As estruturas eclesiais e as estruturas da sociedade na América Latina

Autor: Emil Albert Sobottka
Introdução

A questão que nos está colocada aqui é sobre a relação entre as estruturas eclesiais e as estruturas da sociedade em nosso subcontinente, e o seu potencial para impulsionar o cumprimento ou para desfigurar a missão da igreja. Há um relativo consenso nas ciências sociais e também na teologia, de que há uma estreita relação entre religião e sociedade. Alguns enfatizam mais a influência da sociedade sobre a religião, outros, a da religião sobre as transformações que ocorrem na sociedade (Korte and Schäfers 1997; Theissen 1989). O risco de querer responder taxativamente quem tem a primazia é semelhante ao de tentar responder à pergunta sobre quem veio antes: o ovo ou a galinha.

Na teologia da missão é comum acreditar que uma mudança na maneira de pensar ou crer muda a maneira de agir das pessoas; que com a conversão dos indivíduos seja possível renovar toda a sociedade. No outro extremo houve teóricos como Marx, que via a religião Bcomo também o estado e outras instituições sociaisB como reflexo da situação econômica, e Nietsche, que julgava a religião como um produto do medo humano. Apoiado em Max Weber, vou trabalhar com a hipótese de que entre determinada expressão religiosa e setores da sociedade em que está inserida, entre as formas que o cristianismo assume e os grupos sociais que acolhe há afinidades eletivas (Weber 1988): há entre ambos uma interação dinâmica pela qual determinadas caracterísitcas provocam uma atração recíproca e por conseqüência da qual desenvolvem e enfatizam alguns de seus traços e relativizam e abandonam outros (cf. Mueller 1996: 285-92).

Tão antiga quanto a relação entre a religião e a sociedade é o desejo de instrumentalização. Políticos buscando na religião um apoio para seus propósitos; devotos buscando nas estruturas de influência da sociedade um meio de extender e garantir sua influência no tecido social. Vou situar rapidamente esta problemática num nível mais geral, para depois concentrar-me na abordagem da questão proposta a partir de uma classificação das formas que o cristianismo assumiu historicamente entre nós.

A ambigüidade de querer poder

Um breve olhar sobre alguns momentos marcantes da história do cristianismo nos ajuda a visualizar que a igreja e a sociedade têm uma vinculação estreita, e que essa relação assumiu historicamente formas muito diversas e obedeceu a motivações freqüentemente conflitantes. Já o Antigo Testamento há um contínuo testemunho acerca da impossibilidade de dissociar mudanças no culto a Deus e na forma de organização social e política. A passagem do período dos juízes para o reinado, quando se consolidou o monoteísmo e a religião nacional, a mensagem dos profetas que associava a injustiça social e a apostasia, a relativização do sacrifício e a ênfase na oração a partir do exílio são exemplos.

A atividade de Jesus ocorreu numa sociedade ocupada e dividida, perpassada por movimentos político-religiosos em conflito, com grande expectativa escatológica; isso influenciou tanto a mensagem como os grupos sociais que se sentiram atraídos por ela (Theissen 1989). De modo similar, a atividade dos apóstolos assumiu sua forma levando em consideração a estruturação social, política e econômica existente. Paulo teve sua atividade missionária fortemente vinculada à dispersão dos judeus palestinos pelo império romano, à sua condição de cidadão romano e ao intercâmbio comercial que desenvolveu um intenso tráfico e criou cidades de importância estratégica para a comunicação.

Com a conversão de Constantino e a transformação do cristianismo na religião oficial de um império começa no cristianismo uma longa história de vinculação muito estreita entre as estruturas de poder da sociedade e a igreja, onde objetivos seculares e eclesiais se conjugam e sobrepõem parcialmente. Com isso, recursos da sociedade política são disponibilizados para a manutenção da estrutura eclesial e a divulgação do evangelho. Para o cristianismo essa vinculação, onde o poder temporal de todo um império tem interesse nas questões de fé, é totalmente nova; os judeus já a conheciam, mas de forma atenuada, restrita a uma nação.

A possibilidade de ter acesso a recursos tão necessários, mas que têm o seu preço, coloca os cristãos conscienciosos diante de um grande dilema. De um lado, eles têm um duplo impulso: a ordem de Jesus de ir ao encontro de todas as pessoas em qualquer lugar do mundo para levar a elas o evangelho (cf. Mt 28.19-20), e a vontade de que também outros possam experimentar como eles a vida com Cristo e possam ser libertos da escravidão do pecado. De outro, sendo realistas concluirão que esta tarefa é cada vez mais difícil Bquase impossível atéB, porquanto a igreja precisa concorrer com muitas e poderosas organizações e instituições, algumas muito bem estruturadas, que querem conquistar todos: homens, mulheres, jovens e crianças, e inculcar neles as suas prioridades, os seus valores, o seu “evangelho”. Então, havendo aceno com o acesso a recursos tão necessários, aqueles cristãos terão que decidir entre dois cursos de ação conhecidos como ética da responsabilidade e ética da convicção (Honecker 1990). No primeiro caso, aceitarão uma colaboração por julgarem mais responsável correr certos riscos e até fazer certas concessões face à possibilidade de ampliar o resultado; no segundo, permanecerão fiéis aos seus princípios, sem fazer concessões, ainda que sabendo que apenas poucos serão alcançados.

Nós na América Latina recebemos o evangelho originariamente de reinados cuja liderança política explícitamente se havia comprometido a empenhar os recursos públicos necessários para que todas as pessoas que vivessem presente e futuramente sob seu domínio tivessem acesso ao cristianismo. Em troca tinham conquistado o direito de administrar as finanças, o pessoal e, em certa medida, até mesmo a doutrina da igreja oficializada.

Visto retrospectivamente, tanto a oficialização do cristianismo como religião de estado sob Constantino como a vinculação entre evangelização e colonização mostram como são ambíguas para uma igreja que quer ser fiel à sua missão de levar o evangelho a toda criatura as facilidades que a maior disponibilidade de recursos financeiros, políticos, de comunicação e muitos outros traz, quando conseguida à sombra do poder. A apologia dos teólogos católicos espanhóis de um lado, e a crítica que vai de Las Casas a Marx e enfatiza o abuso da fé cristã pelos poderosos Bpara nem entrar na crítica específica às missões protestantes dos últimos séculosB, de outro, desafiam todo cristão que quer valer-se de estruturas ou de recursos específicos de sua sociedade para impulsionar a missão a ser extremamente sensível aos efeitos não premeditados potencialmente negativos de sua decisão. Muita crítica mordaz ao evangelho poderia e deveria ter sido evitada contanto que os responsáveis pelo trabalho missionário não tivessem apenas sido mansos como as pombas, mas também sábios como as serpentes.

