ensina-nos a nos contentarmos com a Tua Justiça, a viver por Tua Graça, e a sermos gratos por tudo o que somos e temos. Louvado seja o Teu Nome, Jesus Cristo, pois por Teu Precioso Sangue fomos Libertos para sempre! Espírito Santo de Deus, instrui-nos para a liberdade e para o serviço e capacita-nos para que nos respeitemos mutuamente. Dá-nos fervor e comunhão. Em Teu Nome oramos.  Amém!

BIBLIOGRAFIA

BARTH, Karl. Credo. São Paulo: Novo Século, 2003.
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 7ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2002.
BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. 14ª e. Petrópolis: Vozes, 1997.
COMBLIN, José. Cristãos Rumo ao Século XXI: nova caminhada de libertação. São Paulo: Paulus, 1996.
_____________. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998.
LIBANIO, J. B. Eu creio nós cremos: tratado da fé. São Paulo: Loyola, 2000.
LUTERO, Martinho. Da Liberdade Cristã. São Leopoldo: Sinodal, 1979.
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida. Petrópolis: Vozes, 1998.
OLSON, Roger. Histórias das controvérsias na teologia cristã: 2000 anos de unidade e diversidade. São Paulo: Editora Vida, 2004.
PROENÇA, Wander de Lara. Cruz e Ressurreição: a identidade de Jesus para os nossos dias. Londrina: Descoberta, 2001.
STOTT, John. Ouça o Espírito Ouça o Mundo. São Paulo: ABU, 1998.

O autor é historiador e cursa teologia na Faculdade Teológica Sul Americana (www.ftsa.edu.br)

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