E a experiência histórica mostra que nós não temos razão para apontar com desdém para os erros de nossos irmãos de fé católico-romanos. Entre os evangélicos latino-americanos também há histórias de aliança de líderes eclesiais com os poderosos de turno. Algumas trouxeram muita desonra à causa do evangelho Bhistórias de pessoas e comunidades que repetiram acriticamente os erros do passado ao se deixarem cegar pelo aceno de facilidades, ao baixarem o limiar da tolerância no discernimento dos espíritos. Freston mostra como o acesso de algumas lideranças eclesiais a meios de comunicação em massa no Brasil foi conquistado com o apoio a medidas incompatíveis com o evangelho (Freston 1992a). Na Guatemala, no Chile e no Peru, para mencionar apenas estes, também houve controvérsias sobre a colaboração com regimes ditatoriais que conduziram a graves crises em algumas denominações, culminando inclusive em cisões.

Influência sobre a sociedade

Uma instigante questão, que vem sendo discutida há muito, refere-se ao tipo de influência que as diferentes confissões têm sobre a sociedade ou sobre partes específicas dela. Trata-se da pergunta pela influência difusa, pelo efeito marginal de longo prazo, da religião sobre o conjunto da sociedade. Ela transcende os interesses circunstanciais de quem exerce o poder momentaneamente e busca saber qual o potencial que a religão tem para fomentar ou inibir transformações abrangentes na sociedade, geralmente mediatizadas pela cultura que, sabidamente, tem uma inércia muito grande. Para além de eventuais fatos concretos e específicos, a busca de respostas tradicionalmente foi feita por análises globais. Para uma igreja que quer ser o sal da terra e a luz do mundo, esta questão não pode ser irrelevante, porquanto nela se expressa a pergunta pelo serviço que presta para o bem-estar dos seus conterrâneos, que também é uma forma importante de salvação (shalom). Dito de outra forma, a pergunta visa a esclarecer a serviço de que forças sociais a religião está. Esta influência pode ser uma forma de a igreja cumprir com efeito duradouro sua responsabilidade social Bou de comprometer, também com efeito duradouro, a causa a que diz servir.

Clássico nessa discussão é o livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber, onde o autor parte de uma constatação instigante para ele: na região estudada Bo vale do Ruhr, na AlemanhaB, tendencialmente os filhos dos católicos eram levados a escolher carreiras profissionais humanísitcas, enquanto os protestantes escolhiam as carreiras técnicas. Como conseqüência, os protestantes estavam mais representados entre os industriais, dirigentes empresariais e técnicos de nível superior. Instigado por estas constatações, ele desenvolveu uma pesquisa, na qual concluiu que alguns ramos do protestantismo Bcalvinismo, pietismo, metodismo e batistasB, por causa de sua fé e da ética que a partir dela desenvolveram, deram uma importante contribuição para a formação do espírito que impulsiona a economia ocidental moderna (Weber 1987).

Quem conhece a história de nossos países, em especial a do século 19 e início do século 20, com razão poderá dizer que Btalvez de maneira intuitiva, mas convictaB os pais libertadores e lideranças políticas inovadoras de alguns deles já planejaram políticas nacionais levando em conta um saber assim. Historiadores da igreja têm mostrado que a imagem progressista dos protestantes já era difundida muito antes, e abriu caminhos para que pudessem se estabelecer aqui e anunciar o evangelho, distribuir bíblias, fundar escolas e construir templos, incentivados por quem queria assim influenciar a formação das novas nações; muitos missionários aceitaram este convite e aqui divulgaram o evangelho (Deiros 1992; Padilla 1989; Prien 1985). Num contexto em que a derrota na vida social estava expressa também numa teologia do sofrimento e da passividade, o protestantismo representou, juntamente com outras correntes, uma esperança de impulsos renovadores (Mackay 1989). Algumas décadas mais tarde, alguns destes mesmos protestantes participaram das alianças reacionárias entre os Estados Unidos da América, militares latino-americanos e restos da antiga elite que sobreviveram às tentativas de modernização (Alves 1982).

Em anos recentes, essa imagem, aplicada pelo seu reverso, foi usada nas discussões sobre desenvolvimento: a América Latina, juntamente com outros países, seria subdesenvolvida porque nela o protestantismo não alcançou uma penetração suficiente e o catolicismo sobreviveu com a força bastante para truncar a modernização (Novak 1982). Esta discussão aflorou quando vários países do continente estavam novamente em períodos considerados cruciais e de profundas reestruturações. Estas ocasiões parecem ser propícias para que segmentos da sociedade se lembrem da influência da convicção religiosa sobre a sociedade. Há indícios de que alguns apoios políticos e econômicos, tanto internos como externos, a setores específicos do pentecostalismo e da renovação carismática católica levaram em conta esta convicção.

Uma perspectiva distinta foi assumida pelo autor estadounidense Richard Morse, que se havia proposto a investigar os pólos valorativos da influência do catolicismo e do protestantismo. Para ele, o protestantismo impulsionou tanto o individualismo, que as sociedades anglosaxãs que o adotaram majoritariamente perderam muito de seu embasamento comunitário e ético, abrindo caminho à decadência espiritual. Na América Latina, em contrapartida, a herança ibérica teria sido melhor preservada, o que teria contribuído para processos mentais e sociais mais saudáveis Ba despeito de problemas econômicos ou político-administrativos. Ela faria bem em não tentar imitar justamente os equívocos de outras latitudes (Morse 1988). Esta tese de Morse foi duramente rechaçada B até onde tenha conhecimento, não por motivos teológicos, mas por cientistas sociais que seguem relacionando catolicismo com tradição e atraso, e protestantismo com modernidade e progresso, preferindo estes e combatendo aqueles (cf. Arocena and León 1993).

Há algumas décadas foi desenvolvido por teólogos católicos e protestantes da América Latina relacionados com o mundo ecumênico um outro enfoque desta pergunta, que também foi acolhido, com importantes modificações, por membros da Fraternidade Teológica Latino-Americana e de outros segmentos evangélicos. Buscaram saber como a fé evangélica pode servir para o discernimento do que é justo ou injusto nos modelos econômicos, políticos, sociais e mesmo eclesiais existentes e, sobretudo, qual é a responsabilidade histórica dos cristãos em cada contexto. Queriam averiguar como a fé poderia motivar homens e mulheres que foram preteridos na distribuição dos bens econômicos e culturais de sua sociedade a saírem da passividade e a assumirem-se como sujeitos de sua história, de seu processo de emancipação e libertação (cf. Mueller 1996). Houve um forte questionamento às igrejas e aos cristãos pelo seu papel político, desempenhado consciente ou inconsciente. O mundo evangélico latinoamericano experimentou, nessa época, uma renovação teológica profunda, geralmente associada ao debate sobre a responsabilidade social das igrejas e dos cristãos.

Mas ficou muito claro que a discussão sobre a influência da igreja na sociedade, em suas variantes, tem fortes limitações. Em boa medida elas estão na generalidade e em alguns casos na unilateralidade com que foi travada. Pouco ajuda falar, na América Latina e mesmo em outros lugares, de “o catolicismo” e “o protestantismo”, porquanto cada qual abarca uma variedade de tendências, ramos, correntes, ordens e teologias, que por vezes querem mais distância entre si que das outras confissões. Parece também ser cada vez menos sustentável que a economia ou outra esfera social determina a religião ou que homens novos produzirão automaticamente sociedades totalmente novas.

Tipos sociológicos de cristianismo

As sociedades e as igrejas latino-americanas estão complexas e diversificadas. Muitas alianças entre facções das igrejas e da sociedade foram sustentadas por afinidades que se mostraram maiores que os laços que, talvez ingenuamente, se supunha existirem na família da fé. Mesmo no interior das denominações e de comunidades locais o alinhamento se deu em campos teológicos e políticos rivais. Isso desafia a olhar mais detalhadamente para a igreja latino-americana para descobrir como ela se estrutura e por que cristãos igualmente convictos agem tão distintamente.

Como conseqüência do que constatamos até aqui, vou usar no que segue uma abordagem que relativiza a questão confessional e doutrinária e busca realça outras dimensões dentro desta pluralidade. Também ela já tem uma história razoável; surgiu há um século, quando muitos cientistas sociais de diferentes áreas se perguntaram como foi possível e que implicações tinha a passagem da pré-modernidade à modernidade no Ocidente.

Os tipos sociológicos do cristianismo em Troeltsch

No seu clássico estudo sobre as doutrinas sociais das igrejas e grupos cristãos, Troeltsch apresenta três tipos sociológicos ideais nos quais o cristianismo se autoconstituiu: igreja, seita e mística, que ele assim define:

A igreja é a instituição de salvação e graça equipada com o resultado da obra redentora, que pode acolher as massas e se adaptar ao mundo porque tem em certa medida a possibilidade de prescindir da santidade subjetiva, devido ao tesouro objetivo da graça e salvação. A seita é a livre associação de cristãos exigentes e conscientes, que se unem como verdadeiramente renascidos, se separam do mundo, permanecem restritos a pequenos grupos, enfatizam a lei ao invés da graça e que em seu interior colocam em prática, com maior ou menor radicalidade, o modo cristão de vida baseada no amor, tudo com o propósito de preparar e esperar pelo reino futuro de Deus. A mística é a internalização e imediatização do ideário cristalizado no culto e na doutrina como sendo uma posse de sentimentos puramente pessoais e interiores, pelo que somente podem ocorrer formações de grupos indefinidos e condicionados de maneira bem pessoal, enquanto culto, dogma e embasamento histórico tendem à diluição (Troeltsch 1994 : 967).

Uma das conclusões centrais de seu exaustivo estudo é que o imaginário, os dogmas e a vivência cristãos influenciam e são fortemente influenciados pelo tipo sociológico que é assumido. Mas para os crentes comuns Be freqüentemente mesmo para estudiososB, muitas concepções que são características do tipo a que eles pertencem permanecem inconscientes, e são concebidos como a única forma correta.

Da comparação que o autor faz, destaco inicialmente a concepção que cada um destes tipos ideais de cristianismo tem de Cristo, do reino de Deus e da salvação, com o intuito de dar visibilidade ao alcance que estas diferenças sociológicas têm.

O Cristo do tipo igreja é o salvador que, de uma vez por todas, com sua obra salvífica consumou a redenção e a graça. Esta obra salvífica é dada a cada um através da ação milagrosa de Cristo no ministério pastoral, na palavra pregada e nos sacramentos. Já para o tipo seita, Cristo é o senhor, o exemplo e o autor da lei, dotado da dignidade e autoridade divinas. Ainda que ele permita que a comunidade durante sua peregrinação por esta terra experimente o escárnio e a miséria, ele completará em definitivo a salvação quando voltar e implantar o reino de Deus. Para o tipo mística, Cristo é um princípio espiritual interior, que estava divinamente corporificado no Jesus histórico e que se faz presente no despertar de sentimentos piedosos; sua presença faz brotar a semente e a chama divinas no homem. Ele somente pode ser reconhecido e reafirmado mediante a ação interior do espírito, pelo que coincide com os mais profundos e ocultos propósitos divinos para a vida do homem (idem: 968).

O tipo igreja vê a si mesmo como o reino de Cristo e portanto ele se considera como idêntico ao reino de Deus neste mundo ou, no mínimo, como o meio de sua constante presença. O tipo seita considera que Jesus é quem anuncia e quem trará o reino futuro de Deus. Para o tipo mística, o senhorio de Cristo se dá pelo domínio do espírito divino, pelo que o reino de Deus está dentro de cada um (ibidem).

Na compreensão do tipo igreja, a obra salvífica de Cristo foi completada na morte de Cristo pelo que ele, como igreja de Cristo, recebeu o poder para perdoar pecados e dispensar a salvação. Com o propósito de ser popular, o tipo igreja desloca a divindade e salvação das pessoas individuais para a instituição administradora da graça. O tipo seita, por sua vez, considera que a salvação verdadeira acontecerá tão somente com a volta de Cristo e a implantação do reino de Deus; tudo o mais é apenas preparatório para aquele acontecimento. Para o tipo mística, a salvação é o processo constantemente renovado da unificação da alma com Deus, para a qual Cristo é apenas um estímulo e um símbolo (idem: 969).

Assim como as concepções de Cristo, do reino de Deus e da salvação, também a verdade é concebida de forma distinta nos três tipos sociológicos de cristianismo. Em estreita vinculação com sua concepção de verdade, também o exercício da tolerância e a relação com a autoridade pública são vivenciados distintivamente (cf. idem: 971-73).

O tipo igreja se vê como depositário da verdade e da autoridade magisterial. Esta verdade que lhe foi confiada e que abarca toda a vida precisa ser preservada e, se preciso, também defendida em sua integridade. O tipo igreja entende que está dotado de força e autorizado a usá-la, porquanto para ele a experiência prática mostra que toda tentativa de fazer prevalecer a verdade em seu interior ou para além dele unicamente pelo poder de convencimento, sem o emprego da força, está fadada ao fracasso. A misericórdia e a santidade de Deus exigem que todos tenham contato com a salvação e que esse contato seja propiciado, no limite e para o bem das pessoas, até mesmo contra a própria vontade delas. Para essa missão a igreja poderá necessitar do apoio do estado. Com isso surge não apenas uma relativa uniformidade interna do tipo igreja, mas também a relação de acomodação entre igreja e estado.

Os tipos seita querem ser comunidade confessante de cristãos santificados, por isso eles, ao contrário dos tipos igreja, são pequenas comunidades que subsistem ao lado do estado e da sociedade. Também essas comunidades reivindicam para si a posse da verdade absoluta do evangelho, mas não confiam na capacidade da população em geral e do estado de reconhecerem esta verdade. Por isso reivindicam para si a liberdade de culto e neutralidade do estado. Uma vez que o evangelho lhes proíbe o uso da força, do poder e do direito, renunciam à afirmação do evangelho pela coação, mas exercem em seu interior uma rígida disciplina quanto à doutrina e aos costumes.

Já o tipo mística interioriza e relativiza a verdade salvífica como uma posse pessoal, que permanece sublime e impossível de ser expressa em palavras. No trato dos textos bíblicos, da dogmática e dos cultos, ele se concebe como independente de formas históricas; a unidade do espírito é quem unifica todas as almas numa verdade puramente espiritual e sublime. Ele aceita a tolerância e a liberdade de consciência na comunidade religiosa e encara a organização apenas como um meio necessário à manutenção da igreja; para ele, a vida religiosa em si movimenta-se livremente em múltiplas formas de expressão de legitimidade relativa. Ao não possuir critério para discernir sobre a pertinência ao cristianismo, prescinde de qualquer forma organizada ou recolhe-se em comunidades de mentalidades puramente interpessoais. Ao renunciar à necessidade de conformação com a comunidade, abre espaço para um individualismo relativista típico, por exemplo, de camadas intelectualizadas da população.

Troeltsch acrescenta ainda algumas observações especificamente sobre as formas de organização da comunidade cristã (idem: 980). Segundo ele, a vida religiosa necessita de uma organização autônoma em cujo centro está o culto; só assim ela é fértil e se reproduz. Seria ilusório pensar que seja possível, mesmo em questões espirituais, consolidar laços estáveis sem organização. Quanto à forma organizacional, o tipo igreja é superior, mais acolhedor porquanto possibilita o acesso à graça independentemente do esforço individual e abre espaço para muitos níveis distintos de comprometimento com o cristianismo. Mas é ele que precisa fazer concessões mais abrangentes, nivelando o ideário cristão pela média. A tensão entre o cristianismo puro e a adaptação ao mundo motivou uma história rica em facetas, fazendo a maior parte da história da religião cristã ser história da igreja e as grandes igrejas o mais evidente produto da missão cristã.

O catolicismo romano é considerado o protótipo do tipo igreja, que sacrificou a intimidade, pessoalidade e mobilidade da religião em favor da objetivação no dogma, nos sacramentos, na hierarquia, no papado, deixando apenas as ordens e devoções como uma válvula de escape. O protestantismo tentou interiorizar e pessoalizar a instituição da salvação mediante a concentração dos elementos organizacionais objetivos nas escrituras e na pregação. Mas tanto Lutero como Calvino logo se viram frustrados na confiança inicial de que a doutrina teria força moral para se manter e impor por si só, e apelaram, como é comum no tipo igreja, para o socorro do poder secular a fim de manter a unidade religiosa do povo. Esta unidade, no entanto, funcionou apenas enquanto havia ainda uma razoável unidade nas visões de mundo e um amplo consenso cultural. Com a pluralização das filosofias de vida, o tipo igreja perdeu sua base; valer-se da força do estado nessa situação não seria mais proteger a totalidade contra perturbações localizadas, mas violentar a vitalidade da vida moderna.

Para Troeltsch, há uma transição dinâmica entre esses tipos, especialmente entre o tipo seita e o tipo igreja. Somente o tipo igreja está apto a ter uma influência massiva. Os grupos tipo seita recrutam seus membros individualmente e impõem a eles uma difícil exigência de adaptação, que pode ser inibidora de sua expansão; quanto mais ampliam seu alcance, mais se assemelham ao tipo igreja. Já o tipo mística permanece no exílio intimista ou, em especial quando propagado entre a população pouco influenciada pela ciência, pode assumir a forma de movimentos messiânicos e de devoção sentimental.

O que caracteriza a vivência cristã de uma época, no entanto, não são os tipos puros, mas uma ampla possibilidade de suas combinações; como tendência, no entanto, o tipo igreja se apresenta como a evolução lógica dos demais. Paradoxalmente, na visão que Troeltsch fazia já em sua época, esse modelo de igreja no protestantismo não teria futuro. Ele não apenas cede muitas de suas funções para a escola, as artes, o estado e a tradição associativa, mas muda também internamente. Dentre as principais tendências o autor citou a libertação em relação ao estado, a manutenção de uma certa unidade administrativa em presença simultânea de maior liberdade das comunidades locais, o que traria consigo um alto potencial de conflitividade. Enquanto a igreja romana consegue controlar a ação dos tipos seita e mística, no protestantismo o tipo igreja é cada vez mais influenciado pelos outros dois. E como grande desafio Troeltsch deriva daí a necessidade da criação de um novo modelo que consiga conciliar esses distintos impulsos. Portanto, ele não vê necessidade ou sentido em buscar uma unidade na doutrina, mas na constituição de um novo tipo sociológico que melhor expresse o modo de ser cristão protestante.

Tipos sociológicos tradicionais do cristianismo na América Latina

Para analisar as formas que o cristianismo assume na América Latina hoje Bpraticamente noventa anos depois da publicação da obra de Troeltsch e levando em conta sua frutífera influência sobre o estudo da religiãoB quero tomar como ponto de partida essa tipologia, acrescentando-lhe um novo tipo.

O tipo igreja está presente de norte a sul no catolicismo romano oficial, em especial na sua proposta de cristandade (Richard 1982b), desde a chegada a estas terras. O protestantismo de imigração transplantou para cá sua organização do tipo igreja, zelando por sua preservação na inusitada situação de minoria. Já o protestantismo histórico de missão e a primeira onda do pentecostalismo começaram predominantemente como tipo seita, embora com estratégias diferentes: boa parte do protestantismo histórico de missão tinha a pretensão de assumir a forma do tipo igreja, enquanto o pentecostalismo permaneceu com sua militância típica de pequenos grupos comunitários, fortemente coesos e seletivos. Com o passar dos anos houve uma relativa burocratização tanto da salvação como da membresia no protestantismo histórico de missão e, em grau bem menor, no pentecostalismo.

A dinâmica evangelizadora arrefeceu-se e as denominações se consolidaram. Uma parte deste protestantismo e do pentecostalismo que se constituiu como tipo seita e hoje se assemelha ao tipo igreja buscou aliança com o estado, em especial com ditaduras e ditadores militares. Uma parte da história da implantação do protestantismo no século passado e da expansão do pentecostalismo sob os regimes de exceção em décadas recentes pode ser lida como tentativa Brelativamente frustradaB de inserir-se nas sociedades como tipo igreja, tanto para ser a fonte da matriz cultural da nação como para expandir-se numericamente.

A regra para o cristianismo evangélico no subcontinente tem sido organizar e estabelecer-se como o tipo seita. Enquanto com o passar do tempo algumas denominações foram assumindo traços burocráticos, sempre de novo têm surgido movimentos de renovação do espírito que caracteriza o tipo seita, por vezes inclusive provocando tensões e cismas (que é o sentido etimológico de seita). Como conseqüência tem-se hoje verdadeiras famílias confessionais presbiterianas e reformadas, batistas, metodistas, luteranas e outras. No movimento pentecostal clássico também ocorreram cismas relacionados com esta evolução. O próprio catolicismo romano tem sido perpassado por movimentos de renovação, dos quais as CEBs e o Movimento Carismático são os mais conhecidos. Contudo, pela peculiaridade desta denominação, com sua reconhecida capacidade de absorção das tensões internas e de evitar rupturas, adquire visibilidade o que se pode caracterizar como um subtipo: o tipo seita dentro do tipo igreja. É um subtipo que não existe apenas nessa denominação, mas tormou-se comum também no protestantismo histórico. Ele assume características do tipo seita, inclusive com seus próprios cultos, sem deixar a matriz eclesial; convive com ela numa permanente tensão com críticas e com recíproca esperança de influência: a igreja espera uma reabsorção tão plena quanto possível, enquanto o movimento se mantém na igreja com a esperança de poder reavivá-la por dentro.

As características próprias do tipo mística, aliadas à ausência de estudos específicos, dificultam a tarefa de visualizar a presença desta maneira de ser cristão em nosso continente. Além disso, ao invés de denominações próprias, os praticantes deste tipo formam preferencialmente grupos e movimentos no interior de outras denominações ou permanecem isolados. Onde encontrá-los? De um lado, em segmentos atomizados das camadas médias e altas que assumem para si a religião como assunto estritamente privado e cultivam-na privadamente com instensidade. De outro, pode-se perguntar se uma parte do assim chamado catolicismo popular e, mais recentemente, pequenos grupos emergentes em outras denominações não seriam adequadamente tidos como sendo do tipo mística. Em ambos os casos são caracterizados pelo sincretismo, que relativiza todas formas religiosas em função do gosto pessoal. Cada praticante compõe Be recompõe constantementeB sua própria dosagem selecionada de um misto caudal religioso, na qual o cristianismo fornece apenas alguns elementos. A pretensão geralmente explicitada é dupla: ser tolerante e aberto para com tudo e retirar o que há de melhor em cada corrente religiosa. Não há preocupação com a coerência de elementos e todo o tipo de compromisso duradouro com os elementos e com a comunidade dos fiéis é rejeitado.

Cada uma destas três formas típicas que o cristianismo assumiu tem seu contexto histórico de surgimento e consolidação. O tipo igreja nasceu com a idade média e acompanhou a longa transição da Europa para a modernidade cultural. Sua versão predominante em nosso subcontinente é justamente a do catolicismo anti-moderno. O tipo seita desenvolveu-se em movimentos medievais de reforma da igreja e foi característico, mais tarde, dos anabatistas, pietistas, puritanos, dos movimentos de avivamento do século 19 e do pentecostalismo no século 20, com sua intensa vivência da fé. O tipo mística, por seu turno, como postura espiritualista, tem se expandido nos movimentos radicais da reforma, em movimentos místicos do século 18, no romantismo, no protestantismo ascético e mais recentemente em movimentos messiânicos. Hoje está presente nas camadas médias e em parte do catolicismo popular. Teve forte impulso quando o subcontinente foi sacudido por ondas de politização da fé: não querendo acompanhar suas denominações, muitos cristãos recolheram-se a uma devoção privada e sincrética, que é preponderantemente domiciliar nas camadas mais aquinhoadas e comunitária entre os mais pobres.

Um novo tipo sociológico de cristianismo: mercado religioso

Mas há um novo tipo, de aparição relativamente recente, de crescimento e importânica explosivos, e que quero denominar tipo mercado religioso. Ele está presente em vários dos novos movimentos religiosos sem se restringir ao cristianismo, mas tem encontrado entre os evangélicos, e especialmente entre os pentecostais, um campo fértil para sua expansão. Antes que uma nova doutrina, ele é uma atitude de vida que corresponde ao espírito de época das últimas décadas. Na cultura, esse espírito se expressa como ênfase no comportamento sem referência ao fato que o sustenta; na política, como simulacro que absolutiza a imagem independentemente das práticas políticamente relevantes; na economia, assume a forma de mercantilização total não apenas de produtos, mas também de serviços, direitos, imagens, sentidos, expectativas e relações.

O tipo mercado religioso corresponde, assim, à época em que vivemos hoje: um mundo globalizado sob o predomínio da massificação isoladora que visualiza os seres humanos como clientes B independente de seus outros atributos e qualidades. Seu centro gravitacional é a oferta e procura do bem-estar e da prosperidade aqui neste mundo, através do apelo religioso e com base prioritariamente na expectativa de eficácia. De um lado, os bens religiosos são produzidos e oferecidos segundo a procura; de outro, forma-se uma parcela crescente da população que se habitua a viver num mundo em que tudo tem seu preço B também uma graça divina. Há uma intensa sacralização e dualização da vida fomentada pelo tipo mercado religioso, com o que a religião passa a abarcar de forma imediata todas as rotinas e necessidades, quotidianas ou extraordinárias, exigindo colocá-las constantemente sob o poder de Deus, para resgatá-las dos poderes do mal. Com isso se expande enormemente a necessidade de procurar ajuda religiosa lá onde ela for oferecida, mesmo que o preço a ser pago seja elevado.

Há uma peculiaridade neste tipo, que se pode chamar de círculo de mercantilização da fé. Deus fez promessas aos seus fiéis que estão dispersas pelo texto bíblico; algumas delas são relacionadas à oferta de dízimos. Como ele prometeu, fica na obrigação de cumprir sua palavra. O pastor ou a igreja apregoa ter recebido o poder de Deus para distribuir bênçãos e operar milagres em seu lugar e seu discurso estabelece uma relação quantitativa entre o dízimo e a bênção ou milagre esperado: quanto maior a dádiva, maior a resposta de Deus. Como mediador, o pastor ou a igreja é receptora do dízimo com o qual o crente quer assegurar para si o benefício divino. Na presença do ofertante, o mediador repassa a Deus em oração a responsabilidade de suprir o serviço e admoesta o crente que o não cumprimento do esperado ocorre quando houver falta de fé ou fraqueza na disposição para o sacrifício.

Nesse tipo, há uma ênfase nos cultos, mas eles são antes o grande espaço de realização das transações do que o lugar para estreitar os laços interpessoais da comunidade de fé, para colocar-se na presença de Deus, estudar e ouvir a palavra dele, discernir os espíritos em comunidade. A nova comunidade é virtual e fugaz. Virtual porquanto mais unida pelos meios de comunicação de massa do que pela presença física compartilhada de um local; fugaz porque dela se participa preponderantemente enquanto o carisma dos dirigentes mantém a expectativa de eficácia, deixando-a geralmente quando os objetivos foram alcançados ou a expectativa foi frustrada. Essa comunidade não exige um compromentimento de longo prazo e está tão aberta para a saída quanto esteve para a entrada.

Pode-se perguntar, como fez Troeltsch, que concepção de Cristo, do reino de Deus, da salvação e de verdade tem e que postura assume este tipo com relação à autoridade pública. Tentativamente se pode dizer que o seu Cristo é o servo de Deus e eterno combatente na guerra contra demônios, que traz a salvação na forma de bênçãos e milagres que satisfazem às demandas de bem-estar sempre que encomendadas a Deus. Cada bênção ou milagre é uma vitória do reino de Deus sobre o reino dos demônios, num combate que é generalizado e permanente, onde o crente tem a ambígua posição de negociador com Deus e objeto da disputa. Assim como negocia com Deus, este tipo também negocia com a autoridade pública: cada troca tem seu preço fixado no processo. A análise feita por Freston sobre a atuação de parte dos políticos evangélicos evidencia isso muito bem (Freston 1992a), e contrasta com um certo otimismo que havia entre os mais destacados pensadores políticos ligados à Fraternidade Teológica em meados da década dos 80 (cf Deiros 1986). A afinidade entre bons políticos e cristãos fiéis parece ter sido antes exceção do que a regra.

Missão: igreja em movimento

Missão na sociedade complexa

Diferente dos tempos bíblicos e mesmo até a reforma, desde o advento da modernidade as diversas esferas da vida em sociedade têm racionalidade e impulsos organizacionais próprios. Não é mais possível fazer juízos, arquitetar planos de ação, propor reformas ou mesmo pensar no futuro levando em conta apenas uma das esferas, com a pretensão de que as outras se adaptem. Elas se influenciam, atraem ou repelem mutuamente, por vezes até intensamente, mas não há um alinhamento automático; pode inclusive ocorrer que os estímulos desencadeiem modificações e associações em sentido contrário à expectativa. Ainda que não seja essa uma situação recente, ela atualmente está muito mais visível. Por esta razão faz sentido olhar para determinada sociedade e perguntar: em que medida a religião Be, em nosso caso, o ideário do cristianismoB pôde influenciá-la, foi por ela influenciado ou se acomodou aos seus impulsos. A questão, no entanto, necessita ser analisada em cada caso tipo específico de cristianismo e não genericamente como se sempre o protestantismo fosse uma força social propícia ao espírito capitalista (Weber) ou as raízes católicas ibéricas melhores que o individualismo anglosaxão (Morse).

Seria equívoco pretender distinguir as esferas da vida social (economia, política, e sociedade civil) ou instituições do mundo da vida (religião, escola, família, ciência, arte, esfera pública) ou mesmo organizações (igrejas, universidades, academias, associações) em naturais e sobrenaturais como por vezes pretendem alguns teólogos, ou em naturais e históricas como pretendem outros. Sob o prisma de uma análise sociológica, as diferenciações das esferas da vida social, a institucionalização de modos de agir e a estruturação instrumental de atividades humanas são tão somente formas distintas de coordenação do agir humano em sociedade, surgidas e reproduzidas em contextos específicos. Negar-lhes o caráter histórico seria um salto em direção à renúncia da permanente avalização de sua eficácia como meio para determinados objetivos; seria o início da sacralização de uma forma historicamente datada, como se expressasse alguma vontade perene de Deus, e a subjugação do agir humano e de seus propósitos a uma hipostasia.

A reivindicação que por vezes se faz, de ter a igreja seu centro de referência fora do mundo, de ter primazia ou privilégio no conhecimento, no discernimento ou na determinação dos propósitos das demais estruturas da sociedade perde não apenas o sentido, mas o próprio senso de realidade numa sociedade moderna e pluralista. Essa postura é frágil e até temerária tanto sob a perspectiva teológico-histórica quanto sociológica. A igreja, nas várias ascepções que se dá à palavra correntemente hoje, não se confunde com os cristãos nem com o reino futuro de Deus; ela é uma estrutura criada pelos homens para, através dela, melhor cumprir o mandato que seus membros receberam de seu senhor. Ao aplicarem de maneira imediata a ela aquilo que no texto bíblico é referido ou ao reino ou aos crentes, tanto no passado quanto hoje, ativistas querendo servir a Deus têm atentado contra o evangelho, confundindo-o com os seus próprios propósitos. A diferenciação das esferas da vida social, consolidada Bainda que não necessariamente acolhida universalmenteB desde o iluminismo fez com que a religião cristã e a igreja tenham perdido o lugar central que ocupavam nas sociedades pré-modernas, para tornarem-se apenas um entre vários fatores que servem como orientação para o agir humano e que precisam, elas próprias, dar razão de sua existência e encontrar as formas mais adequadas para estar presente na sociedade.

A igreja que quer cumprir bem sua missão, portanto, não pode desconsiderar a relação com o contexto. Na missão cristã biblicamente fundada, o objetivo central não é a conquista de ganhos econômicos nem de poder político, muito menos de tomar conta da administração do estado. Seu fim precípuo é levar o evangelho de salvação às pessoas e desafiá-las a mudar seu modo de vida, seu centro de referência na definição de valores, prioridades, modos de vida e de se relacionar em sociedade, na expectativa de que daí resultem, como efeito secundário, uma economia mais justa, uma política mais democrática, uma cultura mais expressiva. Se a igreja está permanentemente questionando o estado atual das coisas e desafiando os homens a provocarem transformações, por vezes inclusive transgredindo a ordem dada, ela o faz porque ali se expressa visivelmente o que os homens escolheram fazer, não porque caiba à igreja reformar a sociedade. Se essa fosse sua responsabilidade, teria que ter os meios necessários B e isso implica, no limite, a necessidade de administrar a coação.

Justamente aí reside uma chance de a igreja testemunhar autenticamente com sua vida e seu anúncio público do evangelho, sem o ônus de quem precisa defender posições de poder. A fé que ela divulga incide diretamente no mundo da vida, no centro de definições éticas das pessoas, mas não tutela a vida por inteira. Como o sal que se dilui sem perder suas propriedades essenciais, ela pode Be há testemunhos bíblicos dizendo que precisaB reestruturar-se permanentemente sem priorizar a autoconservação institucional para continuar viva. As estruturas da igreja e os modos de fazer missão são meios para ser mais eficaz; podem e precisam ser permanentemente vigiados quanto à sua adequação a esse fim e sua compatibilidade com o evangelho Be ser abandonados sem pena quando não forem mais adequados (cf. Bosch 1991).

Mas a diferenciação em esferas, com lógicas muito peculiares, também apresenta um grande risco para a igreja. Os motivos que impulsionam determinadas forças sociais a aliarem-se às igrejas podem ser muito diferentes daquelas que impulsionam as igrejas a aceitar uma aliança. Vejamos um exemplo hipotético: um governo que está preocupado em abafar focos de desordem social julga que determinada igreja tem acesso mais direto à população em questão do que as agências governamentais, e pede sua ajuda para distribuir alimentos. A igreja, que justamente queria expandir suas obras sociais porque quer valer-se do contato com a população para testemunhar de Cristo, aceita a oferta. Talvez até agradeça a Deus por considerar o fato como um milagre dele. Um olhar mais acurado revelaria a esta igreja que a aliança é anti-evangélica, pois apóia e legitima a perpetuação da dominação injusta.

Há muita liderança eclesial na América Latina que não consegue ver com clareza estas ciladas. Algumas, porque a permanente falta de recursos faz com que qualquer ajuda tenda a ser bem-vinda; outros, por não estarem habituados a valer-se de um instrumental mais sofisticado do que a simples intuição para discernir situações. Assim, a igreja latino-americana Bem tempos recentes principalmente a igreja evangélicaB ao lado de uma história de bênçãos, vitórias e bons serviços prestados à população para contar, tem uma história de pecados graves que cometeu e segue cometendo Bapesar das melhores intenções.

Mas isso não significa que todas Btalvez nem mesmo que a maioriaB das alianças feitas à base de afinidades eletivas sejam perversas na ótica do evangelho. Perversa é a ignorância da situação. Numa situação similar àquela descrita hipoteticamente acima, um governo legítimo poderia estar preocupado em atenuar a pobreza e a miséria, e valer-se da estrutura da igreja para melhor atingir a população alvo; a comunidade de fé teria então uma grande chance de desenvolver uma missão integral Bsem precisar acreditar que o governo tivesse se convertido ao evangelho.

Missão de uma igreja complexa

Quero retomar a tipologia e a pergunta pela relação entre igreja e sociedade a partir da situação das igrejas. Vou apoiar-me numa analogia com os movimentos sociais para mostrar que a lógica interna dos tipos sociológicos que o cristianismo assume também leva a ações distintas em situações similares. Considerando os diferentes tipos sociológicos que tem assumido na América Latina e as diversas formas de relação e influências que tem experimentado por causa da complexidade das sociedades atuais, como a igreja preserva ou abdica de sua autonomia frente às demais esferas? Que tipo de afinidades fomenta e como elas incidem sobre si mesma e sobre a sociedade? Que potenciais têm estes tipos para testemunhar o evangelho e cumprir cabalmente a sua missão? O espaço não permite aprofundar como seria desejável, por isso vou restringir a analogia à vocação missionária da igreja de comunicar o evangelho, agregar as pessoas em torno da interpretação específica que ela faz desse evangelho, e o tipo de estímulo ou exigência que seus membros recebem para a vida cotidiana. Concretamente isso pode ser visto na definição dos objetivos enquanto igreja, no espaço social que ocupa, no recrutamento de seus membros, na mobilização de recursos, nas ações que desenvolve, nas mediações que usa para potencializar o alcance de sua atuação e na sua relação com o controle social.

Se em diferentes comunidades que se dizem missionárias for analisado o que elas fazem como sendo sua missão, pode-se constatar que os objetivos perseguidos são muito distintos. O evangelho que testemunham pode ser um conjunto de valores éticos para um mundo mais humano e cristão ou o anúncio do amor universal de Deus; pode ser a experiência de uma mudança radical de vida que inicia um caminho em santificação ou de intervenção sobrenatural sempre renovada em favor do crente; a plenitude pelo contato imediato com a santidade; ou a vitória sobre todos os males e o bem-estar e o sucesso certos.

Cada um destes objetivos, perseguidos pelos tipos igreja, seita, mística e mercado religioso, ocupa um espaço social, corresponde às expectativas que grupos sociais têm em relação à religião; ao serem oferecidos estes objetivos como sendo o evangelho de uma comunidade, atraem determinados públicos Be deixam de atrair outros. Assim, se uma determinada comunidade assume como sendo sua missão preservar a fé e a língua dos seus antepassados, como tem sido em algumas igrejas de imigrantes, ela atrai em menor ou maior grau aquele grupo social cujos antepassados professavam determinada fé e falavam determinada língua e, de fato, exclui os outros grupos. Se outra comunidade interpreta a vida como uma constante batalha contra espíritos e demônios, tendencialmente congregará pessoas que não foram exitosas na composição de uma trajetória planejada para sua biografia, e exclui pessoas que se percebem como esclarecidas e de iniciativa própria. Uma fé que é apresentada como garantia de vitória, remédio contra todos os males ou fórmula do sucesso atrai, ainda que em troca de uma contrapartida monetária, segmentos sociais que estão ávidos por estes bens simbólicos e aqueles que têm uma postura egoísta de busca de vantagens pessoais e fogem de compromissos estáveis; mas ela afugenta os abnegados, os que vêem a religião como tentativa de reatar através do modo de vida o contato com a transcendência, que cultivam sensibilidade para o próximo e para o que é pertinente ao bem-estar público.

Os recursos que uma comunidade de fé mobiliza em sua missão estão também diretamente relacionados com o tipo sociológico que abraça. Esses recursos podem ser muito diversos: pessoas, equipamentos, instalações, dinheiro, relações, poder político ou econômico, meios de comunicação e muitos mais Btudo o que pode ser mobilizado e colocado a serviço da missão. Podem ser mobilizados externa ou internamente, sem a necessidade de haver coincidência de motivação entre a comunidade mobilizadora e a fonte dos recursos. Aqui faz-se necessária uma observação sobre os movimentos sociais. Eles podem ser divididos em dois grandes tipos: aqueles que têm uma orientação ao poder e os que têm uma orientação cultural. Movimentos orientados ao poder atuam primordialmente nos âmbitos econômico ou político, nos quais as mudanças substanciais são de alguma maneira mediadas pelo poder político ou administrativo no estado. Os movimentos sociais orientados à cultura, por seu turno, concentram sua atuação no mundo da vida, com o objetivo de provocar mudanças nas posturas que as pessoas assumem com relação a si próprias e em suas relações sociais. Podem, mas não necessitam ter expectativa de que daí se irradiem transformações no conjunto da cultura, no estado e na economia. Nas relações que as forças sociais estabelecem entre si não é incomum uma parte estar orientada à cultura e a outra ao poder. Com isso desenvolvem um alto potencial de conflito, com prejuízo potencialmente maior para aquela parte que estiver orientada à cultura, onde a reconstruçaõ de universos de sentido é muito mais lenta que na economia ou na política. Como a igreja está normalmente orientada à cultura (exceto quando já tenha se afastado muito de sua vocação evangélica), cabe-lhe tomar muito cuidado nestas situações.

Quando assumiu a forma sociológica do tipo igreja, o cristianismo na América Latina não apenas se aliou, mas assumiu ele próprio as características de um movimento social que se orienta ao poder, tendo inclusive chegado a ele. Ao fazer esta opção, foi constrangido a jogar o jogo conforme as regras da política e quanto mais estabelecido no poder, mais necessidade teve de fazer concessões, defender posições, administrar situações conflitivas, para manter mobilizados seus recursos políticos. Por fim perdeu praticamente de vista os propósitos que desencadearam a mobilização original. A objetivação da salvação em sacramentos e ritos, a confusão entre pertencimento à estrutura, ao reino de Deus ou à sociedade, e por fim a substituição do convencimento pelos argumentos pela coação do poder são estações nessa errante viagem. Quando toma esse rumo, chega o tempo em que não sabe mais mobilizar seus membros em função da causa; o cristianismo deste tipo acultura o evangelho e delega para a escola, os meios de comunicação social, a opinião pública e outras instituições de socialização a tarefa de comunicar aquilo que, na situação dada, passou a ser considerado valores cristãos, sem esperar por uma metanóia, uma conversão no curso da vida individual. Passou a ser um sal que não salga mais, um candeeiro que foi ocultado ou apagado.

O cristianismo que assumiu preponderantemente a forma do tipo seita mobiliza muito as pessoas e, a partir delas, recursos financeiros, bens, engajamento, sentimentos, apoios solidários etc. Diferente do tipo igreja, que tende a manter mobilizados os recursos mediante a burocracia e com baixo nível de controle social, no tipo seita a mobilização é feita preponderantemente por apelação direta, com forte controle grupal, em função de metas específicas e, por vezes, com elevado grau de sacrifício. Enquanto no tipo mística a necessidade de recursos é reduzida, no tipo mercado religioso ela é muito grande. Característico é o elevado grau de monetarização dos recursos, mobilizados e estabilizados com estratégias mercadológicas, e o baixo grau de engajamento pessoal esperado dos participantes. A prestação de contas característica sobre os recursos no tipo igreja é feita pelo cumprimento da legislação societária; nos tipos seita e mística predomina a informalidade e uma forte petição de confiança nas pessoas; no tipo mercado religioso predomina a verticalidade da organização empresarial, onde a clientela não tem direito legal ou moral de exigir transparência. Em todos eles há possibilidade de mau uso ou mesmo de desvio dos recursos; pela sua orientação ao lucro, no entanto, o tipo mercado sociológico é mais propenso a agregar mais aquelas pessoas que priorizam os ganhos, inclusive individuais, ao serviço.

É importante distinguir analiticamente a mobilização de recursos das ações da comunidade missionária. Enquanto aquela gira em torno do incremento do potencial, as ações são seu emprego especificamente para alcançar os objetivos. As ações podem ser demonstrativas, performativas, apelativas ou declaratórias; mais ou menos diretas e, no limite, conter certa coerção. Também podem ser altamente centralizadas e dirigidas, ou simplesmente espontâneas e descoordenadas. O risco que correm todos os tipos de cristianismo é justamente o de priorizar as mobilizações em detrimento das ações, a ponto até de negligenciá-las; correm o risco de obter grandes e sofisticados recursos, encantar-se com eles, mas perder o ânimo de empenhá-los em ações que são precisamente os grandes consumidores dos recursos. Exemplos típicos podem ser o empenho exaustivo na construção de um templo, o comprometimento de um percentual muito alto dos recursos para cobrir os custos correntes da organização, o investimento desmedido em equipamentos ou na aquisição e manutenção de estações de rádio e televisão.

Na sociedade atual está cada vez mais óbvia a dificuldade de testemunhar o evangelho diretamente às pessoas e partilhar com elas a boa nova na vida cotidiana. Por isso a igreja necessita lançar mão de mediações. As mediações colocam-se entre a igreja e seus objetivos. A imprensa, o rádio, a televisão e recentemente redes eletrônicas exemplificam-nas bem. Mas também a escola, as artes, o engajamento político podem ser exemplos. As mediações são ambíguas, pois ao mesmo tempo que aumentam o alcance espacial também distanciam, reduzem as dimensões da comunicação, impõem regras e selecionam públicos. Os diferentes tipos de cristianismo têm priorizado mediações distintas e, mesmo quando usam similares, adaptam-nas. As escolas, a presença nas principais organizações e instituições da sociedade e na imprensa são priorizados pelo tipo igreja, enquanto a mídia eletrônica tem a franca preferência do tipo mercado religioso e o tipo mística em sua vertente popular tem preferido as ações diretas.

Por fim, a igreja precisa contar com uma resistência à sua missão, que além do contexto social-cultural, político e econômico dependerá do tipo por ela assumido. A resistência pode ser passiva no sentido da negação de estabelecer relações por falta de afinidades, ou pode ser ativa e assumir contornos até de um combate velado ou declarado. Tal como na política, comumente as tensões são maiores entre grupos que estão ideologicamente mais próximos.

Perspectiva

Quando a temática aqui tratada foi colocada, havia uma expectativa de que fosse possível ajudar a solucionar a inquietante pergunta sobre como a igreja pode minorar a influência desfigurante e aproveitar ao máximo o potencial das estruturas dela mesma e da sociedade na missão. Penso que é muito bom que não há respostas únicas nem definitivas. Como comunidade de fé estamos permanentemente na sua busca. Sempre de novo precisamos buscar novos modelos de missão.

Quero concluir perguntando: por que não estreitamos muito mais nossos laços de unidade no trabalho missionário aproveitando o potencial que o trabalho em redes oferece hoje? Pequenas comunidades locais em movimento, que criam organizações apenas na medida necessária para manter estabilizada a mobilização de seus recursos, mas que estão entrelaçadas com outras para falar e ouvir, ajudar e receber ajuda, questionar e ser questionadas, para discernir conjuntamente as situações têm mais chances de acertar e menos chances de errar. Stanley Skreslet foi, até onde sei, quem tem advogado primeiro um modelo com a imagem da rede (Skreslet 1997). Dentre suas qualidades, ele cita as seguintes: é inerentemente flexível, essencialmente igualitário e tem orientação holística; ele é adequado a uma sociedade e igreja complexas e pluralistas.

Bibliografia citada

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Fonte: http://ekeko2.rcp.net.pe/fratela/clade4/emil.htm

